Os altos e baixos de Madoka Magika Gaiden: Magia Record

Madoka Magika Gaiden: Magia Record aka Magireco é o spin off daquele que não só é um dos meus animes favoritos da vida, mas também um dos mais icônicos, influentes e importantes de toda a década passada: Mahou Shoujo Madoka Magika. O tipo de obra que surge apenas uma vez a cada 10 anos, não só por ter contado com uma equipe estelar, mas também por ser um raro momento em que os envolvidos entregaram o melhor de si para criar algo imenso com a soma de cada uma de suas partes. Desde do enredo conciso, direto e sem rodeios do Urobuchi, que não hesitava em mergulhar nos aspectos mais macabros e distorcidos da moral e da psique humana através de suas falhas, humanas e complexas personagens como a Sayaka e a Homura, além do Kyuubei ser um ótimo antagonista que agregava ainda mais ao cerne da obra. Passando pelo Akiyuki Shinbo ter entregado aquela que é facilmente uma de suas direções mais únicas, excêntricas e experimentais e a Yuki Kajiura criando uma trilha que contava com densas paredes de instrumentação orquestradas nos picos altos, e trilhas ambientes minimalistas, depressivas e desoladoras nos picos baixos que criava uma atmosfera dramática, sombria, mística e surreal que sem dúvidas foram pontos cruciais para dar vida ao universo cruel e perturbado de Madoka Magika. Contendo ainda uma coesão e ritmo praticamente impecáveis. Um feito repetido com o filme Madoka Magika: Rebellion, que não apenas contava com uma produção ainda mais ambiciosa que a série de TV, mas com final tão aterrador que fez alguns fãs da série virarem o rosto para o filme. Mas mesmo com isso, eu sem dúvidas o considero uma ótima constatação da essência ousada, subversiva e fora da curva que fez Madoka ser uma obra tão especial.

E devido a tudo isso, tenho que ser sincero que quando Magireco foi anunciado em 2020, 7 anos depois do Madoka Magika: Rebellion, fiquei bastante cético ao ponto de eu ter me recusado assistir ele durante um bom tempo, especialmente por todos nós sabermos o quanto que o parâmetro de qualidade de Spins Offs e continuações de animes originais podem ser bastante instáveis, já que enquanto existem obras como SSSS. Dynazeon e Megalo Box: Nomad que se provam como ótimas expansões da série original, por outro lado existem animes como Psycho Pass 2 e Vivid Strike que… Não são bons, pra dizer o mínimo. Mas eis que eu acabei sendo convencido a dar uma chance, torcendo muito para que este caso se encaixasse na primeira opção, já que o universo de Madoka com certeza oferece espaço e potencial para se criar uma história alternativa, então talvez os envolvidos pudessem conseguir criar uma história interessante e proveitosa de alguma forma, principalmente por eu claramente não esperar ou exigir que ele alcançasse o mesmo nível da série clássica. E posso dizer que o resultado final acabou sendo bem misto e um tanto inconsciente, mas vamos por partes. 

O primeiro ponto a se destacar que talvez seja um dos maiores méritos que eu posso oferecer a Magireco é o fato dele ter a coragem de assumir certos riscos e ser uma tentativa genuína de oferecer algo novo e bem distinto daquilo que a série clássica entregou em questão de estrutura, mecânica e temática que demonstra uma vontade de criar uma série com suas próprias características e peculiaridades ao invés de tentar ficar na sombra do seu predecessor e recriar a exata mesma formula de forma piorada como outras obras fazem por aí. Isso com certeza é algo admirável, fazendo com que seja mais do que um mero caça níquel descarado para tirar dinheiro dos fãs. Além da produção, que mesmo sem contar com a presença da equipe original completa da série clássica, consegue fazer uma rendição bastante honrada e fidedigna dos conceitos lá estabelecidos na questão visual. A direção de arte recria toda a atmosfera sinistra, psicodélica, abstrata e aterrorizante que o Shinbo criou, ao ponto de em quase todo episódio parecer ter alguma cena ou sequência que parece ter sido extraída direto de seus piores pesadelos. Seja nas aparições das bruxas com o uso das características e estranhas colagens, até a cenas como o retorno da Sana a casa de seus pais, em que a retração da família dela como literais manequins travestidos de humanos é tão fantástico que não se precisa de absolutamente nenhum diálogo para demonstrar a força da cena. Além de algumas cenas de lutas bem fluidas e chamativas, somado a consistência em seu character designs, que se prova como algo bem impressionante, considerando os graves problemas de cronogramas nos bastidores e a complicada situação que o estúdio da Shaft se encontra recentemente. Com a trilha sonora também não fazendo feio, já que mesmo não sendo tão ambiciosa, complexa ou intrincada como a da Kajiura, também tenta resgatar a aura sombria e misteriosa da melhor forma que pode, e se torna eficaz na maior parte do tempo. Então no quesito de produção, eu realmente não tenho nenhuma grande reclamação para fazer. Agora na questão do roteiro… Eu não posso dizer o mesmo. 

A primeira temporada entrega uma trama bem calcada no mistério, ao ponto de parecer quase uma obra investigativa, tanto pela estrutura com esses mini arcos de caça aos Uwasa lembrar bastante de obras como Gosick, mas também pela narrativa se focar muito mais em descobrir as respostas por trás da série de perguntas que a obra lhe joga em seu início como se a Ui era real ou não, o porque das bruxas não terem mais Grief Seeds e principalmente o que é a anomalia que está havendo em Kamihama e quem é o responsável por tudo isso, ao invés de se focar na psique das personagens e de como cada revelação iria afetar o psicológico das mesmas como na série clássica. E isso não é algo ruim, considerando que existem obras como Monogatari, Kuroshitsuji, Pluto e o já citado Gosick que são ótimos dentro dessa narrativa, mas existem 3 fatores que fazem com que esta execução de Magireco não se torne tão satisfatória como poderia.

Primeiro: A trama não é criativa o suficiente para criar diferentes situações ou mecânicas que façam esses casos se tornarem cativantes, já que em grande parte, o desenrolar é bem simplista e direto, sem nenhum grande método distinto para encontrar ou derrotar cada Uwasa, que faz com que o enredo se torne previsível e consequentemente estagnado. Segundo: A falta de perigo e urgência, já que ironicamente, não é como se os roteiristas estivessem muito focados em criar algo mais impactante ou uma grande quebra de expectativa em relação a integridade tanto física quanto mental das suas personagens, já que mesmo que várias delas sejam vendidas como garotas mágicas fracas, sempre acaba tendo alguma conveniência ou plot armor que faz com que todas elas saiam ilesas de cada caçada no final do dia, que acaba dificultando que você fique totalmente imergido na trama. E terceiro: O elenco não é dos melhores. E isto é algo que eu irei dissecar mais tarde, mas a grande maioria das personagens soam um tanto básicas, esquecíveis, sem muito carisma e principalmente unidimensionais, sem muita coisa que faça você se apegar ou querer saber mais sobre elas. 

O exemplo máximo é o trio Momoko, Kaede e Rena do primeiro caso. Mesmo que tenham tentado usar o elemento do boato como um pretexto pra trabalhar um suposto arco de personagens entre elas, acaba falhando pelo conflito ser bem fraco e clichê, a Kaede ser totalmente sem graça e a Rena ser extremamente insuportável. Esse arco não agrega e faz quase nenhuma diferença significativa no grande esquema que a obra tenta criar mais pra frente, já que é só perceber como a trama se esquece quase que completamente delas logo após a resolução. O foco se vira para a Iroha e a Yachiyo e o novo grupo que elas vão criando. O mesmo para a Sana, cujo o arco de construção e desenvolvimento soa bastante apressado por alguma razão, não há muito tempo para se apegar ou sentir a dor dela, mesmo que o seu conflito não tenha sido ruim como o da Kaede e Rena. Tanto que os pontos positivos que eu posso dar para a primeira temporada em questão de roteiro é a revelação de que toda a situação de Kamihama envolvendo os boatos está sendo criada por um grupo de garotas mágicas vendendo esse discurso de salvação e te deixa curioso para saber quais são as reais intenções por trás de tudo isso, assim como a inclusão do sistema Doppel que é um exemplo de conceito que amplia as possibilidades do universo de Madoka e que soa bem intrigante e faz você querer saber mais sobre ele. E o gancho do episódio final reforça tudo isso ao ponto de fazer você querer assistir a segunda temporada e descobrir qual seria o desfecho de toda essa história; os arcos da Iroha e da Yachiyo são um dos mais consistentes da obra, mesmo que suas composições fiquem um pouco a desejar em certos momentos, como a Yachiyo parecer uma versão inferior da Homura. 

E nisso chegamos na segunda temporada, o momento em que a série faz outra mudança de estrutura, abandonando o tom investigativo e finalmente revelando o principal tema no qual a primeira temporada serviu como preparação. A Asas de Maguis é usada como ferramenta para criar esta constatação política não apenas sobre a ascensão de um grupo fascista, mas também como uma reflexão das razões que levam as pessoas a compactuarem e serem coniventes com este tipo de ideologia. E novamente, por mais que este seja mais um ótimo conceito, ainda mais considerando que este assunto continua mais atual do que nunca na época em que vivemos, a execução não parece conseguir extrair todo o potencial que esse cenário poderia oferecer, mesmo havendo momentos em que eles acertam e criam comentários bem interessantes a respeito do tema.

Para a obra, a grande razão que leva um grupo como esse a ganhar tanta força é o típico discurso populista em cima das classes mais vulneráveis (visto que muito dos membros do grupo são garotas mágicas fracas e incapazes de pegar as Grief Seed e clarear as suas Soul Gems), através de um suposto inimigo ou ameaça em comum (que neste caso, são as bruxas), de forma a criar medo nas pessoas e consequentemente prometer uma solução que irá supostamente erradicar esse problema por completo e manipulá-las de forma que elas se submetam a qualquer coisa em prol da salvação desse perigo que elas tanto temem. Isso é um comentário super válido (especialmente considerando que muitos ditadores e líderes fascistas de fato chegam ao poder dessa forma), também reforçado ainda mais pela própria forma como os Uwasa surgem, com membros da Asas de Magius criando essas lendas e espalhando elas até ao ponto delas inserirem uma bruxa dentro desses boatos e tornarem algo real e ferindo pessoas. Isso pode ser interpretado como uma metáfora para as mentiras absurdas voltadas a grupos minoritários que por mais ridículas que sejam, acabam conseguindo convencer pessoas a prejudicarem outros indivíduos de forma direta ou indireta devido a isso (como o discurso da ditadura gay, por exemplo). Por outro lado, não consigo deixar de pensar que eles acabam perdendo a chance de expandir isto ainda mais, considerando que mesmo o elenco de Magireco sendo bem extenso, muitas delas continuam se provando bem unidimensionais, sem nenhuma grande perspectiva de mundo ou construção que fizessem elas se destacarem ou ampliarem a discussão do fascismo de uma maneira mais aprofundada ou esperta, ao ponto de eu ter a sensação de estar vendo uma versão inferior do anime Shiki, já que mesmo que a obra esteja tentando pintar esse miríade de razões sobre o porquê cada personagem estar ali, muitas delas são bem parecida entre si, sem nenhum conflito que desse uma nuance ou contraste maior a respeito disso. 

Inclusive, é bastante estranho como o anime constantemente usa esse cenário para criar essa sequência de momentos de redenção ou libertação em diversos personagens como a Felicia, a Tsuruno, a Momoko e a Mifuyu, mas sem a construção para fazer esses desfechos se tornarem poderosos ou marcantes como deveriam. Por mais que elas estivessem afiliadas a Asas da Maguis, não é como se fosse mostrado em nenhum momento algum ato realmente extremo ou hediondo feito em nome da Maguis que merecesse algum tipo de redenção por parte dessas personagens, já que elas se mantém completamente iguais, sem nenhuma mudança significativa na postura delas. Além do anime mostrar que a grande maioria delas foram enganadas pela Touka, então… Perdem, inclusive, a chance de mostrar o processo de desumanização que as pessoas podem sofrer ao se juntar em um grupo como este, que poderia fazer essas redenções serem mais palpáveis. Isso é uma pena, pois levando em conta que a força do anime clássico era justamente tirar o expectador da zona de conforto ao criar situações e desfechos bastante trágicos e tortuosos, eu não conseguiria pensar em uma franquia melhor para transmitir essa mensagem anti fascista de uma forma mais chocante, depressiva ou brutal do que Madoka. Mas, infelizmente, isso não acaba sendo o caso, com o pior momento sendo a redenção da Touka e da Nemu. Mesmo elas sendo as grandes responsáveis pelo surgimento do grupo e toda essa situação, a obra tenta forçar um ato de nobreza no clímax final por parte delas que não é bom, mesmo com o contexto que é dado sobre as motivações delas terem feito isso. 

Logo, os momentos de destaque se tornam o da Kuroe, que mesmo tendo um arco de desenvolvimento bastante apressado e merecendo muito mais tempo de tela, consegue protagonizar uma das cenas mais pesadas e trágicas do anime por não conseguir viver mais como uma garota mágica e perceber que ela nunca conseguirá se tornar como a Iroha. A Mitami consegue ser uma alegoria surpreendentemente afiada e uma ótima representação do perigo de certas pessoas que se auto intitulam centristas hoje em dia; ela vende essa ideia de neutralidade e fingindo estar alheia a toda essa situação criada pela Maguis, mas sendo uma responsável direta por apoiar e recrutar pessoas para este grupo movido por um constante sentimento de indiferença e egoísmo. A forma como ela reage a transformação da Kaede e a revelação que o sistema Doppel era uma farsa faz com que você sinta muito ódio e nojo dela, levando em conta a total falta de empatia e compaixão que ela sente pelas garotas que sucumbem a isso, mas ao mesmo tempo, eles também conseguem a proeza de humanizar ela, ao demonstrar esse tipo de posicionamento pode ser resultado de uma tentativa de fugir do desespero e da dor de você descobrir como o mundo funciona e o quão grotesco e cruel podem ser os aparatos presentes na nossa sociedade. Isso é bem relacionável, já que mesmo a conscientização sendo algo muito necessário e importante para nós, não só como cidadãos, mas como indivíduos, admito que não é algo divertido, legal ou agradável. Quanto mais você descobre sobre os problemas e injustiças presentes no seu país ou no mundo em geral, mais desesperador soa, como se você estivesse constantemente olhando pra um abismo, que podem obviamente levar as pessoas a fugirem disso, lavar suas mãos e não querem se importar com mais nada disso, mesmo que eles possam inevitavelmente continuar apoiando este cruel sistema, quer elas queiram ou não. Inclusive, a redenção dela se torna sem dúvidas a mais genuína do elenco e a melhor personagem da série, mesmo sendo uma coadjuvante. E a cena pós crédito do episódio final, que trás uma constatação bem fatalista e amarga sobre como mesmo a Iroha tendo se tornado uma heroína salvando a cidade, isto só manteve o mesmo árduo status quo para as garotas mágicas, com elas sendo forçadas a se manter nesse ciclo de sofrimento, que eu admito que atinge bem forte e cria essa aura de completo vazio e tristeza que eu gostei bastante. 

E o veredito final é que eu fiquei um tanto indiferente a Magia Record. Eu com certeza aprecio as ideias, as ambições e os riscos que os autores tiveram aqui, além da parte visual ser bem notável dentro das suas condições, mas a execução fica muito a desejar seja pelo elenco ser fraco, os arcos de construção e desenvolvimento serem bem frágeis, e o ritmo da narrativa ser uma bagunça em diversos momentos, fazendo ele ser bastante inconsciente. E é algo triste, pois se eles tivessem se focado em trabalhar e desenvolver as melhores ideias da obra, talvez ele pudesse ser melhor, mas ao invés disso, eu sinto que eles perdem um precioso tempo andando em círculos, como no arco das personagens da série clássica e dando a sensação que esses conceitos estão um tanto incompletos ou não tão bem explorados. Claro, ele não é o pior spin off que eu assisti e para o bem ou para o mal, ele é uma obra bastante inofensiva, mas no fim, ele não vai muito além disso, infelizmente.


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