Tengoku Daimakyou e a ilusória busca pelo paraíso

As razões que te convencem a dar chance para algum anime ou obra de qualquer mídia em geral podem acabar sendo as mais diversas. E é engraçado como o principal motivo para eu ficar curioso e animado para assistir ao anime de Tengoku Daimakyou foi o quão incógnito e misterioso ele parecia ser, já que mesmo o anime ganhando notoriedade durante a sua exibição e sendo comentado internet afora, eu não conseguia ter uma ideia muito clara sobre o seu gênero ou proposta. Fui assisti-lo quase que às cegas. E mesmo após terminar os 13 episódios, ainda sinto que descreve-lo é algo um tanto difícil, pois por mais que a primeira vista você possa considerá-lo como mais uma obra de sobrevivência em um mundo pós apocalíptico, existem fatores e influências dentro desta premissa que fazem ele ser bem mais além do que isso. No mínimo, uma abordagem um tanto excêntrica e peculiar do gênero em comparação a outras obras equivalentes surgidas dentro da cultura pop nos últimos anos.

O primeiro fator é a forma como nada em Tengoku é entregue de mão beijada para o espectador, mesmo as informações que supostamente deveriam ser mais simples. Por mais que saibamos que obviamente houve uma calamidade que destruiu a civilização como conhecíamos, nós não sabemos a causa e o surgimento desta catástrofe e também não sabemos a dimensão causada por tal acontecimento, já que toda a série se passa 15 anos após este evento. Ao ponto de que nossos protagonistas, Kiruko e Maru, não têm nenhuma ideia de como era a sociedade antes da catástrofe, eles consideram vários aspectos comuns do nosso mundo, como água potável ou comida feita em uma escala industrial, como uma espécie de lenda urbana.

A mesma coisa para o objetivo dos dois, por mais simples que seja, com ambos buscando um lugar que seria o último refúgio da humanidade chamado apenas de “paraíso” e o Kiruko tendo a função de entregar o Maru neste local em segurança, a dupla não parecem ter muita ideia do que se fazer ao chegarem lá e nem sequer a certeza se o lugar realmente existe. Somado ao fato de ambos também terem dúvidas inclusive sobre si mesmos; Maru não sabe de onde vem o seu poder para matar os monstros presentes naquele mundo e a revelação que o Kiruko seria um homem trans devido a uma literal transferência de sua mente para o corpo da sua irmã – com ele inclusive querendo encontrar o doutor responsável por esta cirurgia para descobrir a razão por trás disto.

E em paralelo com esta jornada incessante do Maru e Kiruko em busca do “paraíso”, temos um outro núcleo focado nas crianças de uma misteriosa instalação, no qual as influências de sci-fi se tornam muito mais presentes em um ambiente bem inusitado. O objetivo deste arco acaba sendo basicamente mostrar a vida e a rotina cotidiana de crianças com poderes concebidas como experimentos dentro deste laboratório, dando a sensação de eu estar vendo uma espécie de slice of life distópico ou algo do tipo. E claro que a função deste arco não se resume apenas a isto, já que a trama aproveita esta deixa para lentamente revelar certas informações e supostas teorias sobre a origem da catástrofe e que os donos desta instalação estariam ligados à isso. Além de obviamente mostrar que por mais que ele seja um local com mais recursos que o mundo externo, isso não significa que ele seja mais seguro ou confiável de se estar. Conforme a obra avança, mais sombrio e estranho aquele cenário parece se tornar.

E em ambos os casos, sinto uma forte influência que me remete muito a Shin Sekai Yori, pois é como se estes dois núcleos trabalhassem com esta ideia constante de mostrar um universo em que a humanidade foi tão colapsada que a única opção que restou foi uma nova civilização ser formada, com muitos dos parâmetros e padrões vividos na nossa realidade atual não se aplicando ou tendo mais espaço aqui.

Isso se torna muito claro principalmente no arco das crianças da instalação, já que por serem experimentos, não é como se houvesse uma necessidade de ensinar a elas conceitos de amor, gênero, sexo ou identidade ao nível de todas elas não conseguirem sequer descrever ou expressar direito o que elas estão sentindo devido a isso. E é fascinante acompanhar essas interações dentro deste ambiente tão atípico, ainda mais quando a maioria das obras que usam esse recurso de crianças poderosas devido a experimentos nunca se aprofundam tão a fundo e de forma tão específica nas suas rotinas e relações dentro destes laboratórios, o que cria uma identidade bem própria para a série.

E tudo isso é reforçado pelo arco da jornada do Maru e Kiruko também conter momentos cujo a narrativa cria contos semi episódicos de certos personagens que eles encontram durante a busca que expandem o worldbuilding e oferecem pistas sobre o que de fato aconteceu e o que é essa calamidade. Esses encontros também servem para mostrar o quão cruel, implacável e perigoso é este novo mundo e a situação degradante no qual estas pessoas são obrigadas a viver, contendo a licença poética remanescentes de obras como Kino no Tabi, por exemplo, já que nada nessas histórias é o que parece a princípio.

Seja o caso da gerente da pousada, onde o anime mostra o dano psicológico causado por essa calamidade com um brutal desfecho; o caso do Juuichi e a sua busca para encontrar o seu filho que foi roubado e principalmente o caso do Usami, no qual a série não só aproveita esta deixa para tecer uma singela crítica social sobre religião e fanatismo, como entrega um dos momentos mais pesados e depressivos de todo o anime. Essa parte retrata o estado terminal de uma portadora da doença que assolou a humanidade e a aterradora revelação de que além de não haver cura, estas pessoas estarão fadadas a virarem monstros mesmo se morrerem, obrigando o Usami a manter sua parceira viva custe o que custar. E o método usado para isso é tão chocante que cria uma atmosfera extremamente sombria e desoladora em um curto período de tempo de uma forma que poucos animes conseguiram alcançar, intensificado ainda mais pelo desfecho igualmente trágico e dilacerante, o que faz dele um dos episódios mais impactantes do ano de 2023.

E tudo isso é aprimorado graças a uma ótima produção, que consegue realçar cada acerto feito pelo texto. E eu poderia citar o quão bem animado ele é, o quão criativo são os designs de personagens das criaturas, o quão sutil e inspiradas são as composições, analogias e simbolismos de várias cenas durante todo o anime e o quão rico e belo são os cenários. Mas o que mais me chamou a atenção é o quanto que a direção consegue ter um tato super afiado para criar momentos de tensão ou terror, principalmente nas aparições dos monstros, com todas elas conseguindo sempre mexer com os seus nervos de alguma forma, sem exceção.

Vide a aparição do primeiro monstro no episódio 2, que é a literal definição de cinema, com o formato de tela widescreen, o ótimo jogo de câmera e a fotografia recriando o efeito de luz natural sendo o suficiente para mostrar toda a sua ameaça sem os protagonistas precisarem falar uma vogal sequer. No monstro do episódio 7, a direção brinca com as suas expectativas mostrando como tudo pode sair do controle em um estalar de dedos e a forma como Kiriko é torturado pela criatura é tão brutal e grotesca que faz com que a sequência beire o perturbador. E o monstro da hipotermia do episódio 10 é a prova viva de como a direção não precisa recorrer a violência gráfica para criar uma cena extremamente aflitiva, especialmente na cena envolvendo o bebê na parte final do episódio, em que a tensão é tanta que chega a ser agonizante.

Sem contar que Tengoku também possui aquela que até o momento que esta review está sendo postada, é a minha trilha sonora favorita do ano, com o Kensuke Ushio mais uma vez mostrando o porquê dele ser um dos compositores mais consistentes na indústria atualmente. Devido as cenas de ação, existem trilhas com aspectos eletrônicos com aceleradas batidas que remetem ao estilo que ele usou em Devilman Crybaby, mas o que faz esta trilha se destacar das demais são obviamente as típicas composições minimalistas calcadas na músicas de ambiente que o Ushio tanto se especializou durante os anos, com os cíclicos e repetitivos loopings continuando tão hipnóticos, belos e evocativos como nunca. Mas com a diferença de que desta vez tudo está acompanhado por uma quantidade muito maior de texturas, drones e estranhos tons e melodias sumindo e reaparecendo em vários momentos, criando uma aspecto bem mais assombrado e culminando naquela que provavelmente seja a trilha mais melancólica e apocalíptica que o Ushio já compôs até aqui. Afinal, quanto mais eu ouvia as faixas, mais eu sentia estar preso dentro destes frios, isolados, devastados e imersivos ambientes sonoros.

Mas como nem tudo é perfeito, chegou a hora de falar sobre o episódio final focado no reencontro do Kiruko com o Robin, que infelizmente foi um completo lixo. A obra recorre ao recurso do abuso sexual e a cena é tão irrelevante para a narrativa que o momento mais relevante criado devido a esta situação é o Maru declarar o seu amor o para Kiruko, que apenas deixa as piores das impressões. E se não bastasse esta ideia já ser idiota o bastante, a maneira como o Kiruko reage a isto é absolutamente ridículo, com ele apenas fingindo que nada aconteceu e superando isso de forma quase imediata, sem ter nenhum trauma ou sequela, mesmo após ser abusado por 2 dias seguidos, que é algo extremamente irresponsável de se fazer. Tanto que a cena final do Maru e Kiruko indo embora sorridentes com uma música super alegre e doce tocando no fundo é provavelmente a cena mais tosca e sem tato que eu vi em 2023 até agora.

E o mais triste é perceber que a série tinha infinitas formas para poder retratar o Maru descobrindo os seus sentimentos e consolidar a relação entre dois sem precisar recorrer a isto, ainda mais com o episódio 6 tendo sido focado em aprofundar a relação entre eles e o roteiro mostrando essa aproximação de uma forma bem agradável. A obra nem sequer tenta fazer o mínimo para criar alguma constatação mais relevante, já que mesmo o uso de estupro já sendo uma escolha questionável, isso poderia ser contornado mostrando o impacto e o trauma que isto causaria na Kiruko ou fazendo alguma denúncia mais pungente sobre a condição do Kiruko ou algo do tipo, mas não acontece. Claro que você pode até comentar sobre os diálogos que o Kiriko faz sobre a sua identidade, mas eles são muito superficiais e vagos para justificar uma cena como essa. E até agora, eu não consigo entender como que o autor cometeu um erro tão atroz como esse, sendo que toda a escrita da série até este momento estava bem consistente. Então é… Não tem nada que eu possa elogiar neste final, já que quanto mais eu penso nele, mais sem sentido e idiota ele se torna.

Mas dito isso, eu não posso anular todos os méritos alcançados pela obra unicamente por causa este episódio. Tirando este final, Tengoku Daimakyou foi facilmente um dos animes mais intrigantes que eu vi neste ano. E a razão para isso se deve por ele ter conseguido recriar esta típica premissa de mundo pós apocalíptico de uma forma bastante criativa, autentica e refrescante, com escolhas pouco ortodoxas, mas que se provaram bem funcionais em grande parte do tempo. O Maru e Kiruko terem sidos bons protagonistas, carregando muito bem a série. Os mistérios conseguirem lhe deixar muito curioso e ansioso para querer montar o quebra cabeça e descobrir cada vez mais sobre aquele mundo e por tudo isso também estar acompanhado por uma das produções mais notáveis e inspiradas do ano. Então mesmo o encerramento sendo da forma como foi, eu ainda acredito que Tengoku seja um anime digno de recomendação e que provavelmente estará na minha lista de animes favoritos de 2023.


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