86 e os horrores do racismo estrutural

Sendo a adaptação de uma light novel lançada em 2017, 86 acabou estreando na temporada em meio a uma certa antecipação. Não apenas pelos fãs do material original, mas também por ela trazer uma temática militar que acabou chamando a atenção de diversas outras pessoas, ao ponto dela ter consigo criar um certo destaque dentre o nicho. E por mais que ela também tivesse conseguido despertar a minha curiosidade, ainda sim, eu estava me questionando sobre a sua qualidade. Visto que por mais que obras focadas em explorar guerras tragam consigo um grande potencial, ao mesmo tempo, elas podem acarretar desfechos bastante duvidosos ou deturpados caso o autor não tenha o cuidado ou a habilidade de explorar o tema da forma como se deve, como aconteceu com uma certa obra popular recentemente. Mas, mesmo sim, fui assistir torcendo pelo melhor, e devo dizer que ele conseguiu se sair até que bem melhor do que eu esperava – mesmo tendo certos aspectos que impediram de eu considerar ela uma obra acima da média.

O anime consegue começar com o pé direito em seu episódio de estreia, visto o quanto ele não apenas faz questão de basear todo o cenário da trama dentro de um país completamente fascista e segregacionista, mas também conseguindo transpor isso de uma forma bastante prática e ágil. Somado com a decisão deles dedicarem cada metade do episódio se focando unicamente na república ou no distrito 86, que além de permitirem eles trabalharem diferentes perspectivas de uma mesma cena, também criam paralelos e demonstram o imenso contraste do estilo de vida deles de uma forma mais orgânica. Fora o quanto o autor parece estar bem focado não apenas em explorar o preconceito da forma tradicional como estamos habituados, mas também o racismo estrutural e a forma como eles atingem as pessoas nessa sociedade. Especialmente graças a Annette, que consegue representar muito bem o quão perigoso é esse sistema, já que ela não só representa a total indiferença em relação à condição social que eles vivem, mas também a tentativa de continuar perpetuando esse preconceito estrutural, tentando se isentar e consequentemente, desmerecendo a gravidade de toda essa situação. Não só mostrando o quanto você pode acabar incentivando essa situação de uma forma indireta, mas também denunciando o egoísmo e a falta de humanidade dessas pessoas que fingem que esses problemas não existem devido aos seus privilégios. Algo que é reforçado ainda mais com a ótima analogia dos doces, que é algo bem maneiro.

Fora outras passagens que complementam o tema, como o ódio e o preconceito que a Kurena sente em relação a todos da república. Isso acaba mostrando o porquê de conceitos como “racismo reverso” serem uma grande idiotice, já que isso é resultado de uma atitude criada pelos próprios opressores; se um grupo se empenha em discriminar ou marginalizar outro, é esperado que indivíduos desse grupo que está sendo oprimido acabem tomando uma postura mais radical e extrema em relação a eles. Isso cria um ciclo vicioso, cuja responsabilidade será sempre de quem oprime. Há um diálogo da Lena com a Annette em que ela comenta que o nome é a identidade de uma pessoa, e a forma como eles omitem isso justamente para desumanizar os 86 e fazer com que o povo não os enxergue mais como humanos. Até a cena em que a Lena está passeando pela praça e eles criam um belo paralelo mostrando todos os civis da república se divertindo, contrastando com os relatos horrendos da Kurena do campo de batalha, mostrando que esse estilo de vida só consegue ser sustentado através da morte e do sacrifício de todos aqueles que não estão aptos a viverem nela. Com todas essas passagens tendo muita semelhança com a realidade, inclusive aqui mesmo no Brasil. Se mostrando bastante afiadas, pertinentes e espertas. Tanto que quando a obra tenta se focar nessas denúncias políticas e sociais, é provavelmente o momento que ela mais brilha e se destaca.

Mas mesmo assim, a obra possui um calcanhar de Aquiles. E ele está presente no seu elenco. No caso do núcleo do distrito 86, a grande maioria dos personagens de lá não apenas são bastante estereotipados, genéricos e sem nada que façam eles se destacaram de alguma forma. Mas como eles também não trabalham algum tipo de dinâmica ou interação que façam com que esse elo dentre eles se torne algo mais convincente. E isso é algo bem triste, visto que levando em conta tudo aquilo que eles sofreram e o código de honra que eles compartilham entre si, a obra deveria justamente nos convencer e trabalhar esse senso de amizade, união e companheirismo dentre eles. Mas sempre que algum personagem do grupo morre, nunca parece ter alguma cena que consiga transmitir algum sentimento de raiva, dor, luto, tristeza ou perda entre eles de uma forma crível. Especialmente pela imensa facilidade que eles tem em superar isso. E se nem eles se importam com os seus parceiros a esse ponto, fica complicado para nós que estamos assistindo nos importarmos com eles. Tanto que não é à toa que a morte do Fido (vulgo robozinho) é a mais comovente de toda a série. Pois a forma como a obra mostra que todos do grupo tratavam ele como um grande amigo, mais o fato dele ter acompanhado todo o crescimento do Shin e a formação do grupo desde seu início, faz com que todo esse senso de amizade se torne palpável. E quando você percebe que todas essas lembranças e toda a história criadas com eles serão perdidos para sempre com a destruição dele, é bem difícil não se sentir triste ou abalado. Algo que deveria estar mais presente na obra, mas que acabou não acontecendo.

E nisso chegamos na Lena… E infelizmente ela também não me soa uma personagem muito atrativa. Visto que mesmo a obra insinuando que ela seja alguém inocente ou ingênua, existem atitudes que eu apenas não consigo engolir. É muito bizarro que mesmo ela sendo uma major, não aparenta ter a mínima noção do que está acontecendo no seu próprio país. No momento em que ela descobriu que os meios de comunicação estão sendo controlados, que os fatos históricos estão sendo omitidos e toda a atitude das pessoas em relação aos 86, era só ela juntar 2 + 2 para perceber o estado fascista que a república se tornou. Mas ao invés disso, é como se ela estivesse em um estado de negação e se recusando a aceitar o óbvio. Seja com ela ainda querendo acreditar no tio dela, ou vindo com esses discursos sobre patriotismo que são bem ruins e não ajuda em nada a situação dela.

Eu não teria problema com isso, se o autor estivesse ciente que ela é uma garota alienada ou que ela está presa em algum tipo de lavagem cerebral criado pelo governo. Ou se colocasse em cheque a questão dela estar seguindo esses ideais por um senso genuíno de mudança ou apenas por uma questão de ego; explorasse a hipocrisia e as consequências dela defender essas causas igualitárias sem a coragem de ir até às últimas consequências para sustentá-las. Mas a obra quer realmente insinuar que ela é uma heroína revolucionária que merece a sua admiração desde do início, quando no fim, ela está bem longe disso. Ainda mais quando você percebe que mesmo que ela sempre faça esses discursos nobres e humanitários, ela não parece estar disposta a confrontar a república e lutar para destruir esse sistema de uma forma mais direta. Tanto que, no fim, ela ainda é uma integrante do exército de um país fascista, que ainda luta pelo mesmo por vontade própria, e que não parece muito preocupada com a situação dos outros 86 que não seja do seu esquadrão. Isso acaba fazendo com que esses discursos não soem lá muito verdadeiros ou críveis. Então o ponto é que enquanto a Lena não conseguir tomar a atitude de lutar contra esse sistema tão atroz, e se posicionar de uma maneira mais radical e convicta contra o governo da república, dificilmente ela conseguirá o meu respeito, e muito menos a minha admiração. Não importando o quanto a obra tente vender ela como essa grande salvadora. Nos dois últimos episódios, ela conseguiu mostrar um vislumbre dessa atitude, o que é algo bom. Mas que terá que ir mais bem mais além para conseguir se provar como uma personagem digna para mim.

E quanto à produção, provavelmente foi uma das maiores surpresas da obra. Em que a direção foi definitivamente algo digno de destaque. Visto que ela não apenas está repleta de simbolismos, metáforas e rimas visuais bastante espertas e inspiradas, como algumas que citei anteriormente. Mas que somado com a direção de arte, consegue criar composições de cena bastante maneiras. Os cenários não são apenas belos, mas como em certos momentos, os objetos de cenários são usados para incrementar a narrativa visual. Assim como a fotografia, que cria certos jogos de luzes e efeitos que são bem bons, como o flashback do Shin sendo enforcado pelo seu irmão. E principalmente a cena em que a Lena se traumatiza com a revelação sobre as ovelhas negras em seu quarto, e há uma sequência bastante tensa e macabra, em que a imagem vira de cabeça para baixo, a palheta de cor fica vermelha e bem saturada, e a câmera começa a girar, que somado ao efeito de distorção e os cortes, te deixa tão desorientado e aflito quanto a Lena. Há ainda certas transições de cenas bem criativas. E tudo isso não só acaba deixando a obra bem mais fluida, dinâmica e ágil, já que não é como se eles precisassem perder tempo com diálogos expositivos quando eles podem transmitir isso através desses recursos visuais. Mas também consegue entregar uma identidade e característica bem própria para a adaptação.

Mas mesmo com isso, existe um ponto em que a produção escorrega. E por incrível que pareça, é a trilha sonora. Em que a impressão que dá é de que o compositor estava focando em um estilo mais minimalista, ao ponto de várias trilhas me lembrarem músicas ambientes. Isso obviamente não é nada ruim por si mesmo, visto que existem vários animes como Shin Sekai Yori, Mushishi, Lain, Shoujo Shuumatsu e Zankyou no Terror que seguem esse estilo e contém trilhas absolutamente incríveis. Mas o grande problema aqui é que ele não parece estar conseguindo criar sons ou melodias que soem hipnóticas, evocativas, atmosféricas, criativas ou experimentais de nenhuma forma que consiga incrementar a cena de forma mais notável. E como consequência, é como se quase todas as faixas instrumentais soassem como uma série de interlúdios que não culmina em lugar nenhum, resultando em uma trilha um tanto básica, genérica, insossa e acima de tudo, unidimensional. Visto que não é como se essa trilha também fosse lá muito versátil. Ao ponto de que em vários momentos aparentar que a única ideia que ele tem para criar uma trilha melancólica, reflexiva ou tensa é apenas usar melodias planas de piano ou melodias repetidas de violino até a exaustão, sem outros instrumentos para incrementar a trilha.

Até mesmo as inserts songs não são das melhores. É o caso da trilha no meio do episódio 2, em que a instrumentação é tão ruim que chega em um momento em que você não consegue discernir muito bem os instrumentais da trilha com os efeitos da sonoplastia. Ela é composta por essas baterias somadas com sintetizadores que se mesclam de uma forma nada agradável e um tanto bagunçada quase que sem nenhum ritmo ou groove. Nem a vocalista se preocupou em tentar salvar a faixa. Enquanto isso, o restante são outras faixas que soam OK e definitivamente bem melhores que essa que citei, mas, ainda sim, não muito marcantes – como a balada do episódio 8 ou a ending Avid, usada na luta do episódio 9, em que possui uma das melhores performances vocais da trilha, mas que ainda me soa um tanto sintética e nem de perto tão catártica ou intensa quanto outras inserts songs. Mesmo que tenha algumas faixas como a trilha instrumental do final episódio 9 que sejam mais climáticas e belas, além de outras faixas do episódio 6 e do final que consiga ser melhores, elas não conseguem carregar a trilha ao ponto dela se tornar algo muito satisfatório ou memorável. Então… É.

Apesar disso, achei a obra legal. Ao ponto desses 11 episódios me soaram bem melhor do que muita coisa que Shingeki tentou fazer em questão de roteiro, por exemplo. Visto que as críticas sociais aqui são mais precisas, coesas, elaboradas e com bem mais substância do que lá. Fora que o rumo que o autor parece estar almejando é bem intrigante, focando mais nos dramas dos personagens do que na ação da guerra. O problema é que muitas dessas ideias parecem estar em estado bruto, e precisam ser polidas e melhor trabalhadas. Seja a interação entre os soldados do distrito 86. Seja na atitude indecisa e ingênua da Lena. Ou na expansão do próprio mundo da obra, já que eu gostaria de ver mais detalhes tanto sobre o exército e possíveis outros generais ou a forma como os civis agem na república. Quanto os outros esquadrões além do distrito 86, ou outros países além da república, caso exista algum. Mas no fim, eu acredito que a obra conseguiu ter mais acertos do que erros, e torço para que os envolvidos consigam incrementar as ideias que eles possuem em mãos em sua continuação.