Como Gyokou no Nikuko-chan transmite a vida através da atuação de personagens

O Studio 4°C pode estar um pouco longe dos holofotes do meio hoje em dia, o que imagino que seja pelo menos em parte porque seu melhor e mais ousado trabalho está neste momento com mais de uma década. Mas há alguns créditos irresistivelmente interessantes em seu nome, com um portfólio matador desde o início de seus trabalhos em longas: os cinco primeiros longas do estúdio, feitos ao longo de onze anos, incluem dois terços da antologia Memories de 1995, Spriggan de 1998, Princesa Arete de 2001, Mind Game de 2004 (o primeiro longa de Yuasa Masaaki) e Tekkonkinkreet de 2006. Talvez nem todos eles sejam de fato obras-primas de redefinição do meio animado, mas pelo menos o primeiro e os dois últimos são; e isso é suficiente para uma média de rebatidas bastante impressionante, que deve ser suficiente por si só para fazer o lançamento de um novo filme do Studio 4°C despertar uma curiosidade pelo menos acima da média.

Em síntese, seu novo filme, Gyokou no Nikuko-chan / Fortune Favors Lady Nikuko, é uma comédia doméstica muito adorável, que certamente tem o suficiente da borda estilística dos grandes triunfos do estúdio – sendo, na verdade, um pouco mais aventureiro do que sua escrita mundana sugeriria.

É principalmente um exercício muito intrigante de domar o estilo excessivo e enérgico dos melhores filmes do Studio 4°C nas batidas de um convencional drama adolescente angustiado. Nikuko-chan e Kikuko são desenhadas em estilos totalmente incompatíveis, para começar: Kikuko parece uma adolescente de anime bonita, enquanto Nikuko-chan tem as formas erráticas e angulares e a geometria confusa de alguns dos primeiros trabalhos mais ousados do estúdio — Tekkonkinkreet especialmente.

Isso nada mais é do que uma encarnação visual direta do conflito narrativo principal entre as duas, mas Gyokou no Nikuko-chan vai além do simples simbolismo ao brincar com a paleta de cores e a infinita flexibilidade da forma, principalmente em conjunto com as expressões lúdicas de Nikuko. Não é algo “extremamente agressivo”; este ainda é, em última análise, um conto discreto e às vezes calmo sobre uma adolescente tímida, e as cenas de Kikuko nunca têm as explosões de bravura de estilo que as de Nikuko-chan fazem.

Mas acredito que tudo sobre a animação de Gyokou no Nikuko-chan gira ao redor de sua sensação áspera e desenhada à mão na flexibilidade orgânica dos personagens.

O filme evoca vividamente um cotidiano universal e enxerga grande beleza nisso: deitar-se, cozinhar, comer, ir ao banheiro, etc., e tudo mais que parece texturizar uma vida pacífica. Isto foi claramente demonstrado no arco de movimento um pouco exagerado e grande de Nikuko-chan.

De certa forma, era humano. Os animadores que trabalharam em cada parte do longa tinham seu próprio estilo único, mas basicamente sua atuação se baseava nestes princípios. Não é uma atuação realista, mas uma forma e um movimento deformado. Há momentos em que parece um pouco banal, ordinário, mas faz você pensar que a vida é essencialmente assim, e é por isso que você pode amá-la. Não seria exagero dizer que um “conjunto de momentos vivos” formou a base deste trabalho.

E o que foi desenhado como uma extensão disto foi a fisicalidade de sua filha, Kikuko (Kikurin). Suas cenas parecem sempre afirmações da vida — nos faz sentir fortemente “vivos”, — mas de uma maneira diferente daquelas de Nikuko-chan. O filme também se preocupa em retratar seus movimentos vigorosos, incluindo o fato de que é claro que ela é boa em esportes, e a cena em que ela corre é particularmente impressionante. Seus membros esbeltos estão fortemente esticados, e a maneira como ela avança tem uma força que é atraente por si só, e pode até ser um momento em que você pode sentir mais claramente a sensação de “viver/estar vivo” que foi o tema deste trabalho.

O mesmo se aplica a esta cena logo abaixo. Esta era a cena em que ela fugia das instalações onde Ninomiya frequentava. E apesar de ser uma animação bem modesta, ainda me lembro muito claramente de como me emocionei com o poder da imagem de Kikurin correndo com dificuldade para se esforçar neste mundo às vezes cruel; se encorajando a expressar suas emoções.

Claro, isto não quer dizer que houve muitas cenas de corrida no longa, mas acho que é pela mesma razão que, por exemplo, um dos maiores destaques do filme foi a cena em que Nikuko-chan se esforça na caça ao tesouro no dia do esporte. Embora o estilo da animação seja diferente, há muita paixão no ato de correr, e as circunstâncias das duas ficam em segundo plano, fluindo como uma especie de revolving lantern. Desta forma, o filme destaca o momento em que as pessoas “se movem por causa de suas vidas” e enfatiza mais claramente a paisagem (sempre ótima do Studio 4°C). Este também é o caso na representação da vida cotidiana, como mencionado acima, e eu acho que o show tentou retratar fortemente o “sentimento de realidade” através de animação dramática e da fisicalidade nutrida a partir disso.

Gyokou no Nikuko-chan emprega o meu estilo favorito de contar histórias. Não é sobre progredir com alguma narrativa evidente, mas sobre evocar uma sensação de lugar e atmosfera. E a verdade é que a vida não funciona como tendemos a pensar nas histórias — sequências sóbrias de eventos; a vida é frequentemente uma série de momentos vívidos, com seus micro detalhes ainda recordados em nossa memória. 

Tatsuzou Nishita (西田 達三) (?)

Esta é uma virtude fundamental da animação. A animação em si promove uma sensação de hiper-realidade, de atuação de personagens que vai além do puro realismo. 

E nenhuma outra cena parecia capturar mais esse senso de “momentos individuais vividos” e “sentimento de realidade” do que o flashback final. É uma simples troca entre uma mãe e sua filha, quando Kikurin ainda era uma criança. É uma cena muito tocante do ponto de vista narrativo, com a filha alegremente torcendo pela mãe que está exausta do trabalho, mas o que me comoveu particularmente foi a maneira como foi retratada na animação. A cena em si foi tornada mais dramática pela teatralidade e fisicalidade.

Nikuko-chan tenta proteger com todas as suas forças a coisa mais preciosa deixada por sua melhor amiga. Ela está exausta. E vemos o que permanece na sua mente: a cena e a imagem de uma Kikurin movendo-se energeticamente. Todas as pequenas brincadeiras, todos os movimentos, todo o comportamento infantil esparso, sustentam esta historia de fundo de uma forma profunda. Em outras palavras, a atuação e a fisicalidade da criança Kikurin aqui retratada afirma fortemente a vida das próprias crianças de carne. E eu acho que esta é uma prova de que a rica atuação na animação pode às vezes tornar as emoções e as histórias mais convincentes. É fácil acreditar nesta criança, e, consequentemente, no apego que Nikuko-chan tem por ela e por este momento.

A atuação de Nikuko-chan é basicamente deformada, às vezes cômica e seu estilo teatral é muito diversificado. E ainda assim, as coisas que ela mais valoriza, os momentos em que suas emoções mais íntimas saem, são retratadas com uma teatralidade verdadeiramente delicada. Foi uma maneira de tornar as emoções que ela estava sentindo na época mais convincentes e mostrar que este momento, esta cena de sua vida, é insubstituível. É por isso que é tão significativo que o filme termine com aquela expressão no rosto de Nikuko-chan.

O Studio 4°C foi responsável por desvios estilísticos mais selvagens do que isso, mas há algo especialmente empolgante em ver alguns designs de personagens e animações que parecem descendentes diretamente de Mind Game, entre outros lugares, dando vida a uma história bastante mundana. Este é um filme que sublinha um tema forte a um mais imóvel por meio de uma atuação de vida minucioso, animação cuidadosa, delicada e às vezes dinâmica. É um filme que me traz de volta à experiência original de ser movido puramente pela animação; sentido aquela magia que pode elevar o mundano ao atemporal e ao belo.


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