As ilusões de Nijigahara Holograph

Nijigahara Holograph é um mangá seinen publicado entre 2003 à 2005 na QuickJapan, pelo grandioso autor Inio Asano que já é conhecido por excelentes obras, como Solanin e Oyasumi Punpun, que exacerbam seu estilo de histórias sobre sentimentos humanos, angustia e “representação da nova geração”, além dos desenhos fotográficos detalhistas e muito vivos que o mangaká carrega. A obra possui apenas um único volume, e no Brasil foi publicada pela editora JBC em 2016.

Essa é mais uma das obras bem caracterizadas de Asano no sentido de seguir o cotidiano de alguns personagens, mostrando sacrifícios e problemas reais com temas bem pesados. A diferença aqui é a forma tão densa que a narrativa não-linear que o mangá se propõe a seguir, tornando a leitura inicial não só confusa, mas estranha e intrigante. Este é um daqueles mangás que necessitam do poder da interpretação para se fazer valer, não há respostas prontas e muito menos um único ponto de vista a ser avaliado. Mais de uma leitura é necessária para compreender as diversas formas de interpretações da obra, de diferentes maneiras – não é a toa que até o próprio autor não soube responder perguntas da imprensa ao tentar explicar algumas coisas sobre o mangá.

A história do mangá, segundo a editoraMesmo com borboletas ameaçadoramente proliferando na cidade, o rumor de uma misteriosa criatura que está à espreita no túnel atrás da escola se espalha entre as crianças. Quando o corpo da mãe de Arie Kimura é encontrado na entrada do túnel, junto aos vestígios aparentemente humanos, a lenda parece ser confirmada. O fim do mundo está próximo? Com a finalidade de apaziguar a ira da besta as crianças decidem oferecer um sacrifício pelo túnel Nijigahara. Este é apenas o início dessa complexa e misteriosa história.

O nome da obra é uma referência ao próprio túnel que fica atrás da escola das crianças na história, e essa tal criatura misteriosa que mora por essas redondezas, e que vai acabar com o mundo, é um boato ocasionado pelas próprias crianças para um mal que elas mesmo inventaram. Essa ideia vem de uma brincadeira infantil que Asano se inspirou, que inclusive aparece em uma parte do mangá. Nesse jogo, chamado Hana Ichi Monme, as crianças formam duas filas dando as mãos umas às outras, ficando em fileiras paralelas entre si, frente à frente. Elas cantam a música do jogo, e cada time decide quem do time adversário quer do seu lado; as crianças escolhidas jogam pedra, papel e tesoura, e o perdedor vai para o outro time. O jogo acaba quando um dos times não tiver mais crianças.
 
A história bagunça o passado, presente e futuro de um certo grupo de personagens que possuem conexões entre si, sem dar pistas destas transições, misturando acontecimentos que são desenvolvidos e explicados conforme os capítulos passam em diferentes linhas do tempo. A armagura e todos os outros sentimentos que esses personagens carregam vão sendo desoladas na narrativa.

O desenvolvimento do mangá pode ser visto a partir de várias bases de acontecimentos que começam paralelamente: No primeiro, um aluno transferido, chamado Suzuki, que após sobreviver a uma tentativa de suicídio, enfrenta problemas em se adaptar na nova escola e confiar nas pessoas. Depois, Komatsuzaki, um garoto que na infância era um delinquente, mas que após sua colega de classe Arie sofrer um acidente que a deixou em coma, mudou completamente até se tornar alguém recluso e com problemas de convívio social. Arakawa, apaixonada pelo valentão, mas que não consegue fazer com que ele esqueça Arie, uma garota que está em coma depois de um certo “acidente”.

Esses e outros detalhes da vida dos personagens são contados em acontecimentos do cotidiano, intercaladas com as memórias de quando eles ainda eram crianças, dez anos antes, o que revela os relacionamentos entre eles no passado e a forma como isso afeta outros relacionamentos na atualidade. Além disso, todos parecem estar envolvidos com a tal história do monstro vivendo em um dos túneis da cidade, querendo o fim do mundo.
É um tanto normal se sentir perdido durante o início da leitura principalmente pela evasão de cenas que acontecem entre os personagens, vários eventos pesados e graves acontecem sobrepondo-se entre si, demora um pouco para se pegar a noção do que realmente está acontecendo na história. Vale constatar que Nijigahara não é uma história firmada só de enredo, mas também de linguagens pelo seu uso contínuo de cortes narrativos, saltos temporais e mensagens vagas que conectam tudo. Essa construção bizarra nos mostra o ponto de vista de cada personagem, com muita sutileza que exige atenção. A narrativa expõe que todos possuem arrependimentos gigantes pelo que fizeram em algum momento passado, eles não possuem apenas indecisões na vida mas também cicatrizes de feitos que passaram a transtorná-los em algum momento, mudando o meio em que vivem. Essas escolhas e arrependimentos fizeram com que a vida deles afetassem e envolvessem outras vidas de maneiras que não estamos costumados a perceber. Essa é uma representação do nosso egoísmo interno em achar que apenas nós sofremos, que as outras pessoas não possuem problemas e motivos para isso.
Asano não deixa de desenvolver tão bem o lado humano dos personagens, mostrando suas dores, mágoas, ressentimentos e outros elementos que apresentam os dois lados de cada pessoa. Eles carregam muito dentro de si próprios e todo o conceito do drama e do arrependimento é humanizado demasiadamente. Todos possuem um julgamento sobre sua vida e sobre si mesmos, que pesa no imaginário como uma característica tão realística do mangá. Inio concretiza isso em vários quadros que mostram decisões dos personagens, e logo depois as consequências acarretadas. Há uma preocupação em desenvolve-los o máximo possível como seres humanos, pois mesmo com alguns problemas em comuns, como a própria exclusão da sociedade ou indícios de depressão, eles acabam se tornando únicos e muito bem expressados.
A obra também faz uso de referências diretas e indiretas a referências filosóficas, e a passagem chinesa (taoista) usada em determinado momento é um bom exemplo:

“Zhuangzi adormeceu um dia em um jardim de flores, e teve um sonho. Ele sonhou que era uma linda borboleta. A borboleta voou aqui e ali até o cansaço, então ele caiu no sono, por sua vez. A borboleta teve um sonho também. Ele sonhou que era Zhuangzi. Neste ponto, Zhuangzi acordou. Ele não sabia se ele era agora o real ou o sonho do Zhuangzi Zhuangzi da borboleta. Ele também não sabia se era ele que tinha sonhado a borboleta ou uma borboleta tinha sonhado com ele.”

É até fácil ligar as temáticas do mangá com a filosofia taoista, principalmente levando em conta a busca pela sabedoria absoluta através de dois elementos dualistas (yin e yang).

Além disso, a obra muito carregada de simbolismos. O uso das borboletas recorrem ao mangá vários sentidos, desde o fácil efeito borboleta, em que as atitudes de cada um nos eventos paralelos mudam a trajetória de suas vidas, até o princípio que tenta ligar todos esses personagens principais envolvidos em algo comum, talvez alguma entidade os guiando para a salvação. As borboletas. Este fica sendo como um dos grandes enigmas da história, cuja resposta demora para chegar, mas desde cedo fica claro como as borboletas são importantes na conexão entre todo o elenco principal – e como todos eles acabam se desfazendo em borboletas em algum momento.

Um dos grandes descobrimentos se faz pelo desenvolvimento e reflexão da crueldade humana, que é é transparecida e é muito pesada. Sua retratação é formada não só por atitudes de personagens, mas muitas vezes pelo próprio espiritismo e símbolos. O uso de metáforas é feito para representar as sensações inerentes aos seres humanos, como o fato de que são capazes de causar estragos à humanidade, o egoísmo, desejos, valores e moralidade.
 
A própria representação do mostro do túnel pode ter no fim das contas uma explicação bem simples e fácil de ser entendida. Sem entrar em mais detalhes, ela é representada nas diferentes cenas em que o monstro é mostrado de diferentes formas, justamente para mostrar como nós mesmos, humanos, somos este monstro. Todos temos um lado obscuro, e devemos resistir a ele.

Ao compreender, ou pelo menos tentar chegar o mais perto dos fatos acontecimentos por trás de tudo, cria-se uma grande apreensão pelas respostas e por fazê-las compatíveis com nossas teorias criadas durante a leitura. Nosso cérebro tende a sentir prazer quando encontra padrões, ou quando tenta enxergár-los em meio ao aleatório, ao vazio.  O que parecida a princípio muito confuso, surreal e bizarro se mostra uma retratação bem fria, tensa e emocionante sobre a crueldade humana. Quando encontramos soluções, que por algum motivo entendemos como possíveis, ganhamos estímulos compensativos, satisfações.  Acredito que cada pessoa pode tirar uma grande reflexão ou resposta do que entende da obra a partir do momento que cada um possui uma visão de mundo diferente, e principalmente um recurso interpretativo da imaginação que pode criar tanta coisa.
 
O traço de Asano é incrível e consegue dar intensidade e profundidade à história. Seus desenhos baseados em fotografias reais recorre a detalhes e às emoções dos personagens sem precisar distorcer seus traços para tal, também dando a difícil distinção entre sonho e realidade. Uma das marcas mais registradas pelo mangaká continua muito constante na sua qualidade exercida em Nijigahara Holograph.
O final da obra mostra como o tempo de ser linear, mas como carregamos traumas e esperanças para o futuro – e como a vida não para nesse intervalo. Afinal, não existe uma justiça poética ou sequer um desenvolvimento tão arbitrário ocorrendo em um determinado tempo de nossas vidas, tudo que existe é a esperança de que o amanhã seja melhor do que hoje. A vida apenas segue em frente. O resultado da história é único e muito poético, e é por este mesmo motivo que é tão complicado e difícil de se compreender.
 
Nijigara Holograph é uma profunda imersão em reflexões, um grande quebra-cabeças, e para tentar entendê-la deve ser lida mais de uma vez. Uma primeira leitura provavelmente deve gerar um pensamento do tipo “mas o que m#$d@ é essa?”, porém faz parte do imaginário e do próprio conceito da obra que se interprete os valores mostrados na narrativa que não possui cronologia. Esse é um dos maiores motivos pelo qual o mangá não é para todos, é um seinen pesado e cult que carrega uma grande questão existencial, como é costumeiro dos mangás de Asano e seu cinismo em relação a isto. E as vezes é necessário que uma obra tenha um peso tão grande assim para que possamos aprender algumas coisas, nem tudo pode ser ensinado na base do “felizes para sempre”.
Por fim, o trabalho da JBC com esse mangá foi muito bom, a qualidade do offset está boa e a obra vale cada centavo, ainda mais por ser daquelas em que você precisa constantemente tirar da prateleira para uma releitura.

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