A euforia musical de Healer Girl

Lançado durante a temporada de primavera de 2022, Healer Girl é uma obra original que marca o retorno do Yasuhiro Irie na direção de um anime, o responsável por dirigir um certo anime que acabou ganhando uma considerável quantidade de notoriedade e popularidade com o passar dos anos chamado Fullmetal Alchemist Brotherhood. Se esse fator já não fosse um motivo suficiente para despertar curiosidade pela série, mesmo que a últimas empreitadas dele como Code Breaker (2012) e EDEN (2021) não tivessem sido das melhores, a motivação para assistir foi ampliada ainda mais por ser a primeira vez do diretor dirigindo um slice of life. Logo, eu estava com esperanças de que Healer Girl pudesse ser uma obra legal ou cativante de alguma forma; ou, no mínimo, melhor que Code Breaker. Após assisti-lo, devo dizer que felizmente as minhas expectativas foram correspondidas, com Healer Girl entregando justamente isso na maior parte do tempo.

O primeiro aspecto que me chamou a atenção está na narrativa. Existe um viés musical muito forte e presente durante toda a trama, pois a premissa inicial se trata de um trio de garotas tentando se tornar curandeiras numa realidade onde a música consegue curar pessoas ao ponto de se tornar um ramo próprio da medicina, assim como a oriental ou ocidental. Além disso, o anime também é uma junção de diversos estilos e abordagens criadas dentro do gênero slice of life com o passar dos anos. Seja pela temática chave citada anteriormente de usar o cenário cotidiano de alguma profissão como desenvolvimento para os personagens, o que lembra obras como Hanasaku Iroha ou Shirobako; os momentos como os episódios 6 e 7, com o humor que lembra bastante a de comédias moe como K-ON e Lucky Star, ou até mesmo episódios como o 5, que contém uma aura bastante naturalista e sutil típica de um iyashikei, como Yuru Camp por exemplo.

Se por um lado essa característica de diversidade tem como ponto positivo impedir que a obra caia na mesmice ou corra o risco de ficar estagnada, já que é como se os roteiristas estivessem tentando oferecer uma variedade maior para o público, ao mesmo tempo isto faz com que a narrativa se torne um tanto bagunçada. Não sinto essas várias influências se complementando como um conjunto para criar algo maior com a soma de todas as partes. Certos episódios, como o 5, soam um tanto deslocados ou destoantes, quase como um OVA inserido dentro da série.

Especialmente no que diz respeito ao quesito da medicina vocal, que acaba virando um conceito vago e não muito explorado como deveria. Eu poderia relevar essa questão se a obra apenas abraçasse esse lado mais simbólico, abstrato ou metafórico da cura, ou se as canções estivessem sendo visadas como um método de relaxamento, como no episódio 2 com a gestante ou a primeira cirurgia do episódio 4, cujo o foco do tratamento é acalmar os cirurgiões do que curar o operado. Porém, a segunda cirurgia no episódio 9 dá a entender que a canção da Ria consegue ter um efeito direto no procedimento ao ponto de fechar as feridas da operação, o que parece um tanto inverossímil mesmo dentro do contexto da obra. Além do roteiro tentar constantemente vender que isto é algo cientificamente comprovado, mas não dar detalhes ou especificações de como que este ramo evoluiu ao nível de se tornar algo tão eficaz da maneira que é apresentada. Também não há detalhes sobre as diferenças de um curandeiro para um cantor ou vocalista normal, além de outros fatores que poderiam fazer este cenário se tornar mais tangível para o expectador.

Dito isso, tenho que dar crédito que mesmo os episódios mais fracos de Healer Girl são bastante assistíveis, não há nenhum momento que eu sentisse que os envolvidos estivessem empurrando com a barriga ou entregando algo preguiçoso. Eles são um tanto aquém mais por não serem tão ambiciosos ou afiados em comparação a outros episódios da série do que por serem de fato ruins, visto que a atmosfera leve e agradável que estamos habituados a ver dentro do gênero consegue ser mantida com consistência. Ainda há momentos em que as ideias mais ousadas e peculiares da série vem a tona com uma boa execução e se transformam em episódios notáveis.

Como o episódio 3, que sem dúvidas é o mais divertido de toda a série. As influências de obras musicas clássicas são aplicadas em duas apresentações no início e no fim, com ambas sendo ótimas a sua própria maneira e se mesclando na trama de uma maneira bem fluida. A primeira transforma o que seria um mero diálogo expositivo em uma sequência bastante criativa e espontânea, especialmente pela performance das personagens parecerem ser algo quase improvisado, que reforça essa aura bem descontraída de forma bem eficaz. E a segunda possui um tom bem mais extravagante e quase teatral, só que executado por um viés mais cômico que acaba funcionando muito bem, ainda mais pelo instrumental ter um aspecto quase circense no momento da apresentação que só faz ela ser ainda mais hilária.

O episódio 7 envolvendo o festival também é outro bom momento. As interações entre as personagens são bem divertidas e trazem essa aura mais jovial e despojada típica do já citado K-ON, além da apresentação no final também ser ótima, entregando a insert song mais agitada e energética da obra. Isso oferece uma mudança de tom bem legal. Há também o episódio 8, facilmente o mais poderoso e dramático da série. O drama da Reimi com a Aoi é bem mais tocante do que eu esperava; há esse delicado cenário de você se sentir culpado ao descobrir que a pessoa que você tanto ama abriu mão de seu sonho por você e a tentativa de tentar retribuir isto de alguma forma, mesmo que o resultado possa ser igualmente doloroso. Adoro tanto o tom sutil da primeira metade quanto os momentos mais intensos e diretos da segunda parte, somado a insert song que mesmo contendo um dos instrumentais mais simples dentre todas da série, é uma faixa que ganha força através da sua simplicidade. Principalmente dentro do contexto do episódio, que dá à música um aspecto bem íntimo que a torna bem emocionante. E mesmo que a cena pós créditos seja bem frustrante e devesse ter sido cortada do anime, não muda o fato que o episódio ainda possui várias qualidades que não consigo ignorar, fazendo ele continuar sendo um destaque.

O episódio 11 é o meu favorito de todo o anime. As influências dos iyashikei retornam da melhor forma possível, com a primeira metade se focando no “treinamento” do trio de protagonistas e com a reflexão de como cada experiência deve ser valorizada por mais singela que ela possa ser, assim como os sentimentos criados através dessas experiências. A atmosfera muito delicada e contemplativa agregada com a mensagem me lembrou bastante das obras da Kozue Amano como Aria e principalmente Amanchu. E a segunda metade do episódio serve como o pico do desenvolvimento do trio principal, mostrando que toda a primeira parte foi uma construção para revelar um complexo de inferioridade misturado com inveja presente nas três. Isso desencadeia na cena da discussão, que mesmo sendo novamente um acontecimento bem mundano e comum, no contexto do episódio se transforma em um momento catártico, simbólico e até um tanto libertador para aquelas personagens. É bem sensível, pois também humaniza toda elas de uma forma que eu não estava esperando e que apreciei demais.

E falando nas personagens, é engraçado perceber que muito da força do seu elenco não vem de uma construção super profunda como aconteceu com Koutarou, ou sequer uma personalidade marcante como as protagonistas de Yuru Camp, mas da dinâmica entre elas. Pois mesmo que a composição delas sejam um tanto comum, as interações entre si são tão orgânicas e pontuais que é um tanto difícil não ser cativado pela química criada. Destaco a Sonia, sem dúvidas a personagem que mais me surpreendeu no anime. Ela tinha tudo para eu odiá-la por ser super orgulhosa e um tanto egocêntrica, mas felizmente a trama não pesa a mão nesse quesito a ponto de fazê-la uma personagem irritante ou detestável, mas apenas o suficiente para criar um contraste bem divertido e saudável com a Kana e a Reimi. Além de demonstrar que mesmo com essa fachada arrogante, ela ainda se importa bastante com o bem-estar das pessoas ao seu redor e possui a preocupação em fazer jus a sua profissão tentando ajudar o maior número de pessoas da maneira que ela pode. Isso é bem bacana e agrega ainda mais ao elenco como um todo.

E a produção consegue ser bem eficaz e agradável na maior parte do tempo, com a estética dos cenários e designs sendo bem coloridos e vibrantes, principalmente nas apresentações, no qual você percebe que a um esforço extra em tentar entregar uma animação bem polida e consistente. Como no show do festival ou em várias sequências das imagens vividas, reforçada através da reluzente fotografia fazendo com que elas tenham uma aura ainda mais brilhante e exacerbada que eu curto bastante, somado a direção que tenta ao máximo evocar essa atmosfera quase mágica durante estes momentos. Mesmo havendo algumas inconsistências de design durante a obra, não compromete o conjunto como um todo.

Mas o ponto alto é sem dúvidas a trilha sonora, não apenas por conter várias insert songs, mas pelos instrumentais dessas músicas serem bastante ricos e exuberantes, além das progressões serem bem maneiras, criando essas espécies de crescendos onde singelas melodias são engolidas por sessões de cordas e metais bem ornamentadas, sinfônicas e grandiosas – como nas canções das cirurgias no episódio 4 e 9. Até mesmo a insert song do episódio 5, começando de uma forma bem sutil com arranjos de violão e se transformando em algo que parece ter saído diretamente de uma fanfarra com tambores, flautas e metais se complementando para criar essa aura bem festiva e celebrativa que soa incrível. Além das faixas mais cotidianas, que mesmo tendo um tom mais ambiente e minimalista, ainda não abre mão da instrumentação orquestrada que dá um aspecto bem elegante e relaxante para trilha em um geral – fora os exemplos que citei anteriormente em outros parágrafos. Algo surpreendente se considerar que o compositor foi o mesmo da trilha de SK8, que eu tinha achado bem fraca, mas que aqui não só acaba se redimindo, como também entrega provavelmente uma das minhas trilhas favoritas do ano.

E a conclusão de tudo isto é que mesmo a narrativa sendo um tanto desorganizada e a falta de coesão em certos momentos impeçam o anime de ser uma referência ou obra-prima dentro de seu gênero, Healer Girl também se prova ser algo mais além do que o mero slice of life genérico e esquecível de temporada, pois apresenta conceitos que soam bem autênticos, refrescantes e até um tanto fora da curva às vezes. Mesmo que eu ache que essas ideias e essa imensa gama de influências pudessem ter sido polidas em algo maior ou mais complementar, isso não muda o fato de Healer Girl ter provavelmente sido um dos slice of life mais peculiares e idiossincráticos que eu vi em um certo tempo. Isto per se foi o suficiente para fazer a experiência ser algo bem interessante e proveitosa no fim do dia e recomendar a obra para qualquer um que aprecie o gênero.


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