Mergulhar nas obras do mangaká de terror Hideshi Hino é estar pronto para deformações humanas, famílias regidas por dinâmicas bizarras e crianças aterradas por solidão e sofrimento. Não é à toa: Hideshi experimentou o terror do pós-guerra no Japão do século XX, desde as consequências da radiação à pulsante violência de uma sociedade em constante auto-flagelo. Disposto a seguir em frente, ele enterrou o lápis em suas feridas e fez do sangue extraído o néctar do seu renomado trabalho. Aqui, com seu traço cartunesco típico dos mangás dos anos 60-70 aliado a uma competente quadrinização, ele esbanja visceralidade através de quatro histórias compiladas num único volume com o nome de Lullabies From Hell (Jigoku no Komoriuta).
A mãe era uma demente viciada numa canção assustadora. A condição mental causava um cuidado negligente do filho (que ia além de só não dar amor), algo impossível de ser revertido pela figura paterna, que era ausente. As ruas também não o recebiam bem; era espancado pelos outros jovens por conta de sua estranheza comportamental. Esse cenário opressivo concebeu um ser humano dono de um coração sem qualquer resvalo de amor. Só e intocado, o mundo lhe era um inferno e só havia conforto quando sua imaginação o permitia ser o próprio demônio: o criador e controlador de todas as coisas ruins.
“Eu ordenei os monstros e demônios no inferno.” |
Muito da qualidade da história vem de como Hideshi conduz a narração, responsável pelo bom ritmo de leitura e pelo tom simultaneamente intimidador e descontraído. O terror não se perde e não se constrói por uma violência errante, mas pela realidade que transborda das falas do narrador. É a tranquilidade anteriormente mencionada unida, em contraste, à pesada infância ali narrada pelo próprio vivente que torna tudo tão interessante. Na verdade, famílias despedaçadas são a essência do trabalho de Hino, muito bem observada em outras obras suas (em Hell Girl, a narrativa de uma criança abandonada é o fio condutor de toda a história e em Panorama do Inferno, obra quase que resumida no primeiro capítulo de Lullabies From Hell, ganhamos o panorama de uma criança com familiares insanos). Jogar com infância traumática, usufruindo da liberdade de exagero que a arte propicia é seu ponto-chave.
Felizmente, Lullabies From Hell fecha os panos de seu espetáculo com a melancólica “Zoroku´s Strange Disease”. Curiosamente, os primeiros trabalhos de Hino foram com comédia. Seu primeiro mangá de terror veio a ser publicado em 1969, sendo ele “A Estranha Doença de Zoroku”. A história justifica perfeitamente a figura de Hideshi como ídolo de Junji Ito. Para além de seu renome na história dos mangás, o body horror desse conto é escabroso e, sem dúvidas, relembra os corpos abatidos por males misteriosos saídos das mãos de Ito.
Aqui, um homem desde a nascença estranho, isolado e julgado (bastante semelhante com o narrador da primeira história) vira um fardo para a família. Hideshi vai um pouco mais fundo na construção de personagens, criando alguns conflitos internos: o irmão quer Zoroku longe da vila, a mãe sabe das consequências que pode sofrer, mas não consegue tratar desta maneira o próprio filho, enquanto o pai se abstém. Zoroku acaba numa cabana isolada na floresta. No início recebe visitas da mãe, mas coisas estranhas passam a ocorrer com a vila após sua ida e o primeiro culpado é o homem repleto de feridas no corpo.
“Escuridão infinita o acometeu.” |
Lullabies From Hell é uma grande homenagem aos clássicos desse grande autor dos mangás de terror. Um prato cheio para quem gosta do gênero e também para quem gosta de mangá, uma vez que Hino consegue realmente expressar bem suas temáticas e sentimentos através da quadrinização. Mas, é claro, sempre bom ter cuidado. Esse tipo de autor costuma ser um pouco perigoso. Lê-lo pode ter consequências…