Kotarou Wa Hitorigurashi e as cicatrizes escondidas pela rotina

Considerando o quão instável é o histórico da Netflix com animes, eu claramente não costumo ter grandes expectativas de obras que saem de lá. Mesmo que obras como Devilman Crybaby e Great Pretender existam, a maioria dos animes rotulados pela plataforma nunca me chamou a atenção e apenas fez com que eu passasse batido por elas. Todavia, a adaptação do mangá Kotarou Wa Hitorigurashi se prova como uma bela e grata surpresa, não apenas por ser bom, mas pelo enredo entregar algo além do que eu esperava a princípio; e mesmo que o anime não conte com uma equipe de produção super renomada, ainda conseguiu se provar não apenas como o melhor da temporada de inverno 2022 para mim, mas também uma das maiores revelações deste ano.

Basicamente, o que temos são 10 episódios sucintos, sem enrolação e bastante focados em criar uma atmosfera bem específica, utilizando o peculiar cenário da vida cotidiana de um garoto de 4 anos morando sozinho para explorar assuntos bem delicados como abandono, solidão, família, relações abusivas e principalmente trauma; com este último elemento, inclusive, sendo provavelmente o grande tema central que acaba reforçando e conectando as temáticas anteriores através do seu protagonista. Devido a isso, por mais que eu soubesse que a obra obviamente não seria uma das mais felizes, assumo que não pude deixar de me surpreender com as suas passagens, representações e analogias que conseguem ser tão fortes. Eu sinceramente não me surpreenderia se pessoas comentassem que choraram assistindo devido ao quão verdadeiramente pesado e sombrio vários rumos e conclusões podem ser.

O episódio 3 é um bom exemplo, contendo facilmente as esquetes mais devastadoras de toda a série, como a cena dos balões ou a da foto; além de ter outros momentos como a sequência da compra de roupas e principalmente a visita ao bordel. São cenas que se iniciam com um tom bastante cômico, fazendo o espectador acreditar que o enredo está te guiando para uma punchline bem absurda ou descontraída, até puxar o seu tapete e revelar a real mensagem por trás dessas cenas. O resultado são composições que se provam bem tristes e reflexivas lhe pegando totalmente desprevenido, e se estendem ao longo de todo o anime em geral. Isso é evidentemente reforçado pela direção que retrata quase sempre essas cenas de maneira bastante seca, crua, direta e sem nenhuma grande construção, aparecendo de forma até um tanto repentina; isso adiciona mais uma camada bem trágica a tudo isso, visto que é como se esses acontecimentos estivessem tão intrínsecos à rotina destes personagens, se tornando algo apenas comum de suas vidas, como se já estivessem anestesiados de tanto passarem por isso — especialmente no caso do Koutarou.

E tocando no assunto, mesmo que a obra seja repleta de qualidades, o grande ponto alto dela é sem dúvida o próprio Koutarou, que já é facilmente um dos melhores personagens que vi este ano. É impressionante que mesmo ele sendo criado em cima de uma premissa tão absurda, tendo a habilidade de morar sozinho mesmo com tão pouca idade e possuindo muito mais maturidade do que todo o núcleo mirim da série, ainda possui a ingenuidade, inocência, vulnerabilidade e pureza de uma criança normal. Isso faz ele se tornar um personagem muito mais humano e tangível do que se poderia esperar a princípio. Além disso, a sua caracterização também é fantástica.

Kotarou é um personagem bastante idiossincrático e excêntrico, desde da forma como tenta se comunicar e se portar como um senhor feudal, ou o quão observador ele é, a obsessão pelo Tonosaman e por aí vai. E isto é usado como um pretexto para continuar explorando essas temáticas bastante sensíveis, especialmente pela obra deixar claro que absolutamente cada atitude que ele toma em qualquer cenário ou situação é sempre motivada pela traumática situação acarretada pelo abuso do pai e o abandono da mãe; isso faz com que várias cenas relacionadas a ele se tornem incrivelmente dolorosas de se ver, especialmente por passar a impressão de que nunca será possível entender de verdade a real dimensão do impacto que este trauma causou nele. Cada mínima decisão que ele faz é tão interligada a este evento que é como se toda a sua vida, mentalidade e rotina tivesse sido calcados inteiramente em cima disso, tendo sempre uma nova camada sendo mostrada, oferecendo cada vez mais profundidade tanto ao tema quanto ao personagem.

Contudo, por mais que a essa altura eu possa ter dado a entender que o anime é totalmente niilista ou fatalista, ele também está bem longe disto, já que no meio deste sofrimento, a obra entrega momentos bastante acolhedores, calorosos ou até engraçados. Por exemplo, quando Koutarou interage com personagens como o Tamaru, a Mizuki e principalmente o Karino — que, inclusive, possuem uma ótima dinâmica entre si —, ou quando há desfechos bem esperançosos que demonstra que o Koutarou pode ter um futuro muito mais feliz e alegre do que ele nunca teve; afinal, devido ao sombrio contexto citado anteriormente, a obra induz o espectador a se comover e comemorar ainda mais cada conquista e relação que o Koutarou alcançou durante toda a série. Mesmo que a aura melancólica nunca desapareça por completo, o anime rende conclusões bastante agridoces, como no ótimo diálogo envolvendo o jogo de queimada ou a fuga do Takuya no episódio 4.

O único defeito que posso citar na obra é o roteiro utilizar esta estrutura de usar qualquer atitude do Koutarou para tecer algum comentário sobre um determinado tema tantas vezes que se torna um tanto formuláico e cansativo durante o meio do anime. Ainda mais quando você consegue antecipar o que está por vir e como resultado certas passagens e diálogos não soam tão impactantes ou surpreendentes quanto os dos episódios iniciais. Felizmente, isso é contornado em partes nos episódios finais, quando a obra dá uma ênfase a mais para outros personagens do elenco, mas ainda conseguindo agregar bastante as temáticas já trabalhadas anteriormente. Mesmo que nenhum deles seja tão bem explorado como Koutarou ou o Karino, ainda há bons momentos onde até mesmo subvertem as expectativas, como na despedida da Mizuki no episódio 7, facilmente um dos meus momentos favoritos da série.

No fim, o que foi dito acima não muda o fato de que Kotarou é um anime muito bom. Tenho a constante sensação de que a experiência de assisti-lo é como se eu estivesse vendo o que seria o mangá de Yotsubato se ele fosse focado em fazer você chorar ao invés de fazer rir. O anime de Kotarou é muito bem escrito, consistente, conta com bons personagens e explora essas temáticas bem tristes e espinhosas de uma forma bastante sensível, tocante e autêntica de uma maneira que nós não vemos todo dia; a obra saber refletir sobre o lado mais sombrio escondido no nosso cotidiano, mas sem nunca cair em um discurso derrotista. Claro que se você é do tipo que prefere consumir algo alegre e Happy Go Luck, talvez você possa não se sentir tão cativado pelo anime, mas considerando o quanto aprecio obras que flertam com tragédias pessoais e com a melancolia, posso dizer com tranquilidade que este é o meu slice of life favorito de 2022 até aqui.


Agradecimento especial aos apoiadores:

Victor Yano

Apolo Dionísio

Essas pessoas viabilizam o projeto do site e podcast HGS Anime. Se você gosta do que escrevemos e publicamos, e gostaria que continuássemos mantendo esses projetos, por favor considere nos apoiar na nossa campanha PicPay, nossa campanha Apoia.seou doando um PIX para hgsanime@gmail.com.