Yu Yu Hakusho: o feliz acaso no shounen

Falar sobre Yu Yu Hakusho é uma tarefa complicada. O anime, que fez parte da era de ouro para os animes no país na TV Manchete, com talvez a melhor dublagem já feita no Brasil, é um dos clássicos absolutos para os otakus brasileiros. É difícil encontrar quem não o tenha assistido. Por isso, discuti-lo sem repetir as milhares de resenhas existentes sobre ele é quase impossível, sem falar que poucos teriam vontade de ler sobre um assunto tão manjado. Porém, não desisti de escrever este texto porque acredito que sempre há aspectos que não observamos naquilo que assistimos, principalmente nos clássicos porquê, após assisti-los umas 200 vezes, ficamos anestesiados a outros detalhes. Há tempos queria falar sobre Yu Yu Hakusho porque, apesar de não ser uma desconstrução do shounen e seguir as fórmulas ditadas por Dragon Ball, há várias características que o tornam único.

Quando assisti Yu Yu Hakusho, me senti meio desconcertado, com uma pulga atrás da orelha devido ao arranjo do “plot” e dos tipos dos personagens. No início eu pensava ser porque o anime não seguia a fórmula da “jornada do herói” — um dos pilares do shounen —, mas depois percebi que estava enganado. “Jornada do herói” é um padrão e uma estrutura narrativa identificada primeiramente pelo mitologista Joseph Campbell (1904 – 1987), que consiste no caminho que um personagem identificado como herói percorria nos mitos e contos folclóricos: 1) um desafio se apresenta ao herói, forçando a deixar sua vida pacata; 2) ele é guiado nesse caminho por um sábio, que o treina e ensina como enfrentar esse novo mundo; 3) ele enfrenta vários inimigos e passa por diversos testes; 4) o herói enfrenta a morte e consegue uma recompensa (elixir); 5) ele volta ao sua terra natal com o elixir que ganhou e o usa para ajudar a todos os seus antigos conhecidos. Pois bem, toda essa estrutura está presente no anime: (1° passo) Yusuke, para reviver, precisa se tornar um detetive espiritual a serviço do Koenma; (2° passo) Botan, Koenma e posteriormente a Mestra Genkai, guiam e instruem Yusuke em suas aventuras com seres espirituais; (3° passo) Ele enfrenta diversos monstros e adversários, seja como detetive espiritual, seja no Torneio das Trevas; (4° passo) Yusuke estabelece um torneio no Mundo das Trevas para eleição do seu rei, que evitou uma possível guerra civil entre os youkais; (5° passo) Yusuke volta ao mundo humano com a promessa de paz e equilíbrio entre os reinos espirituais.

Embora segue essa estrutura convencional dos shounens, há algo em Yu Yu Hakusho bastante original, que eu não encontrava em animes clássicos nem nos recentes. E originalidade não é nada comum no shounen, em que vemos frequentemente animes cujos personagens e enredo são quase iguais aqueles dos animes de sucesso, só com nomes, design e temática diferentes. Para entender e identificar o que havia de singular nesta obra-prima, tive que pesquisar mais sobre a história da sua criação.

Yu Yu Hakusho foi lançado na grande revista Shonen Jump, entre os anos de 1990 e 1994, pelo gênio Togashi. Togashi, inicialmente, planejava criar uma história de drama e terror, sobre a luta de Yusuke para deixar de ser um fantasma e voltar ao reino dos seres humanos. Esse projeto inicial transparece nos primeiros capítulos do mangá, em que o protagonista caça fantasmas e demônios antes de ressuscitar. A intenção do autor era deixar sua ressurreição para o final e puxar a história mais pro lado do terror devido sua paixão por filmes do gênero. A Jump, porém, não gostou do caminho que o mangá estava tomando — ora bolas, era uma revista de histórias de porradaria — e cobrou Togashi de dar mais cara de shounen a história. Com este puxão de orelha, o autor antecipa a ressurreição do protagonista e insere a saga do “Torneio das Trevas” na história, que daria as lutas que os fãs pediam. Além desse toque, a Jump cobrou mais tarde que o mangá se estendesse além do arco do Sensui, o que contrariou novamente Togashi, que desejava que a história terminasse ali. Após esta cobrança, ele trouxe o último arco da história, a “Saga dos três reinos”, que para qualquer um que leu o mangá ou assistiu ao anime, fica claro que foi feito nas pressas. Com o fim do mangá, Togashi estava exausto mental e fisicamente, o que o fez largar por um tempo a vida de mangaká.

Esta série de embates entre a revista e o autor deixaria marcas na história. Várias vezes enquanto assistia eu não conseguia imaginar aonde o anime queria chegar. Diferente de shounens como Dragon Ball clássico, em que a série de acontecimentos é motivada pelo objetivo de juntar as esferas do dragão, ou One Piece, cujo plot é guiado pela busca do “one piece”, não há um grande objetivo na obra de Togashi. Cada saga segue um problema ou ameaça diferente: a saga do “Detetive Espiritual” é uma série de missõezinhas que o Koenma dá ao Yusuke para enfrentar demônios aleatórios; na saga do “Capítulo Negro”, os heróis precisam impedir que a barreira entre o mundo humano e o Makai (reino dos youkais) seja destruída; a saga dos Três reinos gira em torno da decisão de quem será o próximo rei do Makai; e a saga do Torneio das Trevas começa apenas porque o Toguro queria lutar com o Yusuke (é isso mesmo que você leu kkk). Isso não significa que os eventos não estejam conectados, pois Black Black Club e os irmãos Toguro já são apresentados no sub-arco da Yukina e o portal para o mundo do Makai, objeto do plano de Sensui, fora construído por Sakyo e já aparece no Torneio das Trevas. O que ocorre aqui é a falta de qualquer previsibilidade.

Essa falta de linearidade, que poderia transformar Yu Yu Hakusho numa série de remendos, neste caso é um ponto positivo, porque faz com que cada arco ou saga trabalhe com um tema diferente. O arco do Torneio das Trevas questiona porque e para que usamos a força; o arco do capítulo negro apresenta como o ser humano pode ser pior do que os demônios e no arco do Makai conhecemos o lado bom e “generoso” dos demônios, principalmente nas figuras do Raizen e do Hiei. E esta sinuosidade da história reflete a perspectiva de Yusuke, que não possui nenhum grande sonho de vida – se tornar um Hokage ou o maior pirata de todos os tempos –, aliás, no primeiro episódio, ele é apresentado como um típico delinquente juvenil, que não quer nada com nada além de se envolver em brigas e cabular aula.

Outro ponto que consegui retirar da minha pesquisa sobre a obra é a influência do gênero de terror. Como já foi dito, a intenção original de Togashi era fazer um mangá de drama e terror, o que explica que, mesmo com as intervenções da Jump, apareça elementos do gênero, como psicopatas, monstros, a loucura e a questão da morte. Apesar de ser uma história extremamente engraçada, ela aborda dois temas mórbidos: a finitude e a crueldade humana. O primeiro aparece no primeiro episódio, que pode ser considerado um dos mais tristes, em que Yusuke morre atropelado ao salvar um garotinho. O autor foi bem feliz ao mostrar, através do impacto da morte do personagem nas pessoas ao seu redor, que toda existência possui um valor e sempre alguém se importa conosco, mesmo o mais zé-ninguém ou sem futuro que era o Yusuke. O outro tema, a crueldade humana, aparece principalmente nas atitudes do Black Black Club, um grupo de empresários que explora youkais, perdidos em nosso mundo, para obter dinheiro fácil. Seja ou sequestrando a Yukina para obter joias preciosas, ou fazendo uma “rinha” de youkais no Torneio das Trevas ou até os torturando pelo simples prazer, o que este grupo faz é quebrar a nossa expectativa dos seres humanos como pobres vítimas destes demônios irracionais e malignos. Os seres humanos conseguem ser piores que os youkais — e no anime não há um fim para esse comportamento da humanidade, tornando a história melhor do que algumas onde a conclusão é um estado idílico, em que o bem vence o mal ou que todos os vilões se tornam bons.

Os supostos “vilões” não possuem más intenções.

Isso me leva a outra característica que identifiquei no anime: a ausência de vilões. Todos os antagonistas, excetuando o Toguro mais velho e as quatro bestas do castelo, não são maus-caracteres, não possuem más intenções, apenas escolheram os meios errados para alcançar seus objetivos. Alguns compreendemos os seus motivos e até podemos concordar com suas ações, como Sensui, que deseja acabar com a barreira do Makai com o mundo humano para punir a humanidade pelas suas atrocidades. Esse olhar “humanizador” sobre os antagonistas vai cobrir principalmente os youkais: a grande maioria deles não são monstros aterradores, como podemos ver os adversários do grupo de Yusuke no Torneio das Trevas, que apenas querem ganhar a competição e no final se tornam amigos do pessoal. O Hiei é o maior exemplo: inicialmente ele aparenta ser frio e indiferente, mas depois é mostrado como ele é muito preocupado com a sua irmã e que suas atitudes se devem a sua infância de rejeição e abandono, no qual todos o viam como um ser maligno e perigoso.

Assim como os antagonistas não são essencialmente maus, vários dos protagonistas não são totalmente bons. Quanto ao Yusuke nem precisamos falar sobre suas brigas na escola e seus assédios com a Keiko; Kurama, que embora hoje seja um adolescente gentil e calmo com todos, em sua vida de youkai foi um ladrão, que chegou a trair e cegar seu colega de bando Yomi. Essas caracterizações afastam qualquer maniqueísmo na obra, uma dicotomia entre bem e mal, como ocorre em Dragon Ball Z, em que de um lado estão os aliens invasores e do outro nós terráqueos que buscamos nos proteger. A falta de um conflito entre bem e mal, em que uma das forças sairia vitoriosa no final, configura mais uma ausência de objetivos que, como já comentei, a obra espontaneamente desenvolveu. O autor, talvez devido ao seu desejo inicial de fazer um drama, esteve mais preocupado em desenvolver o caráter psicológico dos personagens, suas nuances, conflitos internos, tornando-os mais complexos do que simples vilões e mocinhos.

Apesar da falta de unidade temática, eu não posso ignorar que há uma progressão em Yu Yu Hakusho. A relação de Yusuke em relação às outras pessoas e a visão destas em relação a ele vai se alterando no decorrer da história. No começo Urameshi é um adolescente solitário que não estava nem aí para nada. Assim como Hiei, ele pensa que é mal visto por todos, o que faz ele não se preocupar com ninguém. Ao longo dos episódios, vemos o protagonista fazer amizades e perceber que é querido pelas outras pessoas. No episódio final, quando ele volta do Makai, fica explícito o que ele conquistou quando desistiu de morrer no primeiro episódio: vários amigos e o amor de Keiko. A valorização da amizade é algo que já existia antes de Yu Yu Hakusho e é um clichê do shounen — quase sempre o protagonista vence alguns inimigos e se torna amigo deles — porém aqui ela não é apenas um elemento da história, mas uma de suas principais mensagens. É interessante comparar o destino de Sensui e Yusuke: ambos detetives espirituais que conheceram as atrocidades que o ser humano consegue fazer; enquanto o primeiro escolheu o caminho da misantropia e desesperança, o segundo escolheu confiar e defender aquelas poucas que prestam no mundo.

Todos os personagens possuem suas fraquezas.

Ao final desta pesquisa, pude compreender o que havia em Yu Yu Hakusho que me fascinava. Embora seguisse a mesma estrutura da “jornada do herói” de todos os shounens, o anime se destacava por variar seus temas ao longo da história e não reduzir seus conflitos a uma batalha entre as forças do bem e do mal. Este último ponto permitiu que desenvolvesse personagens mais complexos e mais profundos. A falta de linearidade, é preciso reconhecer, não é uma originalidade de Yu Yu Hakusho — Jojo já era uma metamorfose ambulante, não apenas temática mas também de gênero — mas algo ainda pouco explorado nos shounens até então. Isso me faz pensar o quanto o gênero “shounen” possui potencialidades que não foram exploradas e que o grau estacionário em que a indústria dos animes se encontra não é um destino — mas isso é assunto para outro dia. Yu Yu Hakusho, comparado com outros que vieram depois, como Hunter x Hunter, pode não ser considerado revolucionário, porém ele mostra como um autor pode ser criativo com clichês do seu gênero e criar novos padrões sem romper com o que se espera de um shounen: porrada, autossuperação e valorização da amizade.