Extreme Hearts e a filosofia do esporte

Do que eu pude observar, ao menos aqui no ocidente, Extreme Hearts certamente é um dos animes mais ignorados dessa temporada julho-2022 que termina agora. Talvez até do ano! Porém, é um título que esteve no meu radar desde o seu anúncio. Para quem não conhece o idealizador do projeto, Tsuzuki Masaki, ele é também o criador de um dos mahou shoujo de maior sucesso, Mahou Shoujo Lyrical Nanoha. Que, por um acaso, também é minha franquia favorita. Apesar disso, eu tinha minhas duvidas sobre Extreme Hearts, uma vez que não sou dos maiores fãs de animes de idols e este seria um deles. Já adianto que esse receio desapareceu bem rápido, com o anime me surpreendendo bastante já nos seus primeiros minutos. Mas, afinal, o que é Extreme Hearts?

A trama se passa em um futuro não especificado onde existe uma tecnologia capaz de amplificar a capacidade física das pessoas. Nisso, existe os esportes que já conhecemos só que praticados com o uso dessa tecnologia, que são chamados de Hyper Sports. Extreme Hearts é o nome dado a um grande evento esportivo de Hyper Sports de escala nacional organizado por uma produtora de música gigantesca que oferece oportunidades de apresentações musicais em palcos populares para as competidoras que forem avançando no torneio. O Extreme Hearts engloba basicamente todos os esportes com bola, ou seja: futsal, vôlei, basquete, beisebol, handebol, tênis, lacrosse, futebol americano, badminton e etc. Nem todos têm destaque no anime, nem teria como, mas os quatro primeiros são bem presentes. Com isso explicado, eu diria que o anime é 70 a 80% puro esporte.

E apesar disso, um dos pontos mais fortes do anime está na protagonista, Hiyori Hayama, cujo grande sonho é alavancar sua carreira musical, que estava caindo no ostracismo e lentamente chegando em um beco sem saída até sua (suposta) única fã, Saki Kodaka, apresentar o Extreme Hearts para ela, uma chance única de levar sua música ao público, assim como sua vizinha e amiga Sumika Maehara, uma garota já experiente com esportes que topou ajudar a Hiyori a treinar. Foi surpreendente ver o quão bem esses dois tópicos (música e esporte) conversaram durante o anime. Não só isso, mas também o quão bem funcionou a dinâmica da Hiyori, alguém muito experiente com música e pouco com esportes, com as outras personagens do seu time, que eram experientes ou talentosas no esporte, mas inexperientes na música. Os primeiros quatro episódios conseguem criar uma coesão entre esses dois universos que ajudam bastante a deixar a narrativa mais convincente, ao mesmo tempo que estabelece perfeitamente a personagem da protagonista, com detalhes que inclusive são relevantes mais para frente no anime.

O que me impressionou foi a abordagem genuína de emoções, reflexões e do estado psicológico de uma pessoa em determinadas circunstâncias. Para citar um exemplo de pouco spoiler, no episódio 1 nós acompanhamos o declínio da carreira da Hiyori ao receber uma mensagem de término de parceria com a produtora que trabalhava por eles não verem mais muito futuro para ela. Então ela reflete sobre como sua última música tinha apenas 30 e tantos downloads e que a maioria provavelmente foi por pena. São pensamentos melancólicos que ficam só na mente dela, pois externamente ela sempre parece tranquila, mas mais do que isso, ela tem para si como conforto o fato dela ter uma fã de verdade (Saki) e isso é um elemento motivador o bastante para ela continuar correndo atrás do seu sonho. Que é uma realidade que muita gente encara hoje, na internet. Eu mesmo me vi muito nela, porque são poucos que costumam consumir o que eu crio e isso pode ser desanimador. Mas tem poucos que estão sempre ali dando apoio e eu prefiro olhar para o apreço que esses poucos me dão e seguir acreditando que eventualmente mais pessoas se interessarão pelas minhas criações.

Esse foco emocional e mental interage muito com o esporte, inevitavelmente. Eu não recomendaria Extreme Hearts para alguém que quer ver um esporte animado, tipo Haikyuu!, mas sim para quem realmente gosta de esporte em si e o que ele pode representar, a chamada filosofia do esporte. O esporte é um conceito capaz de mudar vidas, transformar pessoas, elevar relações ou mesmo promover a junção do corpo e da mente. Em Extreme Hearts isso é constantemente presente, seja em grandes tomadas de decisões, como uma personagem optar pelo esporte ao invés de outro futuro já pré-definido ou em pequenos detalhes, como o impacto do estado mental nas atletas. Seja na importância de uma liderança em uma equipe ou em como você fica emocionalmente exposto a depender do contexto da partida. Ironicamente, todos os exemplos que citei também se encaixariam no universo da música e o próprio anime faz bem em demonstrar isso na prática.

O epicentro disso tudo é a Hiyori, uma personagem que é definida pela sua resiliência. Uma perseverança física, mental e emocional, que dedica cada gota de suor atrás de um sonho improvável. Em nenhum momento o anime deixa de evidenciar isso. As outras personagens principais são esportivamente super talentosas e compram a ideia do sonho da Hiyori, então ela precisa responder a altura e evitar de decepcionar as companheiras. É um elo forte que, conceitualmente, forma o que de mais importante uma equipe precisa: união. Todas trabalhando pelo mesmo objetivo, elas cobrindo onde falta talento na Hiyori, a Hiyori cobrindo onde falta físico e mental nas garotas. Esse ambiente harmonioso não só forma um bom time, mas também um time cheio de carisma. Não necessariamente a nível individual, nesse ponto cada personagem tem diferentes níveis de desenvolvimento, mas a nível coletivo. O time delas, RISE, é um time carismático e isso também passa pelo fato de que cada personagem exerce uma função específica que o anime nos mostra de imediato e nunca vai contra o que foi estabelecido pela narrativa. Por exemplo, a Hiyori não é talentosa para o futebol, mas tem uma condição física extremamente privilegiada. No começo, ela joga toda desengonçada e com o passar dos episódios evolui drasticamente, mas em nenhum momento dos 12 episódios você sente que ela subitamente passou a ser talentosa, ela só compensa a falta de talento com o esforço físico e a força de vontade.

Dentre as outras personagens, a Yukino e a Lise, que são introduzidas posteriormente no anime, são as que melhor foram caracterizadas. Isso porque elas tiveram episódios focados inteiramente nelas, coisa que não aconteceu com a Saki e a Sumika, por exemplo (e nem teria tempo para isso tendo só 12 episódios). Esses episódios também agregam bastante para o tópico que citei da filosofia do esporte, com o esporte atingindo áreas distintas do psicológico e emocional de cada uma. Mas fora do time principal, RISE, tem um punhado de personagens carismáticas dos outros times. É um cast bem grande e bem variado, tanto em personalidade, quanto em estatura (a mais baixa tem 1,38cm e a mais alta tem 1,95cm) ou visual.

Até as figurantes tem um design destacável, o que faz a competição soar mais palpável nas partidas de menor relevância. Na primeira partida, por exemplo, o anime mostra o time de personagens que nem sabemos o nome armando táticas eficazes contra a RISE. Algumas personagens secundárias tem um trabalho de desenvolvimento muito bom, mas a maioria se sustenta mais no carisma mesmo. E digo isso porque realmente é um cast bem grande, como toda obra do Tsuzuki Masaki costuma ter, mas várias delas conseguem fugir do rótulo de “esquecível” seja pelo design ou pelos traços de personalidade.

O anime ganha muito nisso que falei, na atenção aos detalhes. Abordar os esportes de forma coesa permite que cada momento tenha um peso mais significativo. E é por isso que, quando o anime opta por fazer uma cena de impacto ignorando regras básicas do esporte no primeiro episódio, você se sente mais incomodado que o normal. Mas felizmente é um deslize que só acontece uma vez e, durante todo o resto do anime, inclusive em cenas similares, o roteiro sempre preza pela lógica do esporte. É curioso que em muitos momentos eu me peguei me questionando o quão viável era uma determinada cena e sempre havia vários casos bem similares que já aconteceram na vida real (no futebol, ao menos, que é o esporte que eu tenho um conhecimento histórico mais avançado). Isso ajuda bastante pois, por exemplo, se você já assistiu umas meia dúzia de animes de esporte, você sabe mais ou menos como o roteiro vai se desenrolar. É previsível, como todo anime de esporte é, porém, o esporte em si também é previsível, até quando tenta ser imprevisível. São clichês que quando executados sob a ótica do esporte real, acabam funcionando, embora, às vezes, Extreme Hearts exagere um pouco nisso. Voltando aos detalhes, são eles que salvam Extreme Hearts de ser uma tentativa falha de abordar os esportes e aí temos que falar do calcanhar de Aquiles do anime.

A produção de Extreme Hearts é perigosamente limitada. Uma animação meia boca talvez não impactasse tanto um anime slice of life, ou comédia, ou romance, mas em um anime de esporte é um pouco mais delicado. Os poucos momentos de animação fluida são dedicados majoritariamente às apresentações musicais, provavelmente na esperança de agradar mais esse público que é comercialmente muito ativo, mas em um anime que é 70-80% esporte, isso tem o seu preço. Em muitos episódios vocês provavelmente irão notar o uso frequente de imagens estáticas, mas até quando tem sequências de animação, são sequências simples. Lembro de ter brincado na análise de um episódio no meu blog pessoal pois após uma cena de apresentação musical bem animada e coreografada, o anime imediatamente seguiu com umas 3-4 imagens estáticas seguidas. Nesse caso, como exatamente Extreme Hearts se salva? Afinal a experiência visual é um dos pilares da animação, certo?

Pois bem, o termo “experiência visual” não foi usado em vão. O experiente diretor Junji Nishimura, que atua desde Urusei Yatsura (1981), foi escalado como titular e capitão desse time, que foi muito bem montado em cada função. A direção de arte, direção de fotografia, design de arte, design de cores, todo esse pessoal fez o possível para tornar Extreme Hearts uma obra visualmente sustentável. Muitas das imagens estáticas acabaram sendo bem enquadradas, bem sombreadas ou até bem simbólicas. Usar da linguagem da narrativa visual para suprir a falta de uma animação mais caprichada impediu que as partidas perdessem a graça e, de quebra, ainda rendeu um bocado de prints legais. Se eu preferiria uma animação do nível de Haikyuu? Claro, acho que todos prefeririam, mas dentro do contexto que foi essa produção, eu diria que foi um trabalho excepcional da staff, considerando que a maioria dos animes nesse mesmo contexto acabam sendo terríveis. Só senti falta mesmo de uma trilha sonora mais marcante, a do anime até é funcional, mas não passa muito disso, é mediana. E, ao menos para mim, uma trilha sonora forte compensa praticamente qualquer outro problema, pois é o que mais consegue te puxar para a vibe que o anime quer que você tenha.

Outro grande problema que acredito valer a pena citar, ainda mais que provavelmente a grande maioria nem cogitou assistir ao anime, é o próprio episódio 1. Eu particularmente o achei bem interessante, me identifiquei com a protagonista e achei a proposta animadora pela forma que foi executada, mas poderia tê-lo achado excelente. A questão é que ele tem um ritmo muito acelerado, quando eu estava na metade do episódio eu pensava que já estava no fim e a segunda metade acabou impactando menos do que deveria por tentarem empurrar coisa demais em 20 minutos. Deu a impressão de que era para ser 2 episódios, mas decidiram fazer tudo em 1 só. Isso só acontece no episódio 1…em partes. Pois acho que as partidas em si, na sua maioria, poderiam ser mais longas. Mas uma partida que acaba cedo não causa um impacto negativo tão relevante no ritmo da narrativa quanto um roteiro elaborado comprimido em 20 minutos e como a primeira impressão muitas vezes é a que fica, achei importante dar esse alerta.

Extreme Hearts é um anime que reconhece suas limitações e tenta contorná-las para estar na sua melhor forma possível. A protagonista, a música e o esporte tem uma sinergia muito boa e o anime cria uma base que faz esses três elementos se completarem, resultando em todo um arco que se conclui no último episódio e te deixa satisfeito nesses aspectos, embora o roteiro em si deixe boas brechas para que se tenha uma continuação improvável. A premissa de Extreme Hearts dá margem para ser um grande projeto, mas eu duvido muito que tenha realmente o interesse para esse investimento. Então, se você gosta do poder que o esporte tem em criar incríveis roteiros na vida real, você talvez vá gostar de Extreme Hearts.

Se você gosta mesmo é de assistir partidas épicas bem animadas, provavelmente é não irá gostar. Se acha que precisa ter mais animes de esportes femininos que se levem a sério, Extreme Hearts se entrega de corpo e alma nesse ponto. Se procura um anime de idols, esse possivelmente vai te decepcionar (mas as danças são todas bem animadas e coreografas, só são pouquíssimas). Mas, se quer um bom anime que certamente você não assistiu, então eu recomendo dar uma chance a Extreme Hearts. No mais, se decidir assistir, eu realmente recomendo ir lendo os textos que escrevi no meu blog sobre cada episódio, muitos deles são tão longos quanto essa análise aqui e acho que podem ser úteis para agregar em alguma coisa. Agora é esperar pela próxima façanha de Tsuzuki Masaki (e que ela seja o novo projeto de Nanoha, anunciado há tempos já)!


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