The Boxer e o lado negro da glória

Eu tenho que ser sincero ao dizer que, durante um bom tempo, nunca tive um grande contato com quadrinhos coreanos, por mais promissores que eles aparentassem ser. Foi graças a uma tentativa de arriscar algo novo, somado à recomendação de um amigo, que acabei conhecendo o autor Ji-Hoon Jeong, responsável por uma das obras lançadas na década passada mais impressionantes que li, The Horizon. Um manwha de poucos capítulos que explora com maestria uma série de assuntos bastante complexos e filosóficos, como morte, vida, violência, guerra, a real natureza do ser humano e a sua insignificância perante a natureza ou ao tempo — entre outras coisas. Como comento na minha análise, a obra ainda oferece uma escrita bastante poética e inspirada, além de conter uma das narrativas visuais mais incríveis que já vi em quadrinhos até hoje — não há uma página que não seja inventiva, criativa e imersiva, pensada justamente para fazer da leitura uma completa experiência sensorial em todos os sentidos. E a partir da minha grande experiência com The Horizon, e através da recomendação de outro amigo meu recentemente, descobri que o autor retornara com uma nova obra, o que obviamente me deixou bastante curioso para ver qual seria a sua próxima empreitada artística.

Assim conheci The Boxer, obra de 123 capítulos, a mais longeva do autor até agora. A obra parecia um sinal de ser mais uma tentativa de criar uma grande constatação sobre algo, já que considerando o seu histórico, não imaginaria outra razão para ele fazer essa escolha se ele não tivesse algo muito importante para transmitir. Ao terminar a leitura, percebi que foi exatamente isso que The Boxer se provou ser. O manhwa possui as características básicas para ser definida como uma história de esporte, mas, ao mesmo tempo, também demonstra ser totalmente atípica em comparação a qualquer outra série dessa temática.

Começando com a sua premissa, que a primeira vista, não se difere de nenhuma outra obra tradicional do gênero. O protagonista Yu é acolhido por um renomado treinador chamado apenas de “K”, que irá prepará-lo para ser o maior lutador de boxe da sua geração após descobrir o imenso talento natural que ele possui para o esporte. Mas se você acha que esta jornada até o topo estará repleta de mensagens motivacionais sobre união, paixão, amizade e força de vontade como Haikyuu!, Kuroko no Basket, Megalo Box, Uma Musume e diversas outras obras, você está terrivelmente enganado. Ao invés disso, o que temos é uma espiral decrescente, com o Yu tendo que sacrificar toda a sua empatia, moral, valores e humanidade em prol de se tornar o melhor dos melhores.

E é devido à isso que o autor faz questão com que as lutas não sejam nem de perto feitas para o leitor se empolgar, torcer ou vibrar — mas sim causar o exato sentimento oposto. A obra mostra que a habilidade do Yu é tão imensa e desproporcional a de seus oponentes que quase todas as lutas com ele são completamente unilaterais, independente do quão forte ou perigoso o seu oponente possa parecer a princípio. Principalmente por K ver o esporte como um método de mostrar a superioridade dos mais fortes sobre os mais fracos, seguindo uma filosofia praticamente eugenista, sempre fazendo questão de fazer com que o Yu derrote os seus oponentes da forma mais lenta, humilhante e angustiante possível, transformando as supostas lutas em literais sessões de torturas físicas e psicológicas com crueldade. Isso acontece ao ponto de diversos personagens repetirem constantemente que esses confrontos estão bem longe de ser boxe. Algo equivalente a você ver as obras do ONE como One Punch Man e Mob Psycho 100 pela vertente mais violenta e sombria possível.

Mas o que fazem essas partidas serem tão incríveis não é a violência em si, mas sim o fato do autor aproveitar essas disputas tanto para desenvolver os oponentes quanto para discutir uma gama de temáticas existenciais, filosóficas ou sociais que agregam sempre uma série de camadas. Isso faz com que essas partidas sejam muito mais do que apenas um mero recurso de choque gratuito, além de que a obra mostra esse ambiente de lutas que os lutadores vivem como um local bastante cruel, tóxico, perigoso, corrupto e nem um pouco convidativo para se estar. Todas essas batalhas grotescas são sempre vendidas como um cruel entretenimento para cativar a plateia e há a constante sensação de que todos esses personagens são completamente descartáveis no momento em que eles deixam de vencer as lutas nos olhos tanto do público, quanto de quem administra. Isso novamente vai totalmente na contramão daquilo que você esperaria ver em obras habituais do gênero. Dá até mesmo a impressão do leitor estar lendo uma obra de esporte escrita por alguém que detesta obras de esportes, ou no mínimo, que possui uma grande ressalva ou discordância com a maneira de como essas obras transmitem essas mensagens motivacionais de esforço e determinação.

Esse é um sentimento reforçado principalmente no arco do Takeda. Nele, o manwha assume um tom quase metalinguístico, o personagem é essa grande representação do esforço, determinação e trabalho duro. O resto do elenco constantemente se referencia a ele como um verdadeiro protagonista de história de quadrinhos, de série de TV ou mesmo como um verdadeiro herói, visto que realmente ele soa como o grande amálgama de todos os arquétipos de protagonista de shounen que estamos acostumados a ver sendo recriado a décadas a essa altura — com a mentalidade de que a coragem é a verdadeira força. A grande diferença é que de que isto não é exaltado como algo nobre ou admirável, seja pela trágica revelação sobre o que aconteceu com a sua família, mostrando o quão perigoso e inconcebível seria você executar essa filosofia no mundo real, quanto pela obra mostrar essa determinação inabalável como consequência de uma possível obsessão causada por um medo deste imenso esforço ter sido em vão. Takeda não tem outra opção a não ser continuar treinando até ele conseguir o que ele quer, já que se ele desistisse, seria o mesmo que mostrar que todo o seu sacrifício foi em vão, o que desencadearia em uma completa perda de propósito, acarretando um desfecho bastante devastador e brutal na luta contra o Yu. 

Ou ainda em arcos que demonstram essa constante busca pela glória como algo completamente sem sentido ou uma tentativa frustrada dos personagens preencherem um vazio existencial dentro de si próprios, como o arco do Qasim e principalmente o do Jean Pierre, com este último sendo um dos meus favoritos da obra. O arco retrata um lutador completamente obcecado com o conceito de perfeição e dedicando toda a sua vida para se tornar o lutador de boxe perfeito devido a uma perspectiva bastante niilista sobre a humanidade, mas que, consequentemente, acaba descobrindo que essa decisão ironicamente fez ele se tornar exatamente o tipo de pessoa que ele sempre quis evitar ser, entregando uma das conclusões mais emocionantes e comoventes da série. 

Além de outros arcos como o do John Taker, que seguem por um espectro mais social, mostrando os administradores desses eventos acolhendo este lutador em uma condição social pouco favorecida e o fazendo interpretar um personagem complemente detestável em prol do lucro e do engajamento. Esse elemento atinge o ápice no arco dos irmãos Santorino, sendo facilmente um dos mais chocantes e angustiantes da obra. K se aproveita dos métodos sujos utilizados por eles para vencer a luta para criar um plano e fazer com que o Yu finalize-os de uma forma absurdamente perversa. Quanto mais a partida avança, e os detalhes a respeito da história desses irmãos e os métodos tomados pelo K se revelam, mas desconfortável e agonizante se torna a leitura. A tensão é elevada constantemente a um nível tão extremo ao ponto do leitor ranger os seus dentes a cada capítulo em que a partida perdura. O arco reforça a corrupção presente na administração das partidas e como eles não hesitam em permitir que qualquer um seja sacrificado desde que tenha um retorno positivo por parte da plateia, até a subversão de que o Yu é um personagem muito mais perigoso e cruel do que qualquer um mostrado até então, tornando-se um personagem cada vez mais corrompido, especialmente por ele não ter nenhuma hesitação em seguir as ordens totalmente desprezíveis do K. 

E falando nele, a revelação de seu passado também traz de volta uma crítica sobre um tema bastante presente em The Horizon, que é a guerra e como ela pode corromper totalmente as pessoas. Seja pela perigosa metodologia de associar a violência com eficiência no meio de um campo de batalha ou a incrivelmente sombria virada que ocorre no meio da história mostrando a filosofia de “sacrificar uma ovelha para salvar o rebanho” se voltar contra ele e o fazendo enlouquecer de vez. Ele chega ao nível de enxergar a violência como uma libertação e o assassinato como o pináculo da superioridade e supremacia humana, além de existir constantes passagens sobre morte e a efemeridade da vida, ampliando a temática ainda mais ao oferecer uma retratação de sua psique completamente doentia e uma boa base do porquê dele agir da forma como ele age, que é bem interessante. 

No fim, a obra finalmente amarra as suas pontas em seus dois arcos finais. O primeiro é do Aaron, onde a obra demonstra que ele é o único lutador capaz de lutar de igual para igual com o Yu, não apenas por ser obviamente muito forte, mas também por haver um ótimo paralelo de ambos verem o seu próprio talento como um imenso fardo a ser carregado. Eles são forçados a destruírem todos os sonhos e ambições das pessoas que os enfrentam, mesmo ambos não conseguindo demonstrar nada além de indiferença ao esporte que eles praticam, reforçando essa cruel mensagem de injustiça transmitido durante toda a obra até aqui e com mais um desfecho incrivelmente dilacerante. E o segundo sendo finalmente a grande revelação do passado do protagonista, indubitavelmente o momento mais arrebatador, depressivo, tortuoso e trágico de toda a série. 

E o mais impressionante é que nas mãos erradas, esse arco tinha tudo para se tornar algo bastante gratuito, ou desencadear em algum cinismo barato e no pior dos casos se tornar uma paródia de si mesmo. Mas o autor tem tanta sensibilidade e tato na escrita que ele demonstra que a razão de The Boxer ser tão bom não é o quão depressiva e desoladora ela é, mas a habilidade e o cuidado de fazer com que cada um desses momentos sempre tenha peso e importância. E aqui neste final não é diferente, há uma série de simbolismos e referências religiosas, como cruzes e crucifixos aparecendo em diversos momentos nos cenários e permitindo uma série de interpretações, como a dualidade de luz e trevas; o fato do oponente final do Yu ser considerado o “Deus do boxe” enquanto o Yu sempre foi referenciado por diversos personagens do elenco como um “diabo no ringue”; ou uma referência de que todos os personagens de destaque da obra estavam enfrentando uma provação tal qual a via crucis, para só então se libertarem e renascerem como uma nova pessoa. 

Todas essas referências culminam no grande encerramento da trama principal, que não darei muitos detalhes para não estragar a surpresa, mas posso dizer que a forma como o autor consegue entregar uma mensagem de perseverança com uma única frase, mesmo com a obra lembrando constante o quão horrível o mundo pode ser, é apenas genial. É algo tão simples, mas que toda a construção e o paralelo feito com o cristianismo devido a estes simbolismos durante seu decorrer faz com que esta frase ganhe um significado tão imenso e ressoe tão forte no leitor que é praticamente impossível de ignorar, especialmente em uma época em que os ensinamentos da religião já foram completamente deturpados e distorcidos. É bastante tocante ver isto sendo transmitido desta forma tão bela, poética e sensível, ao ponto de se tornar muito mais inspirador do que se poderia prever a princípio, tornando-se um dos melhores finais que vi em um longo tempo. Simplesmente fantástico. 

E por último, existem os capítulos considerados spin off após o suposto capítulo final, desenvolvendo dois personagens que aparecem no prólogo da obra e que são deixados de lado durante a trama principal, o Jay e o Ryu, que também merecem menção. Claro, se você me perguntar se estes arcos são tão ousados e fora da caixa quanto os arcos principais, não necessariamente. Principalmente por eles seguirem a estrutura comum de obras de esporte, Jay é o garoto que era bastante fraco, mas que se torna um campeão com o seu trabalho duro, sem nenhuma grande surpresa, fazendo inclusive este ser o arco mais fraco da obra. Em compensação, o arco do Ryu permanece ótimo, mostrando como ele quando criança era um gênio com o mundo aos seus pés, temido por todos, mas após a derrota para o Yu e uma série de decisões erradas, acabou ficando para trás, sendo forçado a repensar suas atitudes e recomeçar a sua reerguida do zero, desencadeando em um sólido arco de redenção. O ápice é a luta final entre o Jay e Ryu, que mesmo seguindo as convenções tradicionais do gênero, não fica nada a dever, com o nível de escrita sendo equivalente aos melhores momentos de obras como Haikyuu!, Kuroko no Basket e Megalo Box, por exemplo. Além dele incrementar as pontas abertas deixadas no capítulo 104, que com certeza agradará bastante quem queria ver um final mais conclusivo, especialmente porque admito que ele consegue ser bem emocionante e atinge bem forte (mesmo eu ainda preferindo o final do capítulo 104). 

Chega a ser impressionante perceber que, no fim, alguns comentários feitos por pessoas que taxavam a obra como o “Oyasumi Punpun dos esportes” não era algo tão descabido assim, pois se tem uma obra do gênero que merece essa alcunha é The Boxer. Por mais pesada, grotesca, trágica, cruel, niilista e angustiante ela possa ser, ela também consegue ser reflexiva, sensível, poética, emocionante, inspiradora, mas acima de tudo, incrivelmente intensa praticamente de ponta a ponta. O autor consegue ter a habilidade de extrair uma leva de sentimentos em cada arco de novo e de novo, ao ponto de não ter tido nenhum arco que eu considerasse ruim. Tanto que se eu fosse ter que citar algum defeito, seria a luta de estreia no Jay na trama principal, que além de ser um momento bem clichê da obra, poderia ter sido muito bem movido para o spin off nos capítulos finais. Além do arco do Victor que por ser um arco completamente focado em comédia, e as piadas serem bem absurdas e completamente nonsense, algumas pessoas podem achar ele deslocado dentro da trama, principalmente pelo quão destoante é o clima desse arco comparado a todos os outros da obra. Ainda assim, mesmo sendo o mais fraco da trama principal, ainda considero ele um arco bem válido, não apenas por algumas piadas serem hilárias, mas por haver passagens que colaboram e agrega a temática central da obra, como o diálogo no qual o Victor fala que os dinossauros eram as criaturas mais fortes da terra e que a maneira na qual eles foram extintos é a prova que os serem humanos nunca conseguirão ser mais forte que a natureza (que em época de aquecimento global, soa mais verídico do que nunca, devo dizer). 

Fora isso, realmente não tenho mais nenhuma ressalva. O autor prova no final das contas que The Horizon não foi um golpe de sorte, entregando mais uma obra super coesa, consistente, fora da curva, única, ousada e impactante como poucas. Apresenta uma grande escrita, grandes personagens e uma bela arte, se consolidando facilmente como uma das melhores obras de esporte que eu já vi até hoje. Com certeza recomendado para quem quer ler uma obra de esporte com uma abordagem diferente do habitual ou apenas queira apreciar uma boa história. Excelente.


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