Miyazaki e sua negligenciada animação | Matéria

O texto aqui apresentado, abordando uma analise à animação de Hayao Miyazaki, se apoia em diversas fontes; livros e artigos. Todo o material de base estará incluso no fim da publicação.  


Hayao Miyazaki nasceu em 1941. De acordo com o Hayao Miyazaki’s World Best of Booklet: Após se formar na universidade, ingressou na Toei Animation, em 1963. A empresa era o único estúdio capaz de produzir filmes de animação. Lá, Miyazaki foi presenteado com a chance de trabalhar com extraordinários animadores seniors como Yasuji Mori, Yasuo Otsuka, Isao Takahata-sensei e Yoichi Kotabe.  Um maior destaque ao trabalho e ao processo de aprendizagem de Miyazaki com o mestre Takahata. Uma colaboração inicial entre os dois resultou no nascimento da série de animação televisiva, Heidi (1974), que atraiu um grande público. A natureza da cenografia do programa (cenários ocidentais) veio de Takahata, mas já podemos ver a mão forte do Miyazaki nesse trabalho, que ele construiu posteriormente quando produziu personagens como o de O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no Takkyuubin, 1989), Porco Rosso (Kurenai no Buta, 1992)O Castelo no Céu (Tenkuu no Shiro Laputa, 1986). Hoje, Miyazaki não é simplesmente tido como o maior diretor de animações do japão, mas também é posto como o maior em nível mundial; ressalto que essa não é uma afirmação vazia.  


Regularmente, quando as pessoas falam sobre a arte de Hayao Miyazaki elas apresentam imagens estáticas de suas paisagens (que são verdadeiramente impressionantes em sua vibrações e detalhes) ou exibem seus desenhos de personagens ou falam de suas máquinas malucas ou, previsivelmente e quase tediosamente, sobre como seus filmes são populares. Miyazaki realmente tem uma gama de habilidades. Em seus trabalhos anteriores, em séries de animações clássicas, como a série de televisão Alps no Shoujo Heidi (Heidi: A Menina dos Alpes, 1974), ele se tornou perito em produzir paisagens, vistas e visualizações paranômicas. Ele é extremamente inventivo na construção de sequências de ação frenéticas, especialmente em suas séries subsequentes, como Mirai Shounen Conan (Conan – O Rapaz do Futuro, 1978), Lupin III (1971–1972) e no filme Tenkuu no Shiro Laputa (O Castelo no Céu, 1986). 
 
Ele também tem um talento especial para produzir tipos de personagens icônicos, ainda expressivos e memoráveis, e há uma espécie de léxico de personagens Miyazaki instantaneamente reconhecíveis. No entanto, eu diria que a arte da animação de Miyazaki como animação, isto é, como uma arte de movimento, está em sua delicadeza com os planos de fluidez da animação. Sequências do voar, planar, flutuar, muitas vezes em conjunto com a visão panorâmica, tão predominante nos filmes do Miyazaki, me parece a chave da sua animação. E é em suas técnicas de movimento que as apostas de sua arte de animação ficam mais claras. Miyazaki evita quase que cuidadosamente composições fechadas e as sensações de movimento em profundidade volumétrica; isto não é simplesmente uma questão de orçamento. Embora ele, agora, tenha acesso a grandes orçamentos e tecnologias que lhe permitiriam diminuir a sensação de movimento entre camadas, ele tende, no entanto, a enfatizá-la.

Existe uma tentação em criar uma rixa entre arte e tecnologia ou, se preferir, entre poesia e ferramenta, entre criar e elaborar. No entanto Miyazaki é muito mais aguçado que isso. Ele sabe (ou melhor: ele aprendeu) que a arte da animação não é separável de suas ferramentas; é Tecno-arte ou Tecno-poesia. De fato, o grande desafio de seu trabalho está em sua tentativa de repensar a tecnologia sem rejeitá-la. 

 

Na produção do excelentíssimo Mononoke Hime (Princesa Mononoke, 1997), ele começou, relutantemente, a usar algumas tecnologias digitais, mas inicialmente restringiu seu uso em grande parte apenas a colorir ou pintar. Em alguns de seus filmes, como Princesa Mononoke e a Viagem de Chihiro, ele procura manter a impressão de desenhos manuais. Sua resistência às técnicas de computador não é simplesmente uma defesa a animação tradicional de celuloide (folha transparente na qual os personagens são feitos para uma animação tradicional desenhada à mão), mas parte também de uma escolha artística e, de forma mais profunda, uma resistência geral ao tipo de composição que quase chegou a definir a animação digital ou computadorizada – movimento de acordo com a perspectivismo que os computadores tornaram mais acessíveis; exigindo um pouco menos de habilidade artesanal dos animadores – como bem mostrado no livro The Anime Machine, de Thomas LaMarre. De fato, quando ele recorre à animação por computador, as sequências tendem a se destacar, como na cena de Princesa Mononoke em que um javali selvagem é “devorado” e o herói precisa fugir. Esse é um dos alicerces usados por profissionais ocidentais na defesa do ponto da “obsolescência do 2d”. 

A cena em questão, de Princesa Mononoke, se destaca porque, embora a composição digital possibilitasse produzir efeitos de movimento em profundidade, Miyazaki enfatiza o movimento lateral de maneiras que rebaixam as sensações de profundidade. Quase que como regra, seus filmes evitam ou minam sensações de movimento em profundidade. 

Segundo LaMarre, Miyazaki se esforça para produzir mundos sem o sustentáculo tecnológico, suprimindo toda essa noção tecnológica sobre a sua arte enquanto desenvolve outras formas de trabalhar com o potencial da imagem em movimento. LaMarre em seu livro ainda traz Paul Virilio, um autor de vários livros sobre as tecnologias da comunicação, que acha que não será fácil – e provavelmente não é mais possível – despir os efeitos das tecnologias modernas para voltar a um alento. 


Acerca da cena: Enquanto o uso de tecnologias digitais permitiriam uma sensação de movimento em profundidade, o dinamismo desta sequência de Princesa Mononoke vem do movimento lateral em combinação com técnicas de movimento de personagem em ângulo, que trabalham com composição aberta.

Outro ponto na animação de Miyazaki é que ele favorece a sensação de velocidade. Apenas raramente em suas obras você vê a partir da perspectiva de um veículo em alta velocidade, e mesmo assim o veículo provavelmente será uma bicicleta, um planador ou uma vassoura voadora. Normalmente, você desliza ao lado do planador, como se estivesse deslizando sozinho, em vez de se concentrar em um destino ou alvo. Com composições também, ele frequentemente se vira para a escadaria escorregadia, para o convés inclinado, para o plano de inclinação, e então lhe dá uma impressão lateral de queda, escorregando adentro. No nível de narrativa, também, Miyazaki evita chegar a um destino/conclusão ou chegar em um círculo completo. Ele evita tanto o movimento progressivo linear quanto o movimento regressivo cíclico. Até mesmo suas histórias tendem a se mover lateralmente, na diagonal. LaMarre chamara essa escolhe dele de “um empenho em produzir animetismo”. A característica desse termo criado pelo autor é a separação da imagem em múltiplos planos. O resultado é uma imagem multiplana; feita de vários planos. 

 
Curiosamente, Miyazaki também diferencia seus trabalhos e os de seu estúdio (Estúdio Ghibli) de anime, insistindo que seus trabalhos são filmes de mangás; sendo uma vertente diferente do que são animes de temporada. Filmes de mangás não são adaptações de mangás, mas sim filmes de longa metragem, em grande parte voltado para as crianças ou para o público em geral, como os produzidos pela Toei Animation nas décadas de 1950 e 1960. Miyazaki coloca a si mesmo e a Ghibli na linhagem dos “filmes animados Toei”, nos quais ele trabalhou desde os anos 60. 

Em contraste com os filmes de mangás, os animes para Miyazaki sinalizam como algo apenas para a televisão – isso se tratando primordialmente em qualidade. O próprio Miyazaki trabalhou em séries de animação para a televisão, mas mesmo nesses trabalho ele agora afirma que se esforçou para produzir algo como filmes de mangá; tentando sustentar a tradição da Toei Animation – que um dia já foi sinônimo de qualidade e de abrigo a grandes nomes da animação. Miyazaki e seu amigo e sócio de longa data, o mestre co-fundador e diretor da Ghibli, Takahata Isao, já expressaram suas aversões aos filmes de ação de Hollywood. Em suma, Miyazaki apresenta um contraste entre filmes de mangas e os filmes de ação/anime para TV.  Alguns vêem essa posição do Miyazaki como puro egocentrismo, diminuindo as demais obras e exaltando as suas; não adentrarei nesse campo.


Deixe-me desenhar um exemplo de porque Hayao Miyazaki, conforme já vimos, é um dos animadores japoneses mais comprometidos em manter a arte em sua forma mais pura e em evitar o domínio dela pela tecnologia. As animações de Miyazaki são maravilhas da composição aberta. Tomemos por exemplo uma cena de O Castelo no Céu, em que a menina Sheeta e o menino Pazu começam a explorar seus arredores após o pouso forçado na ilha do céu. À medida que as crianças caminham até a borda de um penhasco, a camada do primeiro plano e a camada do fundo se separam para revelar as profundidades abaixo. Isso é difícil de ser renderizado com uma série de capturas de tela (como normalmente é feito na animação tradicional), mas se você observar atentamente as imagens notará que em vez de se aprofundar em profundidade, essa sequência envolve uma fluidez dos planos da imagem. Enquanto a visão é supremamente panorâmica, a sequência não é construída para transmitir uma sensação de movimento ao mundo da imagem. Há uma sensação de um mundo se abrindo, um mundo com várias camadas que convidam à exploração e, ao mesmo tempo, ao pavor. Tal técnica de deslizar os planos faz com que a posição de observação das crianças (e a nossa também) pareça menos instrumental. 


Essa maneira de olhar não nos encoraja a tomar este lugar instrumentalmente, isto é, meter-se em cada esquina, saquear seus tesouros, dominá-los e explorá-los (como os bandidos são propensos a fazer). Pelo contrário, este é um mundo que se abre para nós, mesmo que permaneça à parte de nós. Quando se abre, você vê profundidade, mas essas profundidades não são calculáveis e esta maneira de ver, portanto, convida a admiração e a reverência. Nós somos testemunhas, não atacantes. Talvez você esteja recordando de algum show mais recente que usou algumas das “composições abertas Miyazaki”; pois é, Made in Abyss não recebe o honorífico de um “Ghibli moderno” à toa

O mesmo que é construído na composição dessa cena é feito um pouco antes, quando Sheeta e Pazu estão caídos: essa cena consiste em camadas de nuvens que são lentamente puxadas e camadas de arquiteturas. Novamente, se você olhar de perto você verá que as arquiteturas permanecem no lugar, enquanto camadas de nuvens são puxadas através delas, shot por shot. Tal percepção panorâmica não contribui para o movimento em profundidade, e ainda assim você definitivamente tem a sensação de movimento, uma sensação levemente vertiginosa que aumenta a sensação da maravilha deste lugar. 

De acordo com  Miyazaki, a filosofia do estúdio Ghibli é “[…] produzir filmes de animação de alta qualidade que tocam o espírito humano na medida em que ilustram a alegria e o sofrimento da vida tal como ela é” (WIEDEMANN, 2004, p. 291). E ainda, quando questionado sobre o futuro da animação à mão, o diretor responde:

Atualmente não me preocupo tanto assim. Não desistirei da mesma por completo. Volta e meia encontramos pessoas estranhas e ricas que gostam de investir em coisas curiosas. Sempre haverá pessoas alegrando-se em desenhar cartoons nos recantos de suas garagens. E me interesso mais por essas pessoas do que pelo big business. (Miyazaki , 2008)

Finalmente, e mais importante, Miyazaki está ciente de que a animação envolve tecnologia. E aqui, neste artigo, tentei apresentar esse vislumbre de como Miyazaki responde ao problema da tecnologia sobre a arte (tanto narrativamente quanto visualmente), além de uma amostra da sua estupenda visão artística; não é por menos que ele é considerado um professor, não apenas ao publico mais casual – um mestre também para os críticos e, ainda, aos maiores artistas em voga.

Assim como é dito em Anime from Akira to Howl’s Moving Castle:: Miyazaki é talvez mais conhecido por dois elementos particulares em suas obras: seus mundos de fantasia ricamente realizados e suas memoráveis personagens femininas. Embora variem, às vezes substancialmente, de filme para filme, tanto seus mundos de fantasia quanto seus personagens femininos são sempre criações reconhecíveis de Miyazaki. Porem, um pouco mais abaixo desses elementos temos algo, acredito que, levemente ofuscado – suas capas animadas intensamente coloridas, repleto de suas imagens registradas de máquinas voadoras, nuvens altas e criaturas sobrenaturais que assumem uma vida própria de tirar o fôlego. Existe sim uma quantidade absurda de coisas a serem analisadas nas obras de Miyazaki, algumas talvez negativas, mas resolvi ir em direção a um campo mais ignorada – sua orgânica animação.  

Como o respeitado critico Roger Ebert já bem disse: “Animated films are not copies of “real movies,” are not shadows of reality, but create a new existence in their own right. True, a lot of animation is insipid, and insulting even to the children it is made for. But great animation can make the mind sing.” E me parece que é neste conhecimento onde,  Hayao Miyazaki resolveu fazer sua moradia. 

 
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