Crítica de “O menino e a garça”

Autor do texto: Carlos Dalla Corte do site Devaneios Cinéfilos.

Hayao Miyazaki é um homem de opiniões fortes e que nunca deixou de emiti-las, mesmo que não fossem populares. Suas frases e entrevistas se popularizaram nas redes sociais dos últimos anos pelo teor cru, direto e bem pessimista de analisar o cenário de animação japonês e mundial e até da vida em si. Comentários que por vezes resvalam na rabugice da idade, mas sem deixar de contar com doses preocupantes de verdade. E se parece, superficialmente, contradizer a magia de seus filmes, especialmente seus primeiros trabalhos, já fazem boas décadas que o trabalho de Miyazaki resvala num mundo em corrupção que busca oferecer alguma chance de redenção e recomeço. Ao menos na arte.

São muitos os motes nos trabalhos do diretor: seres fantásticos, personagens femininas fortes e em formação, num misto para compreender o bem e o mal, navegar entre ambos mas conseguir escolher o caminho correto, com metáforas claramente antibélicas e ambientalistas. Pouco disto não está em seu “novo-último” filme, O Menino e a Garça, mas que faz muito mais sentido no filosófico e abstrato título japonês: “Como você vive?“.

O começo do filme, aliás, até lembra mais as indagações antropológicas sóbrias de seu parceiro, o falecido Isao Takahata, antes de se direcionar ao lúdico fantasioso típico de Miyazaki. O que foi se distanciando em sua filmografia conforme envelheceu e alterou uma visão de mundo, entretanto, é um descarte do escapismo como solução de algo – não que não tenha sempre sido um elemento em suas histórias, mas não com tanto esforço.

Enxergar o mundo indo em uma direção que você desaprova, ver seus entes queridos perecendo e uma falta de perspectiva ao seu principal legado neste plano, com seus valores substituídos rapidamente, devem pregar peças pesadas em qualquer um. Talvez por isso, e por não saber nem conseguir fazer mais nada, que o cineasta tenha repetidas vezes deixado sua anunciada aposentadoria. E sem nunca deixar de ser fascinante, rico e inovador, a filmografia de Miyazaki é mais do que uma obra artística, e sim a obra de um homem em metamorfose.

É um sentido duplo para seus protagonistas juvenis. Se relacionar com as crianças e tentar oferecer esta esperança de que estas produzam um futuro melhor do que o que se desenha, e também permitir que o personagem cresça e amadureça suas crenças tanto quanto o diretor. O protagonista da vez é um menino, Mahito, que segue o caminho contrário da maioria das películas do artista. Costumeiramente com uma inocência desafiada por situações que exigem autonomia e amadurecimento, o garoto já surge num niilismo e isolamento de alguém que não sabe lidar com um trauma acachapante. Quando a fantasia poderia ser um escape, mas não se mostra verdadeiramente possível dentro de um cenário em tamanha degradação.

Mahito só embarca para o fantástico para resgatar algo, não por desejo; sim, necessidade. E este novo plano está muito distante de uma utopia para afugentar seus tormentos. O mundo que serve como um ínterim entre a vida e a morte é, por isto mesmo, uma meditação sobre a finitude das coisas, como a criação e a destruição são tão interligadas, imediatamente conectadas. Uma alma prestes a nascer que é obliterada por um pelicano faminto. O próprio pelicano incinerado e antagonizado num cenário de miséria e falta de opções. A cena mais tocante em um filme cheio delas é justamente esta exposição nua do cinzento que há entre o branco e o preto. Pode bem ser uma analogia aos soldados que seguem ordens em guerras, findando vidas, mudando destinos e destruindo famílias por passividade protocolar e desespero, ou tão somente uma reflexão sobre destino e escolha.

A cena visualmente mais bela e bem trabalhada do longa é, não por acidente, a que retrata a morte e aniquilação. Não para buscar o belo nisto nem romantizar o trauma. E sim, aceitá-lo como perene no ciclo da vida e da morte. Muito se diz de como Miyazaki se retratou no personagem que controla o outro mundo, em seus últimos suspiros e em busca de um sucessor para seu trabalho. Ele mesmo dá a resposta, diferente do que o personagem e público aguardariam.

Hayao disse que o título é uma pergunta a qual ele mesmo não tem a resposta. Talvez não seja sobre crer no que escreve, mas torcer para tal, acreditar e buscar transmitir tais valores. Mais do que um trabalho egocêntrico, e sim um compartilhamento, artisticamente belo, é claro, mas tão rico como texto, estudo e meditação. Sempre me lembrarei de Shin Kamen Rider, de outro mestre do anime, mas também da filosofia, da vida, Hideaki Anno, e o conceito primordial que move o filme, de como felicidade e dor só se diferem por um traço na grafia japonesa.

Só resta decidir o que fazer com o tempo que nos é dado, como disse Gandalf. Cair no desespero de perceber para onde vamos, ou fazer o que pudermos para aceitar a inevitabilidade do fim e do sofrimento, e encontrar alguma alegria dentro disto. O cinza entre o escuro e o claro. E no fim, com ou sem nós, a vida seguirá, Como você a vive?