Blue Lock e a obstinação conquistada através do individualismo

O mangá Blue Lock já estava fazendo um certo barulho e conquistando seu espaço há alguns anos, mas foi através da sua adaptação em anime que a obra conquistou de vez o seu espaço no mainstream. Seja por uma fantástica campanha de marketing ou por uma incrível coincidência, sua exibição acabou coincidindo no mesmo período da Copa do Mundo de 2022 — em meio a uma inusitada e surpreendente campanha da seleção japonesa na primeira fase do evento. Isso fez Blue Lock alcançar uma ascensão meteórica em popularidade tanto no Japão quanto no ocidente, ao ponto de até mesmo jogadores da própria seleção sub-20 japonesa citarem a série como inspiração. Sem dúvidas, o anime de esporte mais badalado e comentado de 2022. E posso dizer que por uma boa razão, pois após assisti-lo, que devo dizer que Blue Lock… É muito maneiro. Gostei bastante.

Mesmo tendo gostado, tenho que dizer que definitivamente é uma obra que não agradará todo mundo. Se você for o tipo de pessoa que define a qualidade de uma obra de esporte pelo quão realista, fidedigna e pé no chão ela consegue ser, como é o caso de Haikyuu!, por exemplo, você provavelmente irá detestar Blue Lock. Afinal, a série não apenas abdica totalmente do realismo para abraçar uma abordagem mais acelerada e exagerada, mas como também traz uma gama de influências vindas de obras surgidas principalmente durante os anos 2000 e 2010, que pode fazê-la se encaixar no conceito de edgy. Mas todas essas descrições estão longe de serem um defeito, pois percebi que a obra faz um bom trabalho em absorver essas características e conseguir a proeza de aplicá-las de uma forma que soe moderna, criativa e refrescante. E por cada uma dessas influências constantemente se moldarem na série de uma maneira homogênea e orgânica, mesmo que na teoria, elas devessem ser bem destoantes.

Começando com a estrutura básica da série. A premissa gira em torno do protagonista Isagi, que após perder uma partida que levaria o seu time para o campeonato nacional, é recrutado para participar do projeto Blue Lock, que visa criar o novo gênio do futebol japonês recrutando 300 atacantes e os fazendo batalhar entre si até restar apenas um. E este alojamento acaba se revelando bem mais do que um mero centro de treinamento para os atletas aumentaram as aptidões físicas, mas em partes, quase um experimento social concebido para extrair os sentimentos mais primitivos, básicos e instintivos destes participantes. O resultado é que mesmo sendo claramente uma obra de esporte, o conceito criado pela trama se torna bem similar a de uma obra de sobrevivência ou de battle royale. Especialmente pela consequência de que quem for desclassificado do Blue Lock nunca mais poderá ser convocado para jogar na seleção japonesa; isso impõe uma imensa quantidade de pressão para todos aqueles personagens e cria uma ininterrupta sensação de urgência para o roteiro, fazendo com que todas as partidas sejam decisivas, cruciais e importantes, já que qualquer derrota pode ser fatal para a carreira do jogador.

E falando nas partidas, este é sem dúvidas um dos maiores atrativos da série, ao demonstrar a sua habilidade de absorver ideias e influências de outras obras para criar uma identidade bem própria e específica. Blue Lock traz as típicas habilidades, jogadas e técnicas especiais estilizadas presentes em Kuroko no Basket, mas somado com embates psicológicos e reviravoltas mirabolantes características de Death Note e até mesmo uma estética bastante sombria e ameaçadora similar à Tokyo Ghoul, o que não se restringe apenas a certas escolhas visuais (que comentarei mais a frente). Também há a insinuação de que para os jogadores ativarem estas habilidades especiais, precisam renunciar a qualquer tipo de controle ou humanidade em prol de vencer os seus oponentes. Isso faz deles pessoas totalmente diferentes enquanto jogam, evocando essa dualidade de todos eles terem uma espécie de monstro ou algo adormecido dentro de cada um, o que é despertado no campo e novamente remete a famosa obra do Sui Ishida.

E como consequência, ao invés dos picos catárticos das partidas trazerem uma aura eufórica e extasiante como as de Haikyuu ou Uma Musume!, ou mesmo o tom épico e grandioso como as de Kuroko no Basket, os ápices de Blue Lock são criados por uma crescente atmosfera de tensão. Agregado ao fato que estes jogos se tornam o meio para todos os personagens colocarem para fora os seus sentimentos mais ferozes, alimentados da imensa pressão e medo ocasionado pelo Blue Lock. Isso culmina em uma atmosfera muito mais agressiva, crua, animalesca, desesperadora e desvairada, já que quando isto acontece, os personagens quase sempre parecem estar à beira de um transtorno ou colapso mental, que acaba lhe sugando e fazendo você ficar bastante aflito e ansioso para saber o desfecho. Por mais que a mecânica e regras das partidas não sigam a risca o regulamento do futebol tradicional que normalmente conhecemos, adaptando-as para funcionar na lógica interna criada pela série, não posso negar que elas são bem criativas e inteligentes, além do anime seguir estas normas estabelecidas até fim, de forma que soe bastante crível e verossímil, mesmo sendo algo inventado.

Agora falando do elenco, ele curiosamente acabou subvertendo bastante as minhas expectativas, com a imagem criada por certas pessoas sobre a série ter parecido quase uma propaganda enganosa. Se tem algo que tanto certos fãs quanto os haters pareciam concordar era sobre a ideia de Blue Lock focar unicamente no egoísmo, que o conceito de trabalho em equipe e amizade é vendido como algo absolutamente falso ou inexistente — como se todos os personagens da série fossem narcisistas sádicos dispostos a esmagar impiedosamente qualquer pessoa em seu caminho. Uma definição que inclusive me deixou um tanto receoso de assistir à série a princípio, mas que no fim, se prova como algo bem mais além do que apenas isso.

Claro que considerando o quão grande e vasto é o elenco, contando com dezenas e dezenas de personagens, óbvio que haverá aqueles que terão uma personalidade mais mesquinha, ardilosa, cruel e antiética, dispostos a recorrer a métodos mais rasteiros e baixos para vencer como o Kuon, o Igarashi e os irmãos Wanima, por exemplo. Por outro lado, também há personagens que conseguem bater de frente com esta postura, mesmo em um ambiente tão hostil, como o Kunigami, sendo o personagem mais íntegro da série até aqui; do Bachira, que claramente demonstra um grande senso de companheirismo para com o Isagi durante o primeiro arco; tal qual Nagi no segundo arco, com ambos se tornando belos personagens de suporte e sendo sem dúvidas, os personagens mais carismáticos da série. E o próprio protagonista Isagi, que independente da sua postura em campo, revela-se como alguém bem inseguro em relação as suas habilidades e potencial fora dele, tornando-se muito mais relacionável do que se esperaria a princípio.

A obra felizmente tem consciência suficiente para mostrar que ser um completo arrogante narcisista repleto de autoconfiança não é o bastante para conseguir sobreviver no Blue Lock, com a cooperação e o entrosamento um com o outro sendo algo essencial caso queiram vencer as partidas. Vide a exata primeira partida da série, em que os jogadores ficam tão obcecados em fazer gol que só se torna uma completa bagunça até o momento deles descobrirem a trabalhar como um time para poder vencer. E o arco do Barou, onde ele é forçado a rever os seus conceitos, apesar do seu imenso orgulho, ao perceber que não é o último biscoito do pacote e que se ele continuar enxergando os outros como meros apoios para crescer, será deixado completamente de lado e ficará para trás.

Somado a temática central sobre individualismo não se focar apenas no egoísmo e na ambição, mas também em temas como autodescobrimento e autoaceitação como a chave para o desenvolvimento daqueles personagens. O Bachira é o maior exemplo disso, seu arco revela que o “monstro” presente dentro dele não era o seu ego ou ambição, mas sim o retrato de um trauma causado por ele não conseguir se encaixar socialmente e o processo dele finalmente se livrar deste monstro ao reconhecer que pode ser feliz jogando futebol sem depender de outra pessoa. Assim como o Isagi, que mesmo sem nenhum talento genial, possui a habilidade de não apenas reconhecer as suas fraquezas, mas também ter a determinação de se adaptar e mudar para poder continuar evoluindo como atleta.

E há diversas passagens e linhas de diálogos que também reforçam todos esses temas, mostrando a importância do individualismo no sentido de que para uma mudança real acontecer, o primeiro passo sempre tem que partir de você. Meu favorito é em que Ego fala que o verdadeiro despertar é o momento que a pessoa começa a aprender mais sobre si mesma, que se conecta a vários outros diálogos mais a frente sobre descobrir suas habilidades e fraquezas e usar isto para se fortalecer e tudo mais. Mesmo que sejam simples e diretos, essas linhas soam bem acertadas e convincentes, especialmente pela obra não tentar vender tais ideais de uma forma pretensiosa. Ainda há a constante rivalidade criada entre o elenco, o que também evoca este sentimento de companheirismo, já que eles enxergam esta relação como um aprendizado para eles evoluírem, enxergando os seus rivais com respeito ou com admiração e uma meta a ser alcançada ou superada. Isso demonstra que essa perspectiva de Blue Lock ser uma obra totalmente isenta e despida de qualquer traço de coletividade, união ou amizade é uma interpretação um tanto equivocada.

Porém, nem tudo é perfeito e há certos momentos em que a obra tropeça, vide a partida de revanche do Isagi e do Rin, no qual o conceito do “mais e maior” e a tentativa de criar algo cada vez mais mirabolante e surpreendente se voltam contra a série. O “poder” do Rin é algo bem vago e não muito bem concebido como diversas habilidades mostradas antes, e principalmente a estratégia do Isagi de prever a previsão do Rin baseado na sua própria previsão por já prever tudo isto antes, o que acaba sendo algo muito absurdo para levar a sério mesmo com a já alta suspensão de descrença e que compromete a imersão da partida. Ainda tem o discurso do Ego sobre sorte após o término da partida e a analogia do pombo, que não é boa e se torna um dos piores diálogos de toda a série, além de outros momentos em que certas passagens se tornam deveras forçadas. E as motivações da maioria dos personagens são um tanto unidimensionais e poderiam ser melhor trabalhadas. Então, novamente, se você quer assistir Blue Lock esperando um profundo e complexo estudo de personagem, não será aqui que você irá achar. Mas, ao menos, posso dar mérito que essa suposta falta de substância do elenco é compensada devido ao grande carisma e química que quase todos aqueles personagens apresentam, o que faz esse ponto negativo não comprometer a diversão e a experiência, ao menos para mim.

A produção do anime acabou se tornando bem melhor do que eu esperava, mesmo sendo bem modesta, contornando a falta de recursos e a limitada animação com técnicas econômicas, mas bem aplicadas, que acaba criando um visual bem consistente para a trama. A presença dos espaços vazios evoca este lado psicológico do roteiro, como se os personagens estivessem isolados no seu próprio subconsciente. Os constantes usos de closes e supercloses reforça esta atmosfera bastante opressiva, sufocante e claustrofóbica das partidas, somado as eficazes montagens intercalando os quadros estáticos, quadros estilizados e as pontuais cenas de animação fluida mantendo o pique das partidas constante.

E principalmente, há diversas cenas e composições que parecem curiosamente extraídas diretamente de um anime de terror como o Tokyo Ghoul citado antes. Cenas como a do Bachira com o seu monstro; a analogia das correntes e estacas da perna do Chigiri; o processo de despertar do Barou ou o frame do Isagi desesperado com a mão estendida para a tela — isso para citar apenas alguns exemplos —, que quando misturado com a temática de esporte, acaba criando uma estética bem única e peculiar para o anime. Tanto que a maior ressalva para mim, por incrível que pareça, foi a trilha sonora. Mesmo tendo faixas boas que e bem intensas, tem várias outras que parecem meros instrumentais inspiradas em trap, com uma sequência de hi-hats acoplado com alguma melodia em cima, que não evocam nada e só soam bem planas e esquecíveis. E considerando que é Blue Lock, eu imaginaria que houvessem faixas mais agressivas, energéticas, explosivas ou tensas que deixassem uma maior impressão de forma mais consistente.

No fim, é engraçado de como a filosofia vendida pelo Ego na série de confrontar as regras e ignorar o senso comum soa como uma das melhores representações desta obra aplicada a indústria, ao ponto de que nas devidas proporções, acredito que ela é para o gênero de esporte algo equivalente ao que Chainsaw Man foi para os battle shounen, por mais absurda e impopular que esta opinião possa parecer.

Ambas as obras se mantiveram a margem dos padrões esperados pelo nicho, ignorando a atual fórmula de sucesso criada em seus respectivos gêneros. E ainda conseguiram alcançar uma enorme popularidade independente disto, provando ser possível criar algo diferente e autoral, atrativo para um grande público, desde que se tenha habilidade para tal. Mesmo que as escolhas artísticas de Blue Lock parecesse uma corda bamba, em que um mero deslize poderia colocar tudo a perder, seja por se inspirar em uma série de conceitos que normalmente pensaríamos estar datado ou mal visto ou por ter a audácia de usar um esporte coletivo para criar uma obra em que um dos grandes temas centrais gira em torno do individualismo, o autor provou ter um domínio ímpar. Ele trabalha tais elementos de forma autentica, criativa e bem agradável, compensando a sua falta de profundidade ou complexidade ao transbordar carisma, personalidade, intensidade e energia ao ponto de eu não conseguir me cansar ou ignorar. Desenvolve sua temática de uma forma bem crua, direta, frenética, intrusiva, sem rodeios, sem firulas e sem espaço para meio termos. E mesmo que eu saiba que para outras pessoas estas escolhas artísticas serão exatamente a razão delas detestarem e rejeitarem e obra, posso dizer com tranquilidade que Blue Lock é sem dúvidas um dos animes de esporte mais corajosos, fora da curva e provocativos que vi em um bom tempo. E só me resta torcer para a obra manter ou refinar a sua qualidade e o seu potencial apresentado aqui e continue fazendo jus a sua enorme fama e atenção conquistada. Muito bom.


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