Fumetsu No Anata E e o peso da imortalidade

Hora de falarmos sobre o anime Fumetsu no Anata e, a adaptação do mais recente mangá da Yoshitoki Ooima, a autora de um dos dramas mais celebrados e relevantes da década passada na indústria de animes e mangás, Koe no Katachi, obra que retrata os empecilhos e preconceitos que as pessoas com deficiências sofrem de uma forma bem pertinente e fidedigna, sendo também uma bela e tocante história de redenção enquanto aproveita para abordar temas como trauma, bullying e depressão. Considerando o quanto amei Koe no Katachi, é óbvio que eu estaria bastante curioso para ver como seria um novo projeto da autora, ainda mais por Fumetsu ter uma premissa que flerta bem mais com fantasia e aventura, mostrando a disposição da Ooima em se arriscar por outros gêneros e estéticas, algo bem admirável mesmo que certos aspectos ainda continuassem os mesmos.

O episódio de estreia faz questão de deixar bem claro que mesmo em outro cenário, não é como se a autora fosse facilitar, o episódio entrega um evento bastante trágico e pesado mostrando garoto ingênuo e sonhador tendo os seus sonhos completamente destruídos e esmagados da pior maneira possível. Mesmo que a morte dele tenha sido o estímulo que fez o Fushi seguir em frente, ainda mantém uma aura bastante amarga e sombria. Isso se repete de uma forma ainda mais clara no arco da March, focando-se não apenas em mostrá-la sendo impedida de viver devido a crenças e tradições bastante distorcidas, mas como também demonstrando de uma forma bem crua o quanto a ganância, o egoísmo e a maldade humana podem acabar destruindo a vida de pessoas totalmente inocentes. O arco também mostra o sacrifício como algo bastante tortuoso e deprimente ao invés da atitude nobre e admirável que estamos geralmente dispostos a ver, o que culmina em uma conclusão de partir o coração e se tornando uma execução até um pouco difícil de se ver, em partes.

 

E por mais que este ponto traga um aspecto bastante pessimista para obra, como se todos esses personagens estivessem sendo impedidos de realizar seus sonhos por este mundo impiedoso em que vivem, isto é contrastado com o desenvolvimento e a evolução do Fushi. Eles são os responsáveis por fazer o Fushi deixar de ser um literal objeto cada vez mais que ele ganha mais estímulos, e todos esses sonhos conseguem ser levados em frente através dele com essa mensagem de que ninguém morre por completo, desde que tenha alguém que consiga se lembrar de você e repassar a sua filosofia adiante, uma mensagem muito bonita, além da reflexão de que a dor e sofrimento são coisas cruciais para o nosso crescimento e formação como indivíduos; agregando-se aos conflitos internos do Fushi sobre a sua própria imortalidade, tornam-se elementos que deixam a obra ainda mais rica e interessante.

Com o arco do Gugu, é bem fascinante ver a autora resgatar certas temáticas que ela já explorara em Koe no Katachi, mas aqui por uma nova ótica e perspectiva, trazendo novamente as discussões sobre intolerância, ódio e preconceito que as pessoas fora do padrão estabelecido pela sociedade sofrem, sendo ainda agregado a uma busca por auto aceitação ao invés de ser a superação de um trauma como foi em Koe. Não apenas toda a caracterização e o desenvolvimento do Gugu e da Fushi são fantásticos aqui, mas outros personagens como a Rean viram suportes que ajudam a dar ainda mais camadas, fazendo com que se tornem mais complexos e humanos. A conclusão do arco também é bastante impactante, triste e devastadora, reforçando toda essa mensagem sobre morte, medo e dor citado anteriormente, o que é fabuloso. E com tudo isso, Fumetsu estava realmente se provando como um grande drama, encaminhando-se para se tornar um dos melhores animes do ano, mas eis que vem o arco da ilha, e é nesse momento que a obra tem uma queda bem considerável de qualidade em praticamente todos os setores.

É estranho perceber que mesmo este arco possuindo algumas diferenças na abordagem, com o Fushi tendo que lutar na arena para salvar Pioran, a estrutura acaba sendo um tanto parecida com os arcos anteriores, mas sem os elementos que faziam eles serem bons. Por mais que eu entenda a intenção da autora em querer explorar esse dilema moral a respeito do assassinato e da violência, a maneira como ela desenvolve isso é bastante incoerente em certos momentos; como no episódio 15, onde o anime tenta te vender essa mensagem de união e companheirismo dentre os moradores daquela ilha durante a luta contra os Nokkers, sendo que na exata cena anterior eles brigaram com o Fushi por não estar matando os seus inimigos na arena e pisando nos sentimentos dos oponentes, o que não faz o menor sentido e soa tosco; ou alguns diálogos do criador e da Tonari, praticamente mandando um “bandido bom é bandido morto”, porém sem nenhum contraste ou camada maior por trás para fazer a discussão ser mais relevante. Mesmo que a autora tenha usado esse recurso provavelmente para colocar o pacifismo do Fushi à prova, a escrita não é tão afiada e reflexiva quanto nos arcos anteriores, tornando-se algo bem raso e vazio.

E falando na Tonari, eis que chegamos no segundo e principal problema: a nova leva de personagens introduzidos naquele momento é um tanto medíocre, e não tem jeito… Por mais que a narrativa tenha se esforçado, não consigo dar a mínima para a Tonari, não só por ela ter colocado o Fushi em toda essa situação para começo de conversa, mas a personalidade oportunista, interesseira e um tanto inconveniente faz com que seja bem difícil de criar alguma empatia ou apego por ela. Mesmo o laço de amizade criado com o Fushi não é nem de perto tão orgânico e convincente em comparação aos arcos anteriores, tornando-se ainda pior por eu não sentir que ela esteja exercendo algum papel tão crucial no desenvolvimento do Fushi como indivíduo, como a March, a Pioran ou o Gugu fizeram. A personagem não chega nem sequer perto de ter o mínimo do carisma de qualquer um deles para fazer você torcer ou se preocupar com ela, ao ponto de nem mesmo o seu flashback trágico conseguir mudar a minha visão a respeito dela, já que até as cenas de interação com o seu grupo de amigos são bem monótonas e nem um pouco cativantes. Se você não se importa com ninguém, toda a tensão e a aflição que você deveria sentir ao vê-los em perigo some por completo, fazendo a trama se tornar bem tediosa.

E a Hayase é ainda pior, pois por mais simplista que ela fosse, eu a considerava uma personagem bem funcional no arco da March, por justamente ser a representação da maldade humana, como comentei antes. Mas, neste momento, a obra tenta me convencer que a razão dela estar fazendo todos esses atos horrendos é o amor pelo Fushi? É sério isso? Óbvio que eu não esperava uma motivação ultra complexa, mas como ela pôde ter sido tão ruim? É muito jogado e sem nenhuma explicação que faça sentido. Além disso, a caracterização dela não é das melhores, sendo bem caricata e ficando evidente em momentos como quando ela faz a Tonari de refém e principalmente quando assedia o Fushi, desencadeando em cenas bem toscas e até mesmo constrangedoras. Até os momentos que deveriam ser comoventes, como a morte dos integrantes do grupo da Tonari na luta final contra os Nokkers, não funcionam devido a tudo que citei acima.

Até mesmo a produção do anime piora nesta segunda metade, o episódio 17 é o pior de todos eles, pois os designs ficaram exageradamente inconsistentes; os cenários não são tão bem acabados, com cenas bastante estáticas e com a direção que não consegue entregar algo muito bom. Mas, felizmente, não é como se isso estragasse todo o conjunto, já que a primeira metade do anime é bem feita e bastante consistente, contando até com certas cenas de animação fluida no arco do Gugu que são bem legais, além da direção quase sempre conseguir criar uma construção bem sólida nas cenas mais comoventes dando bastante peso a elas, auxiliado pela trilha sonora, que também é digna de destaque, já que gosto bastante do quão bela, dramática e genuinamente triste ela consegue ser, seja nas faixas mais grandiosas, quanto em faixas ambientes mais calmas.

Em geral, considero Fumetsu um anime bem legal. Dá para perceber que as qualidades que fizeram de Koe no Katachi uma obra tão boa não foram resultados de um mero acidente, já que a autora prova que tem um tato bem genuíno para escrever dramas e entregar cenas bastante poderosas, com mensagens bem tocantes e reflexivas, mas isso infelizmente não se manteve tão coeso e bem arquitetado do início ao fim devido ao arco da ilha. Ainda assim, o anime se encerra em um ponto alto com a conclusão do arco da Pioran, o que ajuda bastante a compensar as falhas. Mesmo que eu pense que o anime poderia ter sido ainda melhor, foi uma boa experiência e fico feliz de ver a Ooima tentando evoluir cada vez mais como autora.


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