Desbravando a noite com Yofukashi no Uta

Tornando-se uma das grandes revelações da temporada verão 2022, a adaptação do mangá Yofukashi no Uta, do mesmo autor de Dagashi Kashi, acabou chamando a minha atenção não só pela minha curiosidade em relação a gradual popularidade que o anime adquiriu durante sua exibição, mas também por ser dirigido por Tomoyoki Itamura — um dos principais nomes envolvidos na direção de Nisemonogatari. E ao assistir o anime, percebi que a escolha não podia ser mais apropriada; se você acha que os paralelos e semelhanças com Monogatari Series se restringem apenas ao seu diretor, nós só estamos começando.

A premissa se baseia na história do jovem protagonista Yamori, que ao vagar pela cidade durante uma madrugada como forma para lidar com a sua insônia, esbarra-se em uma vampira chamada Nazuna, que irá apresentá-lo a uma nova rotina diante deste estilo de vida noturno. E neste cenário, a série tenta criar algo equivalente a uma trama de comédia romântica, sendo mesclada a abordagem de Monogatari Series. Quando digo isto, não é de uma forma leviana, como se a obra estivesse apenas jogando uma referência isolada e aleatória em um episódio qualquer, mas sim por toda a escrita e narrativa parecer querer recriar com muita fidelidade o estilo idiossincrático do Nishio Isin de contar histórias.

Muito do atrativo de Yofukashi é calcado nas conversas e interações do Yamori e da Nazuna, tal qual o humor, que ao invés de ser baseado em piadas visuais, possui muitas das punchlines ligadas a vários trocadilhos e palavras de duplo sentido durante essas conversas, assumindo um tom mais sujo. Além das pinceladas de metalinguagem e as brincadeiras com arquétipos que também aparecerem na trama; como a Nazuna adorar piadas obscenas, mas ficar extremamente envergonhada quando fala sobre romance ou a cena do cinema com a Nazuna falando que odeia comédia romântica, mesmo a própria obra tendo elementos do gênero. A tensão sexual presente em certas cenas, mesmo nenhuma sendo tão picante ou controversa como as de Monogatari, ainda está lá. E claro, a estética visual como um todo bebendo bastante da influência do estilo de Akiyuki Shinbo, dando a impressão de que ela poderia ser uma obra feita na Shaft nos seus tempos áureos, o que inclusive comentarei mais para frente.

Sinceramente, eu não gosto de bater tanto nessa tecla de comparar obras dessa forma, mas essas influências vem a tona de uma forma tão frequente e explícita que não há como evitar, especialmente quando a obra falha em algumas dessas abordagens, lembrando que ela está bem longe de ser Monogatari. Por mais que Yofukashi no Uta pareça ter a ambição de querer se tornar uma espécie de sucessor espiritual da franquia, ela não consegue ser tão ousada, versátil, desafiadora e afiada quanto o material que tanto se inspira, por algumas razões. A começar pelo fato de que a gama de temáticas ou piadas não é ampla o suficiente para sustentar a narrativa verborrágica que o anime vende. Isso torna a trama um pouco maçante e arrastada durante o seu meio, com alguns episódios sendo similares e você sentir uma certa impressão de Deja vu, principalmente pelo desenvolvimento romântico entre o Yamori e a Nazuna ser tão lento quanto qualquer outra comédia romântica tradicional. Há ainda o fato da caracterização de determinados personagens não ser tão bem trabalhada como poderia. O próprio Yamori é um exemplo disso: mesmo ele apresentando aspectos em sua composição que gosto bastante, existem momentos em que a postura e atitudes dele diante as situações se torna tão plana e não descrita que ele fica bem apagado durante as cenas. Quase uma versão mais diluída do Araragi.

Além disso, algumas tentativas de subversão não funcionam tão bem com o tiro saindo pela culatra, como o comentário sobre identidade de gênero no episódio final. A revelação de que a Hatsuka seria uma garota trans e a explicação para ela ter se assumido como tal é resumida a uma questão de conveniência devido às pessoas se sentirem atraídas pela sua aparência feminina, o que é meio estranho e abre margem para interpretações errôneas e nem um pouco agradáveis. Considerando o quanto de preconceito, ódio e restrição de direitos esse grupo sofre, essa justificativa apenas não parece fazer muito sentido. E mesmo eu acreditando que o autor tenha tido boas intenções ao tentar trazer esse tema a tona, o resultado não se prova dos melhores.

O episódio 7 é de longe o pior de toda a série. Ele introduz o clã das vampiras e em seguida começando uma disputa entre elas para ver quem conquista o Yamori primeiro e… É apenas demais para mim. Não apenas pela mecânica de harém ser super datada, mas as “táticas de sedução” utilizadas parecerem extraídas diretamente de um anime ecchi genérico e esquecível da década passada. É tosco, grosseiro e sem graça, fazendo a experiência ser bem árdua. Ainda que eu entenda que existe um grande senso de ironia nessa cena, apresentando uma violenta e gráfica com a luta da Nazuna e da Seri, para logo em seguida as expectativas serem quebradas com uma piada ridícula, a execução dessa ideia fica muito a desejar, tornando-se, em partes, até constrangedor.

Mas dito isso, isto não significa que o anime não possua seus pontos altos. Há diversos momentos em que esse modelo de narrativa é absorvido pela obra de uma forma bem eficaz, rendendo bons resultados, especialmente quando a trama é esperta o suficiente para evitar cair em certas convenções do gênero de comédia romântica. Como a Akira, que é uma amiga de infância que age… Exatamente como tal. Sem o clichê batido da rivalidade e do triângulo amoroso, visto que a única intenção dela é realmente apoiar e oferecer suporte para o Yamori sem segundas intenções por trás. Isso se torna algo bem refrescante de se ver, além da sequência onde a personagem interage com o Yamori e a Nazuna em seu apartamento, no episódio 4, ser facilmente um dos momentos mais divertidos e estranhamente adoráveis da série.

Ou ainda introdução da Shirakawa no episódio 6, que tece um comentário sobre o sistema de trabalho abusivo e o quanto isto afeta esta personagem, com ela parecendo estar à beira de um colapso devido a isso. Por mais que a crítica não seja tão profunda como em Sonny Boy, por exemplo, seu desfecho é bem notável. Yamori promete que irá transformá-la em uma vampira para libertá-la dessa situação, e mesmo sendo uma atitude ingênua, inocente e até infantil por parte dele, não deixa de ser bem genuína e cria esse ótimo contraste com uma criança como o Yamori que ainda possui esse otimismo e pureza com pessoas adultas como a Shirakawa. Mesmo que a personagem não possua mais esse otimismo, as palavras de Yamori é o que acabam dando forças para ela continuar suportando a sua rotina, sendo uma cena bem tocante.

O ponto forte do anime, no entanto, com certeza é o seu terço final. A obra usa os novos personagens para expandir as dinâmicas e entrega as melhores ideias. Como episódio 9 da Seri e o seu dilema de ser uma garota popular que não sabe lidar com a própria popularidade e se sentindo vazia com ela e toda a situação com o seu admirador, é uma exploração é bem interessante; e principalmente a introdução da detetive Anko nos episódios finais, que faz o roteiro dar um giro de 360 graus entrando de vez no tom de mistério de uma forma bem eficaz. A personagem vira uma completa incógnita na trama, suas intenções são bastante nebulosas e mesmo se vendendo como alguém bem amistosa e cordial, sempre parece haver uma frieza muito ameaçadora por trás dessa fachada amigável devido a certas atitudes. Isso faz com que ela se torne a personagem mais intrigante da série e uma das minhas favoritas, criando sempre uma atmosfera alarmante quando ela está em cena.

O misticismo em torno da noite também é uma das minhas características favoritas da série, especialmente por isto não ser usado apenas como um mero cenário de fundo, mas sim um pilar central para a trama funcionar. A obra constantemente vende a ideia que este seria o horário onde as pessoas poderiam estravar e se libertar das suas amarras ou responsabilidades, um momento de se permitirem mostrar quem elas realmente são sem nenhuma restrição. Isso se torna ainda mais significativo quando todos os episódios se passam unicamente durante a noite. Nunca vemos a rotina destes personagens durante o dia, já que não importa qual personagem apareça na série, é como se eles insinuassem que estamos vendo a versão real deles ou alguma vertente que não poderiam demonstrar durante a sua rotina diurna.

Além ainda do fato do anime retratar esse ambiente como algo atraente e sedutor, mas também perigoso e misterioso. O roteiro leva jeito em desenvolver e expandir essa temática, mas a utilizando como uma forma bastante esperta de criar esta conexão em comum com todos os episódios de uma forma bem coesa que é bem maneiro.

E a produção também se prova como mais um destaque positivo e sem dúvida o ponto mais consistente da obra. Mesmo não esbanjando animação fluída, a direção de arte consegue ser tão boa que faz com que você não sinta falta desse poderio da animação. São ambientações e cenários luminosos, vividos, coloridos e deslumbrantes que se somam ao inteligente jogo de cores espalhados por todo o anime; o constante uso de roxo nas aparições da Nazuna na cidade; as cores completamente mortas e desbotadas nas aparições da Anko; a cena que o Yamori e Nazuna visitam a piscina pública, tomada por um forte rosa choque criando esse clima de luxúria ou a transição para o azul quando o Yamori vê ela sendo cantada por outros caras, remetendo a possível tristeza do personagem que só enriquece ainda mais a experiência.

Além disso, o diretor também sabe se utilizar desses recursos para criar cenas bem notáveis e fora da curva. A cena da Seri decido matar o seu admirador no episódio 9 é um bom exemplo, é aplicado um efeito negativo deixando a câmera cambaleante criando uma atmosfera super psicodélica, com a sequência se tornando algo bem alucinante e quase lisérgico. Ou ainda o confronto do Yamori com a Anko no episódio 12: o tom acinzentado cria uma aura de tensão antes mesmo a Anko sequer falar uma frase; a adição dos diversos planos fechados e o constante uso de closes durante toda a conversa torna a cena bem sufocante, claustrofóbica e intimidadora — isso faz com que o espectador fique na ponta da cadeira do começo ao fim. Sem contar as sirenes de polícia que aparecem durante a fuga do Yamori e a imensa presença de vermelho na cena, reforçando ainda mais essa sensação de medo e perigo — sendo facilmente o episódio com a minha direção favorita — , mas isso para citar apenas algumas cenas-chave. Essa produção visual é um exemplo de como o Tomoyoki Itamura é mais um diretor que faz questão de manter o legado deixado pela Shaft e pela escola de direção do Shinbo vivo, mesmo estando em outro estúdio.

E outra surpresa positiva na produção foi a sua trilha sonora, com uma boa parte das faixas instrumentais possuindo uma grande influência de House Music. Ela contém esses ritmos sequenciados de percussões que dão uma aura um tanto dançante para as trilhas, mas sendo encobertas por melodias de sintetizadores ou teclados. Eles acabam criando as mais diversas atmosferas, podendo ser eufóricas, relaxantes, sombrias, misteriosas, melancólicas ou aconchegantes dependendo totalmente da cena que elas estão sendo aplicadas, além das arejadas e serenas faixas ambientes que acabam dividindo espaço que são bem maneiras — além da única Insert Song da trilha que também é ótima com esse estilo bem retrô e nostálgico.

Mas o ponto principal dessa trilha é de como todas elas possuem uma aura bem noturna, ao ponto de parecer que cada faixa, sem exceção, foi pensada e concebida para se ouvir durante a noite. Elas são muito mais quietas, contidas e sutis, mas ainda sendo bem agradáveis e saborosas de se ouvir, ao ponto das faixas eletrônicas de House lembrarem algo que poderia ser tocado em certas boates, danceterias ou estabelecimentos noturnos. Isso as torna mais um grande exemplo de como criar uma boa trilha, mesmo com uma estética mais singela por ser provavelmente a trilha mais minimalista que eu ouvi no ano até agora, conseguindo ser bem evocativa, versátil, envolvente e imersiva, sem soar genérica ou tediosa.

No fim, Yofukashi foi uma obra bem legal. Claro, por mais que ela esteja longe de ser a obra mais inovadora ou desconstruída devido as suas limitações e deslizes, no final do dia o anime ainda consegue ser bem divertido, criativo e peculiar. Principalmente em comparação as típicas comédias românticas lançadas atualmente, ao tentar fugir da mesmice do gênero de uma forma bem funcional. Seu casal principal apresenta uma boa química, certas temáticas são bem intrigantes e a produção é digna de destaque. Enfim, é uma boa recomendação para quem quer apreciar uma comédia romântica mais artística, me deixando com vontade de querer ver mais da série e torcendo para que uma continuação seja anunciada quanto antes.


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