A desvirtuada guerra de Heion Sedai no Idaten Tachi

Assumo que, quando o anime de Heion Sedai no Idaten tachi foi anunciado, fiquei com certa preocupação considerando era uma adaptação do mangá do autor responsável pelo anime mais controverso, polêmico e polarizante de 2020, Ishuzoku Reviewers, que mesmo tendo conquistado seus fãs, acabou se tornando uma experiência tão excruciante que eu não fui capaz de aguentar mais do que 3 episódios. O motivo disso nem foi necessariamente a proposta, já que existem outros animes focados em piadas sujas como Shimoneta e Prision School que acho divertidos e criativos, mas a própria execução era bastante porca, não só pelas piadas das reviews serem terrivelmente constrangedoras, me fazendo contorcer de vergonha alheia, mas também momentos como o episódio 3, em que o autor joga cenas de sexo completamente vulgares e aleatórias como um tentativa pífia de criar uma punchline, sem nenhuma construção, reforçando esse método preguiçoso e equivocado de apenas colocar cenas sexuais de forma gratuita, sem o esforço de tentar construir ou desenvolver isso em algo criativo, dinâmico ou divertido. Devido a isso, era óbvio que a minha expectativa para Heion Sedai estava abaixo de zero, já que estava temendo que fosse mais uma obra apelativa, vazia e tosca vendida como uma sátira ou paródia. Mesmo assim, decidi dar uma chance… e acabei me surpreendendo, pois, a obra se provou um grande avanço comparado com Ishozuku (não que fosse algo difícil), mesmo que o mangá tenha sido publicado antes.

O primeiro ponto a se destacar é que o anime realmente parece uma tentativa mais focada e genuína de ser uma sátira, neste caso, de battle shounen. Não a toa se inspira bastante justamente em uma obra bem específica e provavelmente uma das mais famosas nesse quesito, One Punch Man, com certas piadas possuindo uma estrutura bem similar, especialmente na primeira parte do anime, como o “treinamento” da Rin sendo a versão alternativa das surras do Genos ou as explicações sobre o mundo dos Idaten e os planos dos demônios sendo reproduzidas com velocidade acelerada, remetendo as piadas do Genos sendo verborrágico. E claro, a imensa facilidade que os Idaten tinham de derrotar os demônios, que lembravam as lutas do Saitama, mas com certas decisões narrativas que impedem ele de ser uma cópia carbono da obra do One, já que enquanto One Punch Man tem um tom mais cômico, absurdo e galhofa, Heion Sedai segue por um caminho mais sério, sombrio e bastante cínico, especialmente quando ao perceber que os Idaten são tão ou mais cruéis e perversos que os próprios demônios; todo e qualquer tipo de heroísmo ou nobreza que você esperaria nesse tipo de história cai por terra, mostrando não existir um lado bom nessa guerra, o que foi um ponto bem intrigante.

Há também um esforço do enredo de tentar equilibrar o imenso poder dos Idaten com os planos de sobrevivência dos demônios, admito que também são bacanas. Por mais unilaterais que as lutas sejam, as tarefas de erradicar todos eles se tornam cada vez mais difíceis devido à revelação da habilidade da Miku, que faz o desenrolar da obra se tornar mais cativante e até inesperado em certos momentos, como no episódio final, quando a trama se aproveita dessa gigantesca superioridade dos Idaten imposta em toda a história para subverter as suas expectativas com um acontecimento bem surpreendente, pegando-lhe totalmente desprevenido, o que funciona bem, somado a sua produção que é fantástica, provavelmente uma das mais experimentais e excêntricas do ano; desde cores bastante quentes e vivas até ao estilo de design mais cartunesco, passando pelas lutas bastante fluidas, épicas e intensas, contendo violência mais gráfica e quadros estilizados que casa muito bem com a proposta. O trabalho de fotografia também é bem louco, há várias e várias camadas de filtros sendo postas em quase toda transição de cena, o que faz com que toda a palheta de cores permaneça em uma constante mudança, dando um aspecto absurdamente psicodélico e quase alucinógeno, o que é fantástico e cria uma identidade visual muito boa. É quase como se eu estivesse vendo uma fusão entre a direção de arte excêntrica do estúdio Shaft com o estilo mais extrapolado da Trigger.

Se por um lado Heion Sedai é cheio de boas ideias, infelizmente o mesmo não pode ser dito sobre a execução das mesmas, já que a maneira como eles decidem trabalhar e desenvolver esses conceitos fica bastante a desejar, com o mais grave deles sendo os personagens. Todo o núcleo dos Idaten acaba sendo bastante fraco não apenas por suas composições serem bastante unidimensionais e básicas, como o Hayato sendo nada mais que o arquétipo genérico de absolutamente qualquer protagonista de battle shounen ou a Paula sendo essa garota moe passiva sem nada marcante, mas também por alguns personagens serem até mesmo desperdiçados, como a Rin, que tinha potencial para ser algo maior, mas é restrita a ser um alívio cômico durante quase todo o anime — a suposta tentativa de humanizá-la com o plot twist sobre o rei demônio parece mais um recurso para tirá-la de cena e equilibrar o nível de força do que qualquer outra coisa. 

Este ponto é agravado quando você percebe que todos os Idaten mal interagem entre si de uma forma natural ou orgânica, como se cada personagem estivesse isolado e não possuísse nenhuma ligação um com o outro e fossem completos estranhos, sem nenhuma dinâmica ou relação que pudesse fazer com que nos importássemos com eles. Também há uma ironia dos personagens do núcleo demoníaco serem melhor construídos do que os próprios Idaten, pois por mais cruel que eles sejam, possuem essa motivação de impedir a extinção de sua espécie por isso todo o plano de reprodução foi criado. Mas qual é a razão dos Idaten serem tão desprezíveis? Senso de superioridade? A desilusão com as ações humanas? Eu não faço a menor ideia. Algo que faz menos sentido ainda é o fato de serem criaturas que deveriam proteger a humanidade, apesar de Ysley falar que matou milhares de humanos apenas para “se descobrir”; ou a Rin sugerindo um genocídio com milhares de civis apenas por impulso e por não se importar ninguém de lá, com todos eles tomando essas posturas detestáveis “porque podem” e é isso aí. Sem uma justificativa plausível para essas atitudes, torna-se muito difícil você se conectar e criar um elo com tais personagens. E se você não liga para eles, boa parte da experiência fica bastante comprometida, já que, devido a isso, muitas cenas acabam perdendo o seu impacto.

Outros problemas são os supostos comentários sociais que o anime tenta criar. Mesmo eu acreditando que a tentativa de inserir esses assuntos tenha sido bem-intencionada pelo autor, acaba não funcionando por serem bastante rasas e superficiais. Por mais que muitas delas eu obviamente concorde, já que fascismo, imperialismo, militarismo e fundamentalismo religioso são coisas ruins, o autor nunca vai mais a fundo para criar alguma passagem mais elaborada sobre essas questões, sem nenhuma constatação mais reflexiva ou observação que se conecte ou agregue valor a trama de uma forma eficaz — logo após as cenas em que essas questões são mencionadas, esses assuntos e temáticas são esquecidas e deixadas completamente de lado; o foco é sempre na guerra, então tudo isso fica apenas jogado e desperdiçado. O próprio desfecho da Gill (ou a freira) é um exemplo máximo disso, onde a sua postura pacifista poderia criar algum conflito interno devido à sua versão Idaten para fazê-la uma personagem mais interessante, mas no fim é desperdiçada sendo conivente ao massacre de vários humanos porque ela não consegue definir o que é bem e mal; além do argumento medíocre do Prontea que destrói todo o atrativo da personagem, que se torna um pouco parecida com o Canute de Vinland Saga, porém mal escrita. Sem falar das cenas de estupro envolvendo a personagem que… não são boas.

Apesar destes pontos, devo dizer que Heion Sedai foi um anime surpreendentemente decente. Não apenas por eu sentir que o autor estava de fato se esforçando para escrever uma história, mas por também ter ideias bem promissoras e um desenrolar um tanto intrigante. Entretanto, infelizmente isso acaba sendo restringido pela ausência de uma trabalho maior tanto em cima de seus personagens, quanto nas críticas sociais que tenta levantar. Uma obra longe de ser horrível, mas que infelizmente não conseguiu ir além para se tornar uma experiência ainda mais satisfatória, mesmo tendo conseguido entregar um grande cliffhanger em seu final. Só é uma pena que além da sua continuação ser algo improvável, visto o pouco conteúdo presente no mangá, o autor tenha regredido tanto com Ishuzoku ao invés de aprimorar os conceitos apresentados aqui.


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