Pluto e a definição do que nos faz humanos

Sendo a adaptação da releitura de um arco da icônica série Astro Boy, criada pelo grande Ozamu Tezuka, pelas lentes de ninguém menos que o Naoki Urasawa, o responsável por criar algumas das obras de mistério mais notórias dentro da indústria de animes e mangás, como Monster, 20th Century Boys e Billy Bat, com todas sendo referências até hoje mesmo após décadas do seu lançamento, não é difícil descobrir a razão de Pluto ter sido sem dúvidas, um dos animes mais esperados e antecipados de 2023 até aqui. Sem contar a série de adiantamentos que o anime sofreu para finalmente poder ver a luz do dia neste ano. Por mais que esta obra tenha as típicas características que fazem as obras do Urasawa serem o que são, Pluto soa um tanto distinto em comparação aos seus outros projetos anteriores. Vamos falar sobre isso.

A primeira grande diferença que noto é o fato da obra não ser nem de perto tão ambiciosa, grandiosa em apresentação ou densa e extensa na sua narrativa. Pluto aposta em uma abordagem muito mais enxuta, direta e linear em comparação aos múltiplos núcleos e subtramas de personagens de Monster, a detalhada e vasta construção de mundo e saltos temporais de 20th Century Boys ou os diversos e específicos recortes históricos presentes em Billy Bat. A premissa basicamente gira em torno dessa série de assassinatos em torno dos 7 robôs mais avançados do mundo através deste ser misterioso chamado apenas de Pluto e a busca para achar quem é o responsável por isto sendo o grande ponto central da trama. O que eu particularmente não vejo como algo ruim, já que mesmo que eu entenda que tenha pessoas que esperariam um foco ou desenvolvimento maior sobre este tema da tecnologia e a forma como esta sociedade funciona, isso não significa que não tenha bons comentários sociais e cenas e diálogos marcantes por toda a série. Principalmente pelo Urasawa usar esse conceito de um mundo em que os robôs evoluíram tanto ao ponto de adquirirem sentimentos para fazer reflexões bem interessantes não só sobre discriminação e intolerância, mas também as características que nos definiria como humanos em comparação aos robôs, enquanto os humaniza durante este processo.

E a primeira cena que melhor sintetiza isto é claramente a que se foca no North No.2, mostrando nessa peculiar relação o compositor bastante amargurado em busca de compor sua grande obra-prima. Este momento não apenas é sem dúvidas um dos momentos mais tocantes e comoventes da série por essa construção ser bastante gradual e bem feita, como também trazem esse debate sobre o que de fato definiria a arte em um universo tomado por tecnologia e máquinas super avançadas, que com certeza foi um ponto que me agradou bastante. Assim como a analogia do compositor só ter conseguido compor a faixa ao se lembrar daquilo que ele sempre fez questão de rejeitar devido à virada em relação a sua história ser bem poética.

E isto se repete em outros momentos durante o anime como o arco do Epsilon, que é basicamente o Thorfinn deste anime, sendo o mais pacifista dentre os robôs, mesmo tendo o maior poder de fogo dentre todos eles. O anime mostra o quanto ele foi rejeitado pelos seus parceiros por se recusar a lutar e o alto preço que ele paga ao seguir a sua ideologia em uma situação tão extrema quanto essa, que com certeza traz um aspecto bem triste e amargo para a trama. Assim como o Gesicht, que é sem dúvidas o personagem mais bem desenvolvido de toda a série. Seu arco traz uma afiada e cruel constatação de que independentemente do quão prestigiado um agente como possa ser, ele pode ser facilmente descartado e não passar de um mero objeto defeituoso no momento em que ele deixar de seguir as ordens das pessoas do alto escalão, trazendo mais um desfecho completamente dilacerante e de partir o coração. Principalmente quando se descobre o que eram os tais sonhos esquisitos que o Gesicht teve durante toda a série. O que, inclusive, poderia muito bem servir como uma analogia da forma como os Estados Unidos tratam os seus soldados e o descaso por parte do governo quando eles não conseguem ser mais aptos a servirem o país em guerras.

Isso demonstra um dos motivos do porquê o Urasawa ser um autor tão bom, já que mesmo essas cenas sendo emocionalmente poderosas e trágicas por si só, elas também trazem essas reflexões presentes no subtexto que fazem elas serem ainda mais profundas e fascinantes. Algo que a série reforça ainda mais quando você percebe que este contexto da guerra da Pérsia apresentado no anime não só é mostrada como a grande razão destes robôs quererem mudar, devido às memórias traumáticas e arrependimentos derivadas desse conflito, mas como algo de extrema importância e intrínseco com o surgimento do Pluto. Isso intensifica ainda mais esta mensagem anti guerra trazida pela obra, através desta ideia do constante ciclo do ódio e do Pluto como essa criatura criada para punir quem propagou a matança e chacina por lá, mesmo anos depois do ocorrido.

Mesmo com este tom introspectivo, político, e às vezes, quase existencialista, a obra não esquece da tensão e do suspense presente na investigação e nos assassinatos envolvendo o Pluto. E isso acontece principalmente pela razão de que a cada robô que morre, mas implacável e poderoso o Pluto parece. Ao ponto da ameaça ser tão grande que você constantemente se pergunta se realmente existe alguma forma de impedi-lo, lhe deixando totalmente vidrado e curioso para ver o desfecho praticamente durante toda a série.

A maior ressalva apontada por algumas pessoas em relação ao enredo, e que eu tenho que concordar em partes, é o seu final. Sem dúvidas, é o elo mais fraco de toda a trama. Urasawa insere certos conceitos de uma forma bem abrupta, apressada e quase desleixada. A revelação de que o plano de destruição dos robôs teve o aval do presidente dos Estados Unidos para manter a hegemonia de seu país foi algo bem legal, mas o surgimento daquele urso, que aparentemente era o grande manipulador por trás de tudo aquilo… Não muito. E o conflito final do Atom tendo que impedir a bomba e a luta final com o Pluto só parece uma tentativa de criar um clímax épico e heroico que acaba destoando do tom da série. O grande ponto forte do anime até aqui nunca foram as lutas e como consequência, a redenção do Pluto e alguns discursos sobre a esperança na humanidade soam um tanto forçados em comparação a outros momentos da série.

O maior ponto para se elogiar sobre o final é a exata última cena da obra, que é tão boa, mas tão boa, que me faz querer relevar uma boa parte destes deslizes. Essa cena traz um tom bastante melancólico que torna os discursos de esperança citados durante o episódio menos uma mensagem otimista, inspiradora ou motivacional, mas um ato de desespero de querer achar um propósito para toda esta tragédia que ocorreu, se convencer que de o sacrifício das pessoas mortas não foram em vão. Especialmente ao notar que a grande motivação para tudo que ocorreu foi causado por nada mais que a ganância e a crueldade humana, só reforçando esse sentimento de vazio, tristeza e até mesmo derrota, mesmo que o Atom tenha conseguido salvar a terra no final.

Falando sobre a produção do anime, é eficaz. Se por um lado ela tem seus pontos fracos, com o principal dele sendo obviamente as cenas com presença de efeitos digitais e CGI, cuja composição é tão fraca que a animação 3D não se mescla bem ao cenário e cria um aspecto bem estranho, feio e até tosco em praticamente todas as aparições do Pluto, em cenas ou flashbacks envolvendo explosões, por outro, o anime compensa com seus designs de personagens muito belos, bastante complexos e detalhados. Isso torna os personagens bastante expressivos, ajudando a imersão na trama, principalmente nas cenas envolvendo longos diálogos. Sem contar na impressionante consistência mantida nos desenhos desses designs durante todo o anime.

E mesmo a direção não sendo tão incrível ao ponto de ser algo acima da média, existem momentos de inspiração, principalmente nas cenas mais dramáticas envolvendo o Gesicht, North No.2 e o Epsilon citadas anteriormente. Também gostei bastante da trilha sonora, que é bem clássica e tem um tom bastante sombrio, carregado e sóbrio, mas também elegante na maior parte do tempo.

Como alguém que já tinha lido e amado o mangá, revisitar a obra através desta adaptação apenas reforçou que ainda gosto bastante de Pluto, e que ela é mais um ótimo acréscimo ao catálogo do Urasawa. Por mais que eu entenda a lógica das pessoas que se sentiram decepcionadas pela série não ser tão fora da curva ou elaborada quanto os seus trabalhos anteriores, não muda o fato de que Pluto ainda apresenta uma boa escrita. A obra possui um memorável elenco de personagens, poderosos picos dramáticos, um mistério que consegue ser estimulante e envolvente praticamente do início ao fim e comentários sociais que conseguem ser pungentes o suficiente para mostrar o horrível dano causado não só pela guerra, mas pelo ódio e ganância humana de uma forma que ainda soa atual e relevante mesmo nos dias de hoje. No fim das contas, isso prova que mesmo uma das obras mais simples do Urasawa ainda consegue ser muito superior em comparação a várias outras lançadas dentro deste gênero, tornando-se facilmente o meu anime de mistério favorito de 2023, roubando o posto que era anteriormente de Tengoku Daimakyou. Muito bom.