Bocchi The Rock e as desvantagens de ser invisível

Finalmente chegou minha hora de comentar sobre a adaptação que foi sem dúvidas uma das maiores surpresas de 2022. Bocchi The Rock! conseguiu ser um dos animes mais aclamados e comentados da temporada de outono 2022, mesmo dividindo espaço com obras extremamente populares e antecipadas como Chainsaw Man, Bleach, Mob Psycho 100 e Spy x Family e entre outras séries. Por mais que eu estivesse nutrindo esperanças desde a época do anúncio, já que anime musicais automaticamente chamam minha atenção e por obras recentes como Paripi Koumei e Healer Girl terem sido gratas surpresas, provavelmente ninguém imaginava o estrondo e o impacto que este anime iria causar. Mesmo nas expectativas mais positivas. Após assistir, fica bem fácil de entender a razão de toda a empolgação e atenção à Bocchi The Rock! — definitivamente é um anime bem peculiar, distinto e incomum dentro de seu gênero.

O primeiro ponto que eu gostaria de ressaltar é que é engraçado pensar que mesmo que a obra seja constantemente associada diretamente com K-ON, pelo fato de ser um anime moe cuja premissa inicial se baseia em garotas formando uma banda, existe um outra adaptação que senti que compartilha ainda mais similaridades com ela. Este anime em questão é a comédia Watamote! lançada em 2013. Tanto a Bocchi quanto a Tomoko são garotas antissociais com grandes dificuldades de comunicação, e ambas dividem o grande sonho de serem super famosas e exaltadas por várias pessoas. Na mente de ambas, essa é a maior prova de validação e autoaceitação que podem alcançar, mesmo nenhuma das duas tendo a condição psicológica necessária para lidar com essa atenção que tanto almejam. Bocchi e Tomoko ainda dividem o fato de possuírem uma perspectiva fantasiosa e inocente sobre a fama, o que quando confrontado com a realidade, causa um choque que acaba agravando o já frágil estado mental delas. Isso traz o constante senso de ironia e sarcasmo à trama e às piadas, já que as tentativas utilizadas por elas para alcançar essa meta também se provam bem equivocadas.

Mesmo com esses paralelos, Bocchi The Rock! possui características específicas em relação a sua abordagem, o que acaba fazendo ele seguir por um caminho diferente do seu antecessor. Se Watamote parecia ser um mordaz comentário sobre a completa falta de autoconsciência de algumas pessoas, desencadeada pela incessante busca pela popularidade, com o humor sendo composto por ácidas e corrosivas punchlines de extrema vergonha alheia acarretada pelos planos malucos e atitudes totalmente inconsequentes criadas pela própria Tomoko, o objetivo de Bocchi The Rock! é mostrar algo que deveria ser óbvio, mas que algumas pessoas parecem não entender: o quão sofrido, árduo e complicado pode ser a vida de uma pessoa antissocial.

O principal método que a obra utiliza para poder desenvolver esta premissa é através da própria Bocchi, que se prova como uma protagonista bastante atípica. Mesmo que à primeira vista ela pareça uma mera personagem self insert, almejando criar esse senso de identificação imediata para o expectador se sentir representado em tela logo na exata primeira cena do anime, a maneira como a narrativa utiliza isto é bem diferente do que você esperaria em obras que recorrem a estes tipos de personagens.

Isso ocorre primeiramente pela sua composição e caracterização ser bastante detalhada e rica. A personagem cobre uma grande leva de comportamentos acarretados por transtornos mentais de forma bem precisa, como o medo; a insegurança; a dificuldade de dizer “não” a alguém; a baixa autoestima; a autodepreciação; o completo senso de inferioridade; a falta de ânimo e motivação e até mesmo o constante estado de paranoia. Isso faz a protagonista ficar anos-luz à frente da composição vazia, genérica, plana e não descrita de self inserts que você costuma encontrar por aí, como em isekais escapistas. O anime ainda mostra o quanto todos esses fatores acabam privando e restringindo a Bocchi de levar uma rotina tradicional, com diversas ações comuns do dia a dia se tornando um grande desafio para ela.

Em segundo lugar, mesmo que as reações totalmente desvairadas da Bocchi tragam um tom bem absurdo para a trama, elas ainda conseguem soar plausíveis no contexto da história. Principalmente por muitas das vezes a Bocchi se transformar praticamente em uma metáfora ambulante, equiparando essas reações à forma como estes sentimentos impactam a mente das pessoas que sofrem destes transtornos de ansiedade, fobia social ou depressão de uma forma bem criativa e esperta. Isso ainda vai contra o arquétipo de que pessoas socialmente isoladas são blindadas e isentas de qualquer emoção que seja, como outras obras costumam vender.

O terceiro ponto é que quanto mais você se identifica com as situações que a Bocchi passa, mais doloroso algumas piadas se tornam. Mesmo Bocchi The Rock! sendo um anime de comédia, existem nuances e detalhes bem sombrios presentes no subtexto que dão um aspecto bem tragicômico a diversos momentos presentes na trama. A obra apresenta situações para o expectador rir de desespero, momentos onde a mente da Bocchi parece estar tão corroída e consumida pela doença ao ponto dela aparentar estar a um passo de enlouquecer de vez, gerando preocupações com a sua integridade mental e física; como as conversas com os “amigos imaginários”; os diversos surtos de histeria ou os lapsos de memória que ela possui durante as crises como no episódio 9 ou 10.

Outras situações são apenas tristes mesmo, como no início do episódio 3, quando Bocchi não consegue puxar conversa com as suas colegas de classes e, em seguida, cria uma narrativa super pessimista e se força a acreditar que está melhor sozinha — um mecanismo de defesa que é de partir o coração. No episódio 6, há uma devastadora cena onde ela imagina como seria a sua vida se virasse uma alcoólatra; o cenário que ela cria é o mais depressivo possível, mas ao mesmo tempo aborda um medo muito real de ficar estagnado e ser abandonado pelas pessoas ao seu redor. Essa perspectiva é muito mais palpável em comparação a outras situações criadas na mente dela, usadas como piadas de tão delirantes que são.

O roteiro também se mostra autoconsciente o bastante para impedir que a obra caia em um tom pedante ou vitimista ao também revelar certos aspectos egoístas e invejosos da personalidade da Bocchi, o que só enriquece ainda mais a personagem. A protagonista ter ciúmes da Kita quando ela se junta a banda no episódio 3; a frustração de saber que uma criança e um cachorro conseguem socializar melhor do que ela no episódio 7; o fato dela não conseguir lidar com criticismo com a fantástica piada sobre o anime acabar pela Bocchi nunca mais querer tocar guitarra após o comentário da Nijika em pleno episódio de estreia; ou ainda o diálogo na conversa com a banda no episódio 2, com a Bocchi indignada pelo fato de pessoas vencedoras ouvirem Rock que é um gênero feito por pessoas excluídas, o que é bem hilário, são exemplos que demonstram esse rancor inconsciente presente na Bocchi, o que é muito bem feito. E esses são apenas alguns exemplos. A escrita revela um belo dinamismo em relação às piadas, transitando entre as punchlines visuais extravagantes pelas reações da Bocchi, as afiadas linhas de diálogo espalhadas pelo anime ou através das interações das integrantes da Kessoku Band.

Outro ponto positivo foi a maneira como o anime consegue mesclar a temática musical na trama, aproveitando-se da situação para ampliar os temas da obra. Alguns assuntos são explorados, como crescimento e identidade, o que se comunica muito bem com a temática central da obra devido a toda questão da Bocchi com a popularidade. Isso rende passagens bem interessantes, como no episódio 4; naquele momento, Bocchi precisa compor uma letra para a música da Kessoku Band e se força a escrever uma canção mais otimista e motivacional por ser algo mais comercial e acessível — até chegar o diálogo da Ryou. O que a personagem comenta naquele momento se prova como algo mais recorrente do que parece, considerando que existem bandas que tiveram início de carreiras bastante promissoras, mas que acabaram abandonando os aspectos que as faziam tão atraentes em prol de seguir tendências por um apelo comercial maior, ressaltando a importância de se transmitir aquilo que acredita e não o que as outras pessoas querem ouvir.

Há ainda o monólogo da Bocchi sobre a diferença entre esforço e crescimento, mais um dos ótimos momentos em que a escrita consegue sintetizar muito bem a essência da personagem de uma forma muito sutil, certeira e elegante. Mesmo que a Bocchi tenha claramente colocado muito esforço para ser uma grande guitarrista, também deixa claro o quão ingênua e imatura ela é, mostrando como que ela ainda tem muito a aprender para conseguir conquistar aquilo que tanto almeja.

Neste ponto, chega a hora de falar sobre a produção. Tentarei ser o mais sucinto possível, já que para comentar sobre cada mínimo detalhe seria preciso fazer outro texto unicamente sobre o assunto. Existem dois pontos-chave que fazem Bocchi The Rock! ser um dos animes mais incríveis desse ano em questão técnica: o primeiro é a fantástica visão que o Keiichiro Sato teve de usar a estética moe para mostrar que estilos de animação bastante distintos poderiam coexistir de uma forma muito mais complementar do que muitos de nós pensaríamos a princípio. Os designs de personagens simplificados servem como essa base para ele transitar dentre esses estilos de uma forma super orgânica e fluida quando ele bem entender.

O segundo ponto é o fato de absolutamente tudo na produção transbordar expressividade, ao ponto de cada escolha artística tomada ser pensada para fazer com a experiência se torne super intuitiva em praticamente todos os aspectos. Tanto é que, quando alguém questiona como que uma obra audiovisual faria para poder transmitir informações sem o uso de texto, esse é um dos melhores exemplos para se espelhar. A narrativa visual faz questão de mostrar tudo o que o expectador precisa saber, sendo muito mais eficaz do que qualquer diálogo.

Seja nas gesticulações corporais da Bocchi e a constante tentativa de evitar contato visual durante as interações; as apresentações musicais que trazem a atenção a detalhes, típicas de obras realistas, ao ponto das composições e storyboards de certos cenários (ou o jogo de câmeras durante os shows) beirar ao cinematográfico; como também na incrível sequência durante o monólogo da Bocchi no episódio 5, por exemplo, em que há uma sequência de cenas indicando a passagem de tempo até o dia da audição. Os cortes são tão limpos e a transições de cenas são tão impecáveis que ela ainda mantém esse senso de continuidade como se fosse um take de uma única cena, mesmo sendo possível saber que é a junção de várias. Além dos diversos planos e enquadramentos que mostram a Bocchi cortada, afastada, indicando o sentimento de exclusão, rejeição ou isolamento que ela sente estando no grupo ou mesmo em outros locais como em seu colégio.

Ou então as diversas expressões e reações das Bocchi já citadas, que possuem um tom bem mais cartunesco, lembrando bastante de desenhos animados clássicos, algo bem bacana. Sem falar das cenas verdadeiramente experimentais que parecem ter uma forte inspiração de diretores como o Yuasa, Shinbo e até do Ikuhara em certos momentos, entregando uma autenticidade bastante ímpar para obra, especialmente pelo quão evocativas elas são. Um bom exemplo é a cena final do episódio 5, da cota dos 5 ingressos, com uma sequência em live action abarrotada de filtros e efeitos, com os cenários se contorcendo de forma bem atordoante, dando a impressão que tentaram recriar o que seria uma crise de ansiedade; o show do episódio 10 com a estética super psicodélica, alucinante e intoxicante; a canção acústica da Bocchi no início do episódio 3 com os cenários fotorrealistas, que dão a impressão de ser um videoclipe musical; as transições para cenas com bonecos ganhando vida em uma espécie de stop motion experimental cômico; ou a icônica cena do “monstro carente de atenção” do episódio 4 — apenas alguns exemplos da imensa versatilidade que toda a equipe transmite. Mesmo que você consiga prever a punchline que está por vir, dificilmente você conseguirá prever a forma como isto será executado pela direção, fazendo o anime continuar cativante até o seu fim.

E com Bocchi The Rock! sendo um anime musical, eu obviamente não podia deixar de citar a trilha sonora. Por mais que as trilhas instrumentais sejam bem funcionais, o que mais chama a atenção com certeza são as inserts songs e as canções letradas, que mesmo sendo bem inspiradas no gênero do pop punk remanescente da trilha de K-ON, também estão mescladas com outro gênero, que é o emo. Sim, diversas faixas de Bocchi me lembraram bastante o estilo de bandas clássicas de emo que surgiram no fim dos anos 90 e começo dos anos 2000.

Seja pelo fato dos instrumentais serem bem mais melódicos, suaves, sutis e adocicados em comparação às canções de K-ON — que eram basicamente banger atrás de banger —, sendo bem animadas, aceleradas e explosivas, quase sempre trazendo essa energia totalmente infecciosa. Já as letras comentam bastante sobre solidão e a tristeza de estar isolado, agregado a algumas baladas ou canções de amor, que evoca esse aspecto bem emotivo e sentimental tão característico de bandas deste gênero. E isto não é algo ruim, já que considerando a forma como a Bocchi é retratada no anime, faz bastante sentido eles terem feito essa escolha, principalmente por eles também manterem essa característica bem jovial que tinha em K-ON, mas de uma forma diferente.

Além do anime apresentar faixas que são bem boas, como a faixa da opening, a Guitar, Loneliness & Blue Planet. Desconsiderando a apresentação propositadamente ruim do episódio 8, é provavelmente a faixa com o meu instrumental favorito da trilha, com as simples e serenas melodias de guitarras sendo contrastada com movimentadas baterias e impulsionados riffs que traz o sentimento de catarse, muito bom. Já a faixa da segunda apresentação do episódio 8, That Band, é facilmente a mais pesada e distorcida de toda a série, com o groove da bateria, baixo e guitarras sendo bem travado com um belo tempo que mantém o pique e a intensidade da música até o fim, fazendo ela ser bem energética e revigorante.

E a primeira faixa do último episódio, Never Forget, reforça a parte mais pop do gênero de forma bem eficaz, sendo quase uma balada com um instrumental bem doce e um cativante refrão que faz ela se destacar. A única ressalva que tenho com a trilha sonora do anime são algumas faixas passarem batidas por mim, seja pelo instrumental ser um tanto brando ou o refrão não ser tão bom quanto as citadas anteriormente, como as músicas das endings — tais como Distorcion, Karakara, What is Wrong With ou a segunda insert song do episódio final, If I Could Be a Constellation. Felizmente, a maioria das inserts songs são bem fortes e mesmo que ela não seja a minha trilha sonora favorita do ano, aprecio bastante o fato deles terem homenageado e fazerem jus ao som deste gênero de uma forma bem digna.

No fim, mais do que um ótimo anime, eu também acredito que Bocchi The Rock! também é uma obra bem necessária. Não apenas no quesito artístico por conseguir ressaltar o apelo de estilos mais experimentais de animação, transitando entre mídias e tornando isso acessíveis para um grande público, mas também por explorar uma temática bem delicada. Bocchi The Rock! representa pessoas antissociais de uma forma que, em mãos erradas, poderia dar muito errado, mas aqui essa temática é explorada com maestria. O anime consegue trabalhar com sarcasmo e ironia sem nunca soar tosco, ofensivo e de mal gosto. Também consegue explorar o lado mais sofrido deste cotidiano sem soar vitimista, melodramático ou parecendo que está dando tapinha nas próprias costas, algo muito refrescante após tantas representações duvidosas que tivemos nos últimos anos. Tanto é que a única ressalva que tenho com a obra é o enredo ter ficado tão autocentrado na Bocchi ao ponto de todas as outras personagens aparentarem serem apenas mero suportes para a protagonista, sem ter o tempo e o espaço suficiente para brilharem ainda mais, mesmo tendo potencial de irem muito mais além, principalmente no caso da Nijika.

Ainda assim, permanece sem dúvidas como um dos animes mais ousados, inventivos, autênticos e idiossincráticos que vi em um bom tempo. Tal qual como K-ON, Lucky Star, Sora Yori, Hanayamata e Yuru Camp, merece ser lembrado como uma referência dentro do estilo dos “animes moe” pelos próximos anos que virão, entrando facilmente no top 3 dos meus animes favoritos de 2022. Excelente.


Agradecimento especial aos apoiadores:

Victor Yano

Danilo De Souza Ferreira

Apolo Dionísio

Essas pessoas viabilizam o projeto do site e podcast HGS Anime. Se você gosta do que escrevemos e publicamos, e gostaria que continuássemos mantendo esses projetos, por favor considere nos apoiar na nossa campanha PicPay, nossa campanha Apoia.seou doando um PIX para hgsanime@gmail.com.