Divagações sobre Angel Beats, Shigatsu Wa Kimi No Uso e a definição de um artista

Autor do texto: Wendel Santos.
 


Hora de novamente falar sobre duas das minhas obras favoritas (nesse caso, dois animes), mas de uma maneira diferente do habitual. Afinal, o foco aqui não será falar sobre aspectos técnicos em si, mas sobre um conceito em questão que é um dos principais fatores que fizeram essas obras se tornarem tão especiais para mim.

 
Quando nós falamos sobre Angel Beats ou Shigatsu wa Kimi no Uso, ou quando alguém lhe pergunta o porquê deles serem boas obras (caso você goste delas), é muito provável que a primeira coisa que lhe venha a mente será o fato deles serem obras muito comoventes ou que conseguem mexer com as suas emoções devido aos conflitos ou o passado de seus respectivos personagens, certo? Mas o grande motivo de eu considerar essas obras tão especiais não são necessariamente esses. Claro que eu reconheço que os dramas dessas obras conseguem ser muito bons e que o motivo delas serem lembrados por eles é muito compreensível e justo. Mas existe um tema que infelizmente, poucas obras decidem abordar, e é esse tema que ambas as obras conseguem abordar com maestria, que é a música. Mais especificamente, o conceito, evolução e definição do que é ser um músico. E esse tema é personificado em duas personagens chaves que por mais que elas sejam aparentemente diferentes, possuem certas semelhanças e conseguem se complementar em relação a esse tema: Masami Iwasawa e Emi Igawa. Mas não é possível falar delas sem dar uma pequena contextualização de outros personagens de Shigatsu, então vamos lá.
Dentre todas as obras que eu já vi até o momento, Shigatsu foi a que sem dúvida, conseguiu abordar e desenvolver esse conceito sobre esses artistas de forma mais eficiente e completa. É muito interessante você perceber que quase todo o cast principal se foca em diferentes tipos de artistas, aonde cada um possui sua própria motivação de continuar tocando, que acaba conseguindo dizer muito sobre a personalidade deles e o melhor de tudo: conseguindo ser muito palpável, ao ponto de enxergamos essas características e motivações em artistas reais. Seja o conflito do Arima de que mesmo ele sendo um gênio, não o impede dele sofrer devido a uma vida conturbada, ao ponto dele se tornar incapaz de tocar; seja para o Aiza, que devido a uma suposta rivalidade, foi capaz de sobrepujar suas habilidades; ou a Kaori, já que o objetivo de querer deixar sua marca é praticamente a motivação inicial de todo artista, é a vontade de se expressar ou de mostrar sua habilidade que faz com que ele queiram ser vistos. Mas a motivação da Emi soa um tanto quanto diferente dos demais, o que faz com que ela, de certa forma, consiga ter um destaque em relação aos citados anteriormente.
Segundo a própria Emi em sua apresentação, o grande objetivo que a motiva a tocar é fazer com que a sua música ressoe nas pessoas. E esse motivo por si só, já faz com que ela seja uma personagem bem distinta dos outros citados devido a um único fator: Auto aceitação. Tanto o Arima, quanto o Aiza e até mesmo a Kaori tinham esse ponto em comum aonde eles tinham que atingir os objetivos estabelecidos por si mesmos, já que supostamente, seria a única forma deles se sentirem realizados, sendo que todos esses objetivos sempre envolviam provar algo a alguém. Enquanto o Arima tinha a necessidade de cumprir a expectativa de sua mãe, e o Aiza tinha a necessidade de superar o Arima para que ambos pudessem se considerar grandes músicos, a Kaori precisava criar uma postura diante do público que era o completo oposto da situação em que ela se encontrava, exatamente por ser a maneira pela qual ela queria ser lembrada. Mas a Emi simplesmente não parece ter nada disso. Ela não tem essa necessidade de provar nada a ninguém, já que ela própria já tem consciência de quem ela é e do que ela quer fazer. Tanto que a única ambição dela é simplesmente transpor qualquer sentimento que ela tenha em relação a qualquer coisa em forma de música e fazer com que eles consigam ser absorvidos pelos ouvintes, inclusive pelo próprio Arima, já que diferente do Aiza, o grande objetivo dela não era necessariamente ser superior a ele, mas sim, convencer ele a tocar com emoção através da música. E isso por si só já demonstra o quão determinada e o quão segura ela é sobre si mesma, ao ponto de não ter nenhuma amarra que a limite, principalmente em relação as expectativas em torno dela.
E então chegamos a outra personagem chave desse post, que é a Masami Iwasawa. Afinal, se Shigatsu foi o que melhor conseguiu criar essas representações e trazer essas definições a tona, Angel Beats foi a que melhor conseguiu explorar elas em uma única personagem, mesmo em curto período de tempo.
 
A Iwasawa era a líder de uma banda chamada Girls Dead Monster, cujo o propósito era servir como distração para que os planos da Yuri (a líder do grupo principal) fossem executados com o objetivo de tentar sair daquela realidade aonde viviam (uma espécie de purgatório) e confrontar Deus. E apenas essa parte já consegue ser muito significativa para o desenvolvimento da personagem em questão com relação a isso. Afinal, para você poder distrair o público, é preciso criar algo que consiga ser acessível e consiga cativar a grande massa. E não a toa que todas as músicas tocada pela banda sempre eram canções de Rock, bem enérgicas e empolgantes, até mesmo as que possuíam letras mais melancólicas. E isso nos leva a algo bem curioso. Afinal, se a principal razão daquele mundo existir era fazer com que as pessoas de lá conseguissem realizar o seu grande sonho, porque alguém como a Iwasawa, cujo o grande sonho era cantar e ser uma artista, ainda não tinha se libertado de lá, mesmo com toda a popularidade que ela possuía? Resposta essa que veio no episódio 3 da série, que para mim, é o melhor episódio da série inteira.
Logo no início do episódio, vemos a Iwasawa pedindo para a Yuri que ela deixasse tocar uma nova canção que ela tinha composto, mas é imediatamente negada, pelo fato da canção ser uma balada, logo não conseguiria criar a distração que era preciso para o plano ser executado. E depois de acompanharmos o seu passado, em um certo momento, o seu Show é interrompido e todos os seus instrumentos seriam confiscados, já que nesse mundo, isso seria uma espécie de subversão. E nisso, temos uma das cenas mais marcantes e memoráveis que eu já vi em animes até hoje, que é a última apresentação da Iwasawa, interpretando a canção My Song.
 
A grande beleza dessa cena não está apenas em toda a história que nos foi mostrada anteriormente sobre ela, mas por ela também significar de certa forma, a representação da evolução de um artista, já que essa canção é simplesmente diferente de tudo o que a banda tinha tocado até então. Ao invés de guitarras e baterias agitadas, uma melodia muito mais lenta feita por um violão. E ao invés de uma letra alegre e motivacional, uma letra muito mais intimista. Nesse momento, não é a líder de palco da Girls Dead Monster tocando, mas sim a Masami Iwasawa expondo seu lado mais frágil e vulnerável. Tanto que é ela, e apenas ela, que interpreta a canção, já que todas as outras integrantes apenas observam, mostrando que aquilo era algo unicamente dela. É o momento aonde ela se livra de toda e qualquer amarra que a prendia apenas para mostrar e expressar tudo o que ela sentia em relação ao que ela já tinha vivido até ali, tanto que ela só se sente realmente realizada ao ponto de se libertar após a interpretação da canção, desaparecendo logo em seguida.
E o fato dessa música ser a canção de despedida da Iwasawa não é uma mera coincidência, já que isso sempre existiu no mundo da música, e mesmo recentemente, ainda é possível ver uma leva de álbuns aonde artistas decidiram tomar uma postura extremamente parecida com a dela. Aonde eles confrontam temas como morte e perda e expõem esse lado mais vulnerável e frágil de si próprios, soando como algo bem distinto do que eles normalmente lançariam. E talvez essa característica seja uma das coisas mais admiráveis em um artista. Afinal, se expor nunca é algo fácil. Se nós, pessoas comuns, já sentimos dificuldade de nos abrirmos e mostrarmos nossas fraquezas para alguém, quem dirá um artista com milhões de fãs? É preciso, no mínimo, muita coragem para fazer isso, tanto pela exposição quanto pela expectativa que os seus fãs tem em relação a ele.
 
Obviamente que para um músico ser um grande artista, não é obrigado ele ter essa postura, mas é interessante pensar sobre o que o motiva a continuar tocando. Afinal, se utilizarmos os personagens de Shigatsu como parâmetros, não é exagero falar que não apenas artistas e bandas, mas como gêneros inteiros como o Rap ou o Punk foram criados graças a visão que a Kaori possuía. A necessidade de se expressar, de criticar, de querer ser visto e ouvido, e de quebrar padrões estabelecidos em uma determinada época para fazer com que eles fossem lembrados pelas pessoas. E muitos conseguiram atingir isso com louvor. Mas a pergunta que fica é: quando você consegue conquistar isso e você finalmente é ouvido e escutado, e você consegue expressar tudo o que queria, o que fazer a seguir? 
E é nesse momento que entra a Emi e a Iwasawa. Elas representam esse próximo passo. Representa o momento máximo aonde eles simplesmente deixam de se importar com fama ou qualquer outra coisa, e a prioridade se torna fazer com que você sinta o que eles sentem ou apenas falar sobre qualquer coisa que eles acharem necessário, mesmo que isso inclua medos, ou dores ou traumas sobre si mesmos. Mas claro que isso não quer dizer necessariamente que eles irão conseguir transmitir isso de uma maneira sempre efetiva. Tanto que isso também é retratado no próprio anime, aonde a Emi é debochada por um professor pelo fato dela não ter conseguido se sair bem em um concurso anterior antes de se apresentar, e até mesmo através do Arima, já que quando ele finalmente consegue voltar a tocar e desiste de ser um “metrônomo humano”, além do próprio público não entender nada e ficar confuso, ele é completamente menosprezado pelos jurados, considerando a sua apresentação quase como uma ofensa.
 
Mas tudo bem. Afinal, o que realmente importa é o fato deles terem continuado tentando fazer com que esses sentimentos fossem transmitidos de uma forma que alcançasse ou o público ou uma determinada pessoa importante para eles, já que graças a essa apresentação, o Arima decide continuar tocando piano apenas porque ele ama tocar, e não para agradar ninguém. Tanto que da mesma forma que o Arima e a Emi conseguem cumprir esses objetivos, vários artistas também conseguiram. E no fim, toda essa conversa pode ser expandido não apenas para a música, mas para até mesmo outras mídias, como livros e filmes, por exemplo. No fim, o que realmente conte talvez seja exatamente essa questão de aceitar a si mesmo, como citado antes, já que mais importante do que fazermos qualquer coisa pelas outras pessoas é o fato de nós querermos fazer essa coisa por nós mesmos. Da mesma forma que a Emi e a Iwasawa fizeram. E por mais que nós nunca saibamos com exata certeza em que música, álbum ou obra determinado artista decidiu expor os seus sentimentos mais íntimos (isso se ele realmente o fizer), já que isso é algo que só cabe apenas a eles responder, está tudo bem. Já que assim como aconteceu nas apresentações da Emi e da Iwasawa, esses sentimentos ainda poderão nos alcançar e ressoar dentro de nós.
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