Blue Period e a metamorfose através da arte

Mesmo tendo conhecimento do quão elogiado e aclamado o manga Blue Period é, ao nível de ter até mesmo ganhado prêmios durante a sua publicação, admito nuncar ter me interessado em pesquisar mais a fundo ou correr atrás de saber mais sobre do que se tratava a obra. Até que um amigo amigo meu insistiu para que eu o lesse, e nisso, acabei dando uma chance a obra escrita pela Tsubasa Yamaguchi lançada no ano de 2017.

 

Assim eu comecei a leitura de uma obra praticamente às cegas, sendo um tiro no escuro visto que a única coisa que eu sabia a respeito era o fato de ser ser um manga sobre arte. Após ler, devo dizer que é bem fácil entender a razão e o apelo por trás de tanto prestígio, já que Blue Period se provou como uma obra bem mais peculiar e elaborada do que pensei inicialmente, mesmo que não se anuncie como tal em um primeiro momento.

A sinopse gira em torno de um garoto chamado Yatora Yaguchi, um estudante que leva a sua vida de uma forma bem alheia e descompromissada até o momento que ele se depara com uma pintura feita por um membro do clube de artes de sua escola. A pintura faz com que ele não só se junte a este clube, mas também o motiva a tentar o exame para a universidade de Geidai, que é a melhor escola de artes do Japão, assim como uma das mais concorridas. A obra nos convida a acompanhar toda esta jornada do Yatora em virar um verdadeiro artista em prol de ingressar nesta universidade.

Uma premissa que parece bem comum, simples e direta à primeira vista, sem nada de muito surpreendente, reforçado ainda mais pela forma super casual e quase repentina que a trama a estabelece durante o seu início. Conforme os capítulos avançam, não apenas várias nuances vão sendo adicionadas, expandindo as temáticas da série, como também a narrativa vai revelando certos aspectos bem próprios e distintos de desenvolver esta premissa. 

O primeiro aspecto é que que quando digo que Blue Period é um mangá sobre arte, realmente é na forma mais literal da palavra, pois se em diversas outras obras como Nana, Sakamichi no Apollon, Given e K-ON, a arte (que no caso destes animes é a música) é aplicada mais como algo estético ou um pretexto para introduzir algo maior, fazendo com que ela se torne um elemento secundário ou até terciário dentro da trama. Blue Period parece segue por um caminho totalmente oposto, em que todos os personagens da série, sem exceção, parecem servir em prol da arte. A pintura tem um elemento absolutamente importante e crucial na construção, composição ou desenvolvimento desses personagens, seja de forma direta ou indireta, fazendo com que a arte não seja só o tema central do manga, mas também o elo que conecta todos os outros temas que a obra posteriormente queira desenvolver. 

Um outro aspecto curioso é a obra usar dois tipos de abordagens para poder explorar e trabalhar o tema da arte. A primeira delas com a narrativa seguindo por um lado bem mais técnico e teórico, com várias e várias passagens e textos contextualizando a imensa gama de fatores necessários para poder criar uma pintura que possa ser avaliada de forma profissional. Cores, composições, o uso de dessins e esboços, o processo de preparação das tintas, o formato da tela, as diferenças entre os diversos tipos de cursos de arte disponíveis (como pintura a óleo, pintura japonesa, pintura antiga, etc), assim como diálogos focados na história da arte e grandes artistas como Picasso e Velásquez, tal qual como explicações sobre movimentos como impressionismo e arte moderna acompanhado por diversas referências de obras de artes entre as páginas. E por mais que isso crie um tom bem denso a leitura, prova-se como algo bem necessário, tanto por lhe oferecer uma base sobre o que o Yatora precisará fazer para poder ingressar na sua vida acadêmica dentro da Geidai, quanto por também parecer que isso é uma decisão da autora de desmistificar essa visão errônea e às vezes preconceituosa de que pra fazer uma obra de arte é só fazer um desenho, quando existe uma série de elementos para se avaliar antes mesmo de sequer dar a primeira pincelada em uma tela. 

E na segunda abordagem, a narrativa explora a arte de uma forma mais interpretativa e filosófica, ao trazer diálogos e questionamentos tanto sobre a definição da arte quanto os significados artísticos por trás de cada tema oferecidos em exames acadêmicos nestes cursos de arte. A obra ainda foca nas perspectivas e na forma como cada um daqueles personagens enxergam e absorvem a arte através de seu ponto de vista pessoal, mostrando que no mundo da arte, geralmente nada é aquilo que parece ser, com algo que parece muito simples e óbvio podendo esconder uma leva de camadas por trás do que é mostrado na superfície. 

A frase acima serve muito bem como uma analogia para os personagens da série, visto que a autora aproveita a subjetividade desses temas artísticos postos em exercícios ou em exames para criar metáforas ou paralelos sobre os sentimentos de seu elenco e explorar a psique dos mesmos através destes métodos citados anteriormente,. Na maioria das vezes, não haverá uma contextualização tradicional e mastigada de suas personalidades ou da razão de serem da forma como são, logo, uma das principais formas que a narrativa oferece de se descobrir mais sobre os seus comportamentos e visões de mundo é através da maneira como esses personagens absorvem ou se expressam através da arte baseados em suas experiências pessoais. 

E aproveitando a deixa, chegou a hora de falar sobre o nosso protagonista Yatora. Ele é, sem dúvidas, o personagem mais importante de toda a obra, com a trama girando e sendo construída quase que inteiramente a partir de sua perspectiva e ponto de vista. E digo com tranquilidade que ele é um dos melhores protagonistas que eu já vi em animes e mangas em um certo tempo devido a uma série de razões. A primeira delas é o fato da autora ter tido a ideia genial de fazer com que o seu amadurecimento pessoal e o seu desenvolvimento como artista seja algo tão intrínseco e entrelaçado que a linha divisória que supostamente separaria esses núcleos é completamente dissipada em diversos momentos do mangá, já que para ele poder criar uma obra de arte digna o suficiente para passar na Geidai, não basta habilidade técnica, mas acima de tudo, a capacidade de comunicar as suas percepções e sentimentos através da arte da forma mais expressiva. Isso acaba levando o Yatora a entrar em uma grande jornada de autodescobrimento em prol de poder criar a melhor pintura que ele pode entregar, com ele tendo que rever e repensar a sua visão a respeito de praticamente tudo. Seja a arte, as pessoas que o rodeiam, a sua rotina, a sua cidade e claro, a sua visão sobre si próprio. 

E isso só é possível pela autora também retratar o Yatora não apenas como uma pessoa bastante insegura e sensível, mas também vazia. E quando eu falo isso, não é no sentido edgy de personagens frios e isentos de qualquer sentimentos, caráter ou moral, mas no sentido dele nunca ter parecido ter nenhum tipo de sonho ou atividade que pudesse despertar qualquer tipo de paixão, entusiasmo ou ambição, alimentado por um grande senso de indiferença em relação a sua rotina, com muito dos seus esforços sendo focados apenas em levar uma vida estável em prol de agradar os seus pais. E no momento em que ele se apaixona pela arte e decide apostar todas as suas fichas em seguir esta carreira, ele passa por uma verdadeira montanha russa de sentimentos devido aos vários obstáculos para chegar neste objetivo que obviamente vai o modificando como pessoa de maneira cada vez mais significativa. 

Inclusive, todo este primeiro arco do mangá me lembra muito de filmes como Whiplash e Cisne Negro, em que os protagonistas também abrem mão de seu bem estar físico e mental em prol da obsessão de se tornar o melhor dentro da sua respectiva área artística. Com a grande diferença de que Blue Period não só segue por um viés mais otimista e esperançoso, mas também a razão destes conflitos do Yatora ser criado unicamente através de fatores internos causados dentro de sua própria mente comparado aos dois filmes citados anteriormente, como o fato dele se sentir indigno de tentar ingressar na Geidai por se comparar a outros concorrentes mais habilidosos e experientes.

Assim como qualquer crítica negativa vinda de seus professores ou algum deslize que ele cometa ter um tremendo impacto na sua confiança, auto estima e até em sua motivação, que o leva a ter crises de depressão, ansiedade e estresse durante toda a série, fazendo dele um personagem muito mais relacionável do que se pensaria, já que a menos que você seja uma pessoa muito decidida e com uma determinação inabalável, você provavelmente irá se identificar com alguma cena dramática envolvendo o Yatora, com ele tendo que catar os seus cacos para extrair um aprendizado e se reerguer pra evoluir, mesmo sendo um processo constante e doloroso. 

E isso se torna essencial durante a segunda fase do manga, em que muitos dos arcos são basicamente o Yatora tentando desesperadamente buscar um propósito para continuar sendo um artista para não desistir de sua carreira. A obra também aproveita essa deixa para explorar outros diferentes temas no processo. Como no arco da creche, com a obra fazendo um pertinente comentário de como a aptidão artística de crianças são desestimuladas por seus pais, além de oferecer um merecido foco no Haruka. O arco da “No Marks”, com o Yatora entrando em um coletivo de artistas que visa uma abordagem mais livre da arte, repudiando o estilo considerado autoritário por eles ensinado nas faculdades, mas que não demora pra mostrar que por trás de um coletivo tão convidativo e amigável, existem certas incongruências em sua filosofia que acaba revelando um lado mais dúbio deste grupo. Assim como o arco de Hiroshima, com o Yatora se juntando a este trio de amigos que estão decididos a usar a arte como trabalho para dedicar as suas vidas exclusivamente à ela e que compartilham de um triste passado, sendo provavelmente um dos arcos mais trágicos e sofridos de todo o mangá. O arco trata temas como luto e problemas sociais através do Yakumo de uma forma bem afiada e perspicaz, além de uma discussão sobre se o fato de um artista retratar uma tragédia ocorrida a terceiros através de sua arte seria uma atitude respeitosa ou não, com toda uma passagem do Yatora voltada descobrindo a resposta para esta pergunta desencadeia em um incrível e estonteante desfecho, encerrando o arco de uma forma sublime. 

O único grande defeito do mangá para mim é o roteiro ficar tão auto centrado no Yatora que praticamente todo o resto do elenco parece servir apenas como muletas e suportes para o desenvolvimento seu desenvolvimento, quando eles poderiam ser muito mais do que apenas isso. Vide o Ryuuji e a Maki que têm características muito boas em suas composições e são bastante carismáticos, mas que a obra explora os seus dilemas de uma forma bem superficial e super apressada em prol dos conflitos do Yatora, sem o tempo e espaço para brilharem ainda mais.

Tanto que o melhor personagem secundário da série sem dúvidas vai para o Yotasuke, um dos poucos que consegue ganhar um arco próprio, que é incrível, com a obra contextualizando tanto a sua postura extremamente antissocial e reclusa, como também a sua visão conservadora, fechada e quase utilitarista da arte devido a imensa pressão que ele sofre por ser um prodígio e a forma como ele enxerga o ato de pintar quase como uma obrigação. O arco consequentemente revela um lado bem mais vulnerável e delicado do personagem e culmina em um desfecho que entrega um dos momentos mais emocionantes e poderosos de todo o manga. Novamente, uma pena que a autora não tenha feito isso com mais personagens secundários do elenco, mesmo com aqueles que possuem o potencial de terem um arco próprio .

E depois de tudo isso, eu posso dizer que eu amei Blue Period. Eu gostei bastante. Não só por se provar como uma obra bastante bela, introspectiva, agridoce, reflexiva, poética, sensível e comovente. Acima de tudo, genuinamente inspiradora por fugir do padrão de protagonistas inabaláveis de battle shounens e mostrar que está tudo bem sentir tristeza, hesitação e frustração, desde que você não deixe esses sentimentos lhe dominarem e continue seguindo em frente para ser o melhor que você pode ser. Assim como também a mensagem de que nunca é tarde pra você repensar ou absorver a forma como você enxerga a arte ou até você mesmo, principalmente se levar em conta que muitos dos grandes clímax dramáticos do manga nunca são anunciados como tal, sendo criados a partir de atitudes ou interações bastante casuais ou até mesmo mundanas, mas que são o suficiente para se tornar algo muito importante ou significativo para aqueles personagens.

O manga possui uma grande escrita, um fascinante elenco, um imenso foco temático e uma invejável consistência durante todos os seus capítulos. E por mais que ele não seja uma leitura rápida e ágil, visto que a obra oferece muita coisa pra se digerir em seus capítulos, exigindo mais da sua paciência e atenção, se você aprecia dramas, obras de coming of age ou tem qualquer mínimo de interesse ou curiosidade pelo mundo das pinturas e artes plásticas, com certeza ele é uma obra que merece ser lida. Blue Period é, sem dúvidas, uma das melhores que eu li deste gênero recentemente. Excelente.