Kemono Jihen: Uma joia tímida da temporada de inverno | Review

Se na temporada de janeiro Jujutsu Kaisen foi um Jump de estética explosiva, Kemono Jihen foi um shounen de porrada num clima bem diferente. Protagonizando a história, temos Kabane, um menino crescido numa área rural, abandonado pelos pais sob uma tutela forçada e infeliz, que fez o amor ausente da sua infância. Kabane aprendeu a aceitar essa realidade hostil até se encontrar com o detetive Inugami. A partir daí, sua vida muda; ele vira auxiliar do detetive, agora num ambiente urbano cheio de outros estímulos e, também, companheiros: o sensível e leve Akira e o impaciente, de personalidade difícil, Shiki. Ao lado deles, ele vive novas experiências, desde enfrentar criaturas míticas conhecidas como kemonos à experimentar pizza, entender o que é o amor ou o que é ter uma família e, não menos importante, definir seu objetivo de vida principal, o de encontrar seus pais.

Kabane, o nosso protagonista

Por um lado, um menino indiferente, ingênuo, pode apostar que Kabane não é burro ou realmente insensível: ele é muito inteligente ao lidar com o novo ou o diferente, além de se preocupar com os sentimentos daqueles de que gosta. De fato, ele às vezes é “só mais um Kuroko” (de Kuroko no Basket), aquele olhar indiferente e falas travadas caricatas. No entanto, a forma como a direção conduz a narrativa colabora para que o espectador compreenda o personagem: dado que todo shounen (ou toda história) se trata de aprendizados ou da busca por eles, Kemono Jihen tinha a necessidade de apresentar Kabane a uma série de novos sentimentos, compreensões, num tom particular, amistoso sem que desmerecesse as situações ameaçadoras do material original. Para isso, o diretor Masaya Fujimori optou por um ritmo mais lento e uma direção sem muitos enfeites visuais. Se em algum momento me questionei se não era apenas falta de recurso da produção (Kemono Jihen foi adaptado pelo Ajiado, um estúdio relativamente desconhecido por aqui, sem grandes produções), a verdade é que, até o fim, o anime mostra uma autoconsciência tremenda, dando o ritmo certo aos episódios e fazendo o recorte da história caber sem pressa ou lentidão dentro dos 12 da primeira temporada. O roteiro em si de Kemono parece bem pouco apressado, na verdade, o que da mais razão à escolha da direção: Kabane tem o devido tempo para aprender suas lições com naturalidade e não só se solidificar como personagem, mas construir uma relação bonita com Akira, Shiki, Inugami, o vampiro Mihai e a pequena raposa, Kon.

Da esquerda para a direita: Kabane, Akira e Shiki

Personagens estes, que têm seu brilho próprio. O mala sem-alça do Shiki se esforça para manter a pose de durão, mas sabe demonstrar suas fraquezas quando precisa (ele se derrete pelo carinho do Kabane!). A espontaneidade de Akira faz um ótimo oposto, e enquanto o seu medo excessivo o torna um tanto chato, ele terá um ótimo desenvolvimento ainda na primeira temporada. O vampiro Mihai é um daqueles personagens caóticos, prontos para alavancar qualquer sensação de perigo com atitudes incautas nos momentos mais delicados, tornando-o uma presença muito cativante. Inugami é um chefe gentil, que se confunde com uma figura paterna graças ao seu coração (ou deveria dizer negócio?) acolhedor… poderia certamente alimentar melhor esses jovens (vai todo mundo ter colesterol alto de tanto comer pizza), mas é um cara legal e a voz do Aizawa de Boku no Hero só o deixa mais carismático. Ele mantém uma relação diplomática curiosa com Inari, uma kitsune com intenções ainda um tanto misteriosas nessa primeira temporada que certamente são caóticas e se provarão mais do que pensamos posteriormente… e, para fechar, a duplinha de kitsune Kon, que mesmo rejeitada por Inari continua querendo sua aprovação, e Nobimaru, um rapaz também caótico e um tanto sarcástico, que também trabalha para Inari mas com segundas intenções por trás de sua servidão. Em resumo, uma contradição intrigante em que dois grupos de jovens acolhidos por adultos são jogados, por esses mesmos adultos, para batalharem num mundo hostil no qual kemonos ameaçam a paz dos humanos (e vice-e-versa).

Vai falar que esse não é um dos designs mais legais que você já viu? Cabelo debaixo do óculos é a nova moda!

Inari, a outra adulta (irresponsável) de Kemono Jihen

Porém, não se deixe enganar pela aparência infantil da maioria do elenco. Um dos maiores charmes de Kemono Jihen é certamente as interações nas partes slice of life. Garanto, é um elenco diverso, recheado e cativante, com interações muito bem escritas, que fazem suas personalidades, qualidades e defeitos, fluírem de forma agradável na tela! Mas do outro lado dos diálogos refrescantes e do tom ameno, também vemos as partes traumáticas desses personagens: a impotência de Akira, herança de uma infância complicada ao lado do irmão e o medo sufocante que acomete Shiki em momentos de perigo. A história cria um contraste muito curioso quando aborda assuntos fortes do passado do elenco. E novamente, a condução da direção ajuda muito a encarar isso com naturalidade, além de uma abordagem audiovisual responsável de temas como estupro e abuso de menor (mais gráficos no mangá, por exemplo).

Para isso, Kemono tem fortes aliados: a boa trilha sonora de Yuya Mori e os storyboards da série. O material é bem contido, não são músicas grandiosas, mas eficientes em transmitir a tristeza em toda a relação do Akira com o irmão ou em criar a sensação de perigo nos momentos de ação ou até mesmo a sensação épica na conclusão de uma luta. No storyboard, há excelentes escolhas de enquadramento, bom uso de elementos do cenário para criar algumas perspectivas instigantes. Enquanto isso, a direção de animação mantém os designs polidos na maior parte do tempo e a equipe dos cenários cuida muito bem da atmosfera que rodeia a história. Assim, a série consegue eficiência em transmitir os dramas de seus personagens, graças ao bom trabalho de Masaya Fujimori e sua equipe.

O episódio 7, focado no Shiki, é particularmente um dos mais poderosos e encantadores: o jogo com as sombras e iluminação é bem bonito aqui

E a dinâmica entre enquadramentos abertos e fechados, mais a iluminação de antes ajudam a criar também momentos mais íntimos para o personagem

Esse enquadramento além de criativo também passa uma sensação de que algo particular está acontecendo ali. Ótimas escolhas!

A série tem seus defeitos, entretanto. Algumas histórias do trecho episódico deixam a desejar. Embora elas ofereçam uma boa introdução de personagens ou de conflitos, o autor não soube como fazer isso em conjunto com o desenvolvimento do plot do episódio em si, então a execução é um tanto decepcionante (particularmente o episódio dos insetos e o dos sapos). Temos também o polêmico episódio 9, do qual eu não vou comentar a polêmica da criança vestida supostamente de forma sexualizada, mas vale dizer que a insistência do romance em shounen pode ser bem incômoda e… não faz o menor sentido a mudança de personalidade da dita personagem de um episódio pro outro. À parte disso, é bonitinho o processo pelo qual a personagem Kon passa nesse trecho em relação aos sentimentos dela pelo Kabane.

Boas lutas, bons personagens e uma ótima condução narrativa e visual fazem de Kemono Jihen uma joia brilhante ainda que humilde. Com um bom controle de expectativa, espere uma história devagar que respira o drama e o cotidiano de seu elenco, entregando uma ótima introdução desses personagens assim como do mundo, em que humanos e kemonos estão em constante conflito. O saldo da sua experiência pode ser extremamente satisfatório!Agradeço a Rebecca e Victor Lucas, companhias minhas na experiência de Kemono Jihen e que me ajudaram em certas reflexões para este texto!

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