Em 2006 foi a vez do estúdio 4ºC fazer um longa-metragem que seria reconhecido posteriormente pelas suas maravilhosas artes e subjetividades. O filme Tekkon Kinkreet foi adaptado do mangá seinen de Taiyou Matsumoto (também conhecido por Ping Pong: The Animation), que compartilha do mesmo nome, com a Aniplex, Tokyo MX e Beyond C. por trás da produção.
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O motivo mais notável pelo qual o anime é reconhecido relaciona-se com seu visual e incrível coleção de cenários e visuais extraordinários, é justamente por aqui que começaremos. Essa singularidade da obra é nativa de uma mistura heterogênea que correlacionam a arte japonesa com influências ocidentais, uma vez que Matsumoto já esteve em contato com autores como Miguelanxo Prado (figuras distorcidas), Moebius (linha clara e concepção de mundos fantasiosos) e Frank Miller (uso de claro e escuro e no retrato da violência), aprendendo essas características que também compartilha em seu outro mangá. O filme é conceituado pelos seus exorbitantes cenários desenhados totalmente à mão que circulam por cada cena conseguinte. Shuuichi Hirata (responsável pelo background art de Ghost in The Shell, Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira, entre outros) e mais uma equipe inteira de desenhistas foram responsáveis pelos maravilhosos panoramas da cidade em que a história se passa, os detalhes embutidos em cada canto do burgo impressiona qualquer um que assista.
O mais chamativo desses backgrounds em geral é a proporção cultural que é tomada, há um grande grafismo envolvido. Não é difícil notar as exacerbadas representações que são colocadas a mostra em todos os cantos; estatuetas de Buda, Ganesha e outros símbolos religiosos e clássicos, produtos e marcas estampadas por todos a respeito do consumismo, [uma aqui positiva] poluição visual que em geral mostra uma cultura de massa representada na atualidade, indústrias urbanas e suas metódicas construções e agravamentos, entre outros. O anime não poderia retratar com mais realidade colocando todos esses elementos juntos em um palco que fazia bem a sua analogia à vida real. Outro detalhe é que a metrópole não é como uma cidade qualquer – como os diálogos e visuais bem mostram, na verdade assemelha-se mais como uma salve em que somente os mais fortes sobrevivem; polícia, máfias, marginais. Todos se encobrindo em um sistema sócio-político corrupto como facilmente encontrado na vida real. Seria bobagem citar que o diretor do longa, o americano Michael Arias, pediu para a equipe de produção assistir o filme nacional Cidade de Deus para tomar como influência à produção de Tekkon Kinkreet? (Fonte: Folha de São Paulo).
Cena de “A Cidade De Deus”. Há visíveis semelhanças. |
O roteiro da série trabalha muito bem os elementos reais propostos com a fantasia, isso se faz totalmente necessário para trazer a virtude de seus personagens e sua abordagem da proposta à história. Como dito antes, Kuro e Shiro nada mais são do que representatividade do conhecido Yin Yang. Entre outros conceitos e significados, o “preto no branco e o branco no preto” elucidam bem como um não consegue viver sem o outro – pois ambos juntos formam o equilíbrio entre o bem e o mal, entre a escuridão e a luz necessária para a real existência do seu ser. No filme, Shiro é visto como um garoto especial, de percepção diferenciada, em meio aquela cidade cheia de perigo em que ninguém se salva da perdição lúcida. O irmão mais novo é a esperança posta à prova, sua ingenuidade e inocência diante de todas dificuldades que este dois que moram na rua com poucos recursos despõem, mostra bem a virtude de como é possível no meio de tanta perdição, falta de moralidade e egoísmo humano, existir persuasão em acreditar-se na felicidade – ser otimista.
Kuro é o contrário, carrega mágoas consigo. Literalmente só possui como motivo a segurança do irmãozinho e o “equilíbrio” na cidade para viver – tendo deliberadamente a vontade de apenas ficar em paz com o garoto. Durante os desdobramentos do filme é muito bem explorada a necessidade que ambos têm entre si, a forma como existe um equilíbrio emocional entre os dois acaba fazendo parte dos clímaces do longa que profere muito bem a questão. Recursos visuais (representações subjetivas dos pensamentos dos personagens, muitas vezes psicodélicos, como o “minotauro”.) e de roteiro não faltam para transmitir o impacto necessário nesses momentos-chave, é aí que mais uma vez a produção entra em seu destaque.
Um dos recursos utilizado no projeto do filme foi a montagem dos designs por desenhos mais cartoonescos e rabiscados, com um padrão mais casual para os corpos dos personagens sem todo o detalhamento fisionômico, já seguindo a característica do próprio autor do mangá de fazê-los diferente. A técnica ajuda bastante na hora de animar lutas e cenas compridas em geral, porém em consequência não agrada a todos pelo estilo mais simples dos desenhos tratando-se dos corpos. Outro detalhe visual que preciso prestigiar bastante por tornar a experiência ainda mais única foram os storyboards, que em geral foram absurdamente bem feitos e que encaixaram-se perfeitamente com os lindos cenários propostos. Não faltaram cenas em que a câmera percorrera o background sem nenhum tipo de corte, fazendo giros ou outras movimentações em volta dos personagens ao mesmo tempo que não desfocava e nem tirava os detalhes dos cenários ao fundo. As cenas de Kuro e Shiro saltando de telhado em telhado e outras cenas de ação exemplificam bem este ponto.
É engraçado que o responsável pelos storyboards deste filme nunca tenha exercido do mesmo cargo com outro projeto.
Tendo em vista os pontos abordados, Tekkon Kinkreet é um filme de aproximadamente duas horas que vale muito a experiência pela singularidade visual de sua execução, com bons desenvolvimentos de personagens e um desfecho não tão conclusivo, diferente do mangá, que deixa pontas abertas para possíveis interpretações de cada um. É recomendadíssimo.