Kuroshitsuji e um passeio pelo submundo de Londres

Kuroshitsuji sempre foi o tipo de obra que, por mais que eu conhecesse de nome, visto que ela acabou ganhando uma certa notoriedade com o passar do tempo, contendo várias adaptações em anime e tudo mais, conseguindo se manter em publicação até hoje, eu nunca parei para realmente procurar saber ou pesquisar mais sobre ela.

Eu nunca soube de fato qual era a temática ou gênero da obra, o que fez com que eu fosse ler ela completamente as cegas, sem a menor ideia do que esperar. E após alcançar os capítulos atuais, eu devo dizer que foi uma experiência bastante gratificante. Esse texto irá comentar apenas o mangá, já que eu não me interessei em assistir as adaptações em anime.

Um dos pontos mais intrigantes é como o mangá é quase uma espécie de fusão de Gosick com Hellsing, a grande premissa consiste no protagonista Ciel Phantomhive investigando diversos casos de assassinatos no qual a polícia não pode resolver, ao lado de seu mordomo Sebastian. Muito do apelo da obra é o tom de mistério em descobrir o culpado e as motivações por trás de cada arco.

Como no arco da mansão, que possui uma narrativa mais tradicional, no qual um grande grupo de pessoas tem que lidar com um assassinato inexplicável dentro de uma mansão em que são incapazes de sair, tendo que investigar pistas e criar álibis até chegar no verdadeiro culpado. Mesmo contendo algumas cenas que colocam a sua suspensão de descrença em cheque, ainda sim, o mangá acaba conseguindo ser bem eficiente em entregar uma resolução lógica dentro do universo da obra e ser um arco divertido. No arco do Jack, o estripador, há um tom bem mais sombrio e violento, não apenas por você descobrir que os métodos de investigação do Ciel são pouco ortodoxos, mas também pela revelação do culpado acabar culminando em um momento trágico, dramático e bem convincente. Se tornando uma bela introdução para a obra.

 

Enquanto que por outro lado, existem arcos bem mais calcados no terror como o arco do navio, que é bem diferente e se inspira na clássica temática dos filmes de zumbis, se tornando um dos arcos mais sanguinolentos da obra, mas também um dos que melhor revela uma outra grande qualidade que Kuroshitsuji possui, que é o seu excêntrico senso de humor. Não apenas durante esse arco, mas em vários outros momentos, eles entregam cenas que são bastante absurdas, galhofas ou ridículas, como o “cumprimento especial” que o Ciel precisa fazer para se infiltrar na organização, ou o fato da arma de um dos Shinigamis desse arco ser um fucking cortador de grama, além de diversas outras situações que admito que são bem hilárias. E o melhor é que elas não apenas servem para o propósito de piada, mas também como maliciosas cortinas de fumaças que escondem as verdadeiras intenções de determinado arco, visto que enquanto eles te enganam preparando uma construção para algo que você acredita que culminará em uma grande cena violenta, tensa, ou impactante, e acabam jogando essas piadas, fazendo com que você acredite que toda a situação está no mais completo controle do Ciel, ou que você não leve o arco tão a sério… Eles novamente subvertem as suas expectativas, jogando uma cena com um tom completamente oposto em um momento totalmente inesperado, que lhe pega completamente desprevenido e faz com que a tensão retorne com força total. A autora insere os elementos dos mortos vivos dentro da trama e do universo da obra de forma bem interessante.

E falando nisso, um outro ponto a se destacar é a habilidade da autora de criar esse contraste dentre as cenas cômicas com as cenas mais impactantes. Tenho que admitir que quando Kuroshitsuji se esforça para ser grotesco, tenso e perturbador… Ele consegue. E com maestria. O maior exemplo é provavelmente o arco do circo, não sendo apenas o meu arco favorito da obra, mas aquele que considero o grande divisor de águas da trama. É um arco que não só consegue apresentar uma série de personagens secundários bastante intrigantes, em que mesmo eles sendo claramente meliantes,também conseguem criar um elo bem genuíno de amizade e companheirismo, mas isso somado ao seus passados e posição social, faz com que você consiga sentir empatia por eles. Quando as revelações finalmente veêm a tona, e você descobre quem é o patrocinador do circo e o objetivo por trás disso, você tem essa sequência de cenas bastante chocantes, que faz a tensão se intensificar a um nível angustiante, culminando em um desfecho brutal, trágico e completamente aterrador. Isso revela um pouco da verdadeira natureza do Ciel e o quanto ele e o Sebastian não são heróis que merecem ser admirados, algo que também é visto no arco da bruxa, onde a problemática em questão acaba atingindo o Ciel de uma forma bem mais direta, fazendo dele não apenas o arco mais urgente da obra, mas também um dos mais versáteis; este arco transita entre o terror e o drama e encerra com cenas bem frenéticas e eletrizantes de ação, que acaba fazendo ele se tornar um outro arco digno de destaque.

E quanto aos personagens, eles também acabam se provando como mais um grande ponto positivo da obra. Muitos deles acabam sendo bem diferentes, conseguindo deixar uma grande impressão, cada um à sua própria maneira. Desde de personagens como o Soma, o Agni, o Finney, a May Rin, o Bard ou o Lau, que mesmo sendo personagens com uma composição mais alegre, divertida, ou inocente, acabam se provando mais do que apenas meros alívios cômicos, até a personagens mais misteriosos e excêntricos como o Undertaker, o Grell e praticamente todo o grupo de Shinigamis, que tornam-se bastante intrigantes principalmente pelo quão imprevisíveis eles são pelo fato de você nunca ter uma certeza plena de quais são os seus verdadeiros objetivos ou intenções.

Mas obviamente que o grande destaque vai para a dupla de protagonistas. O Sebastian é quase que uma versão mais contida e ponderada do Alucard de Hellsing, mas não sendo menos ameaçador. Ele é tão perfeito, mas tão perfeito, que só causa essa sensação de estranheza, visto que além de você saber que o que ele faz é algo impossível para um humano fazer, ele também soa muito falso ao ponto de você saber que por trás dessa feição muito amigável e educada esconde algo bem mais assustador e sombrio. Ele usa isso de pretexto para esconder o grande instinto assassino que ele tem junto ao fato dele não ter absolutamente nenhum tipo de senso moral ou princípios. Até a própria relação dele para com o Ciel, mesmo que ele sempre faça discursos de lealdade e diga que ele sempre será o seu fiel servo, nada disso soa muito verdadeiro. Mesmo com essas palavras, ele sempre parece ter essa vontade sádica de ver o Ciel sofrendo ou se autodestruindo nessa jornada dele por vingança.

E falando no Ciel, este personagem não apenas se tornou o mais surpreendente, mas também o meu favorito de toda a obra. Se o Sebastian é algo equivalente ao Alucard, ele seria uma versão muito mais profunda, complexa e bem trabalhada da Integra, também de Hellsing. Por mais que ambos possuam essa postura muito fria, orgulhosa e bastante autoritária, isso só parece como uma máscara para esconder o quão quebrados e fragilizados eles são. E no caso do Ciel, isso é explorado de uma forma muito mais além, mesmo ele tomando atitudes absolutamente indefensáveis e inaceitáveis, você nunca consegue odiar ele de fato, isto que ele acaba parecendo mais como o resultado do ambiente absolutamente podre, sujo e sórdido em que ele vive, o que curiosamente acaba sendo nada menos que a elite e a nobreza de Londres. A obra retrata esse cenário como um imenso covil de cobras, com pessoas bastante gananciosas, vaidosas, e ardilosas que estão dispostas a tudo para se manter no poder ou realizar os seus objetivos. Ou então pessoas que acabam sendo ludibriadas por isso e acabam se corrompendo ou sendo enganadas e manipuladas por pessoas mais espertas ou poderosas que eles, que acabam não dando opção para o Ciel agir de outra forma que não seja essa, conseguindo fazer essa crítica bem ferrenha e ácida sobre o quão repulsivo pode ser as posturas e atitudes dessas pessoas de uma forma bem coesa e precisa. Basicamente o que Moriarty tentou fazer e não conseguiu.

Mesmo o Ciel estando nessa posição bastante privilegiada, ele sempre soa como um personagem bastante trágico. Mesmo ele possuindo riqueza, poder, influência, e diversos servos ao seu dispor, além de nada disso parecer trazer uma grande satisfação para ele, ele tem absoluta noção do quão horrendo são essas posturas que ele toma. No entanto, como ele não parece ter absolutamente nenhuma perspectiva de salvação ou redenção, ele se afubda cada vez mais nessa espiral de morte e violência em prol de sua vingança, já que, na mente dele, ele não tem nenhum outro caminho ou futuro a seguir que não seja esse. Isso acaba acarretando em consequências bem graves para o seu estado mental ao ponto dele se tornar bastante instável, vulnerável, e quebrado em diversos momentos da obra. Tanto que mesmo com ele se esforçando ao máximo para abrir mão de toda a sua humanidade, ele sempre acaba se tornando incapaz de fazer isso por completo, fazendo dele um personagem multi camadas, assustadoramente humano e simplesmente fascinante, principalmente sobre as reflexões sobre vingança que ele trás, o quão imensamente alto pode ser o custo para você conseguir ela. Além da química que ambos têm interagindo um com o outro que é bem impressionante, seja em momentos cômicos, com o tom e o humor sarcástico e debochado do Sebastian contrastando com o tom sério, frio e metódico do Ciel, que acaba rendendo momentos bem divertidos, até a momentos mais sérios e carregados, que acaba rendendo diálogos bem mais reflexivos e introspectivos.

As maiores falhas estiveram em parte do arco dos indianos, em que por mais que ele tenha algumas passagens interessantes e algumas boas piadas, a parte final do arco, que é bem parecido com algo que Shokugeki no Souma faria, não funciona muito bem e acaba passando uma impressão de que é bem arrastado. Mas principalmente o arco da academia, em que por alguma razão, parece que a autora estava tentando recriar algum arco de Harry Potter, só que de uma forma nem um pouco satisfatória. As referências são tão constantes e cristalinas que acaba fazendo o arco parecer um tanto derivativo. Todas as qualidades que estive comentando até agora não parecem estar presentes aqui, a trama do Ciel tendo que subir de hierarquia dentro da academia para se encontrar com o diretor da escola é chata, enfadonha e monótona, não possuindo nenhum momento real de perigo, tensão ou urgência. E até o senso de humor excêntrico e peculiar também some quase que por completo, visto que além de você não ter muitos alívios cômicos, quando eles aparecem, não são nem de perto tão afiados, criativos, ou surpreendentes quanto a de qualquer outro arco. É como se a autora estivesse reciclando certas piadas e inserindo elas de uma forma não tão bem encaixada. Além de que todos os novos personagens secundários introduzidos nesse arco, como o P4 e os vice-presidentes dos dormitórios, soam como arquétipos genéricos e esquecíveis, novamente nem próximo da presença e do carisma dos personagens citados anteriormente na review.

Até mesmo a única qualidade desse arco, que é a mensagem transmitida quando os culpados são descobertos e a motivação por trás de seus crimes, não é tão bem aprofundada quanto poderia, mesmo ainda sendo uma observação válida. Todos estes pontos fazem deste, indubitavelmente, o pior arco da obra inteira.

Mas mesmo tendo dito isso, admito que eu amei o mangá. É bem impressionante como mesmo com mais de 150 capítulos, consegue ser uma obra bem criativa e, acima de tudo, bastante imprevisível. Desde do desenrolar dos arcos, até as influências que a autora usa e a forma como ela mistura aspectos que obras tão contrastantes, mas que, ainda sim, funcionam muito bem dentro do universo da obra, passando até mesmo na própria arte e na narrativa visual, que é bastante bela, rica e dinâmica, e que definitivamente merece destaque. Até mesmo na própria mitologia da obra, em que todos os elementos envolvendo a mitologia, como a coleta de almas ou a razão que faz alguém virar um Shinigami, são bastante espertos e criativos uma identidade própria. Mesmo com tudo isso, ainda consegue ser uma mangá até que bem acessível de se ler, mesmo para um público casual, o que faz com que seja compreensível a fama e a fiel fanbase que ele conquistou durante a sua publicação. Muito bom.

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