Animes de Estilos Artísticos Únicos #3 Tekkon Kinkreet

Em 2006 foi a vez do estúdio 4ºC fazer um longa-metragem que seria reconhecido posteriormente pelas suas maravilhosas artes e subjetividades. O filme Tekkon Kinkreet foi adaptado do mangá seinen de Taiyou Matsumoto (também conhecido por Ping Pong: The Animation), que compartilha do mesmo nome, com a Aniplex, Tokyo MX e Beyond C. por trás da produção.

Para ler outras análises da série Animes de Estilos Artísticos Únicos clique aqui.

 
O filme se passa na chamativa Cidade do Tesouro, um complexo metropolitano industrial e cultural em que as pessoas podem levar uma vida doce ou brutal. Shiro (branco) e Kuro (preto) são irmãos órfãos que moram na rua e tomam conta da cidade, lutando constantemente contra outros grupos que tentam dividir o monopólio do lugar. A Cidade tem seu próprio equilíbrio, que é quebrado quando o grupo da Yakuza chega querendo dominá-la e construir um parque de diversões imenso a fim mudar a situação da metrópole cercada por água. Tekkon Kinkreet mistura a realidade do subúrbio com um incrível conto de dois garotos que representam esperança e o próprio ciclo Yin Yang. 

O motivo mais notável pelo qual o anime é reconhecido relaciona-se com seu visual e incrível coleção de cenários e visuais extraordinários, é justamente por aqui que começaremos. Essa singularidade da obra é nativa de uma mistura heterogênea que correlacionam a arte japonesa com influências ocidentais, uma vez que Matsumoto já esteve em contato com autores como Miguelanxo Prado (figuras distorcidas), Moebius (linha clara e concepção de mundos fantasiosos) e Frank Miller (uso de claro e escuro e no retrato da violência), aprendendo essas características que também compartilha em seu outro mangá. O filme é conceituado pelos seus exorbitantes cenários desenhados totalmente à mão que circulam por cada cena conseguinte. Shuuichi Hirata (responsável pelo background art de Ghost in The Shell, Cowboy Bebop: Tengoku no Tobira, entre outros) e mais uma equipe inteira de desenhistas foram responsáveis pelos maravilhosos panoramas da cidade em que a história se passa, os detalhes embutidos em cada canto do burgo impressiona qualquer um que assista.

 
 
Eu poderia escolher outras dezenas de imagens para exemplificar cada rico detalhe dessa paisagem urbana e seu agrupamento de cultura de massa, mas aí o post ficaria ainda maior.

O mais chamativo desses backgrounds em geral é a proporção cultural que é tomada, há um grande grafismo envolvido. Não é difícil notar as exacerbadas representações que são colocadas a mostra em todos os cantos; estatuetas de Buda, Ganesha e outros símbolos religiosos e clássicos, produtos e marcas estampadas por todos a respeito do consumismo, [uma aqui positiva] poluição visual que em geral mostra uma cultura de massa representada na atualidade, indústrias urbanas e suas metódicas construções e agravamentos, entre outros. O anime não poderia retratar com mais realidade colocando todos esses elementos juntos em um palco que fazia bem a sua analogia à vida real. Outro detalhe é que a metrópole não é como uma cidade qualquer – como os diálogos e visuais bem mostram, na verdade assemelha-se mais como uma salve em que somente os mais fortes sobrevivem; polícia, máfias, marginais. Todos se encobrindo em um sistema sócio-político corrupto como facilmente encontrado na vida real. Seria bobagem citar que o diretor do longa, o americano Michael Arias, pediu para a equipe de produção assistir o filme nacional Cidade de Deus para tomar como influência à produção de Tekkon Kinkreet? (Fonte: Folha de São Paulo).

Cena de “A Cidade De Deus”. Há visíveis semelhanças.

O roteiro da série trabalha muito bem os elementos reais propostos com a fantasia, isso se faz totalmente necessário para trazer a virtude de seus personagens e sua abordagem da proposta à história. Como dito antes, Kuro e Shiro nada mais são do que representatividade do conhecido Yin Yang. Entre outros conceitos e significados, o “preto no branco e o branco no preto” elucidam bem como um não consegue viver sem o outro – pois ambos juntos formam o equilíbrio entre o bem e o mal, entre a escuridão e a luz necessária para a real existência do seu ser. No filme, Shiro é visto como um garoto especial, de percepção diferenciada, em meio aquela cidade cheia de perigo em que ninguém se salva da perdição lúcida. O irmão mais novo é a esperança posta à prova, sua ingenuidade e inocência diante de todas dificuldades que este dois que moram na rua com poucos recursos despõem, mostra bem a virtude de como é possível no meio de tanta perdição, falta de moralidade e egoísmo humano, existir persuasão em acreditar-se na felicidade – ser otimista.

Cena com metáfora do Yin Yang.

Kuro é o contrário, carrega mágoas consigo. Literalmente só possui como motivo a segurança do irmãozinho e o “equilíbrio” na cidade para viver – tendo deliberadamente a vontade de apenas ficar em paz com o garoto. Durante os desdobramentos do filme é muito bem explorada a necessidade que ambos têm entre si, a forma como existe um equilíbrio emocional entre os dois acaba fazendo parte dos clímaces do longa que profere muito bem a questão. Recursos visuais (representações subjetivas dos pensamentos dos personagens, muitas vezes psicodélicos, como o “minotauro”.) e de roteiro não faltam para transmitir o impacto necessário nesses momentos-chave, é aí que mais uma vez a produção entra em seu destaque.

Um dos recursos utilizado no projeto do filme foi a montagem dos designs por desenhos mais cartoonescos e rabiscados, com um padrão mais casual para os corpos dos personagens sem todo o detalhamento fisionômico, já seguindo a característica do próprio autor do mangá de fazê-los diferente. A técnica ajuda bastante na hora de animar lutas e cenas compridas em geral, porém em consequência não agrada a todos pelo estilo mais simples dos desenhos tratando-se dos corpos. Outro detalhe visual que preciso prestigiar bastante por tornar a experiência ainda mais única foram os storyboards, que em geral foram absurdamente bem feitos e que encaixaram-se perfeitamente com os lindos cenários propostos. Não faltaram cenas em que a câmera percorrera o background sem nenhum tipo de corte, fazendo giros ou outras movimentações em volta dos personagens ao mesmo tempo que não desfocava e nem tirava os detalhes dos cenários ao fundo. As cenas de Kuro e Shiro saltando de telhado em telhado e outras cenas de ação exemplificam bem este ponto.

É engraçado que o responsável pelos storyboards deste filme nunca tenha exercido do mesmo cargo com outro projeto. 

Representação da mensagem do filme em uma única imagem.

Tendo em vista os pontos abordados, Tekkon Kinkreet é um filme de aproximadamente duas horas que vale muito a experiência pela singularidade visual de sua execução, com bons desenvolvimentos de personagens e um desfecho não tão conclusivo, diferente do mangá, que deixa pontas abertas para possíveis interpretações de cada um. É recomendadíssimo. 

Avaliação: ★ ★ ★  ★