Kaguya Hime no Monogatari – O excepcional trabalho de personagem de Takahata

Obs: Essa análise possui muitos spoilers sobre o filme.

Sobre
Este filme narra a vida de Kaguya, uma garota que nasce em um bambu (do conto: O Cortador de Bambu) e cresce rápido, assim como também aprende rápido. Ela é criada pelo cortador de bambu que a encontrou, um senhor humilde e simples, assim como a esposa dele. Até determinado ponto de seu crescimento, a menina viveu nas montanhas brincando com outras crianças que viviam ali.

O cortador de bambu, então, encontra ouro e tecidos finos dentro de outros bambus e acredita ser uma mensagem dos deuses para que Kaguya torne-se uma princesa… Sendo assim, ele vai a capital todos os dias e constrói um palácio para transformar sua filha numa princesa.

Análise
Com uma arte diferente, o filme passa um ar de paz e tranquilidade de início… Mas o nome Isao Takahata sempre deixa aquele alerta ligado por ser um diretor que não passa a mão na cabeça do telespectador, ou vende sonhos como seu companheiro Hayao. Suas obras costumam se tornar dramas pesados e aflitivos gradualmente, porém com muita sutileza no que aborda e um minucioso trabalho de personagem.

Kaguya-hime no Monogatari é o ápice do que o diretor já mostrou em suas obras anteriores, harmonizando a natureza com uma animação bem peculiar, um drama bem construído e o ótimo desenvolvimento da personagem.
 
A personagem Kaguya é representada no primeiro ato do filme com felicidade e liberdade dentro da natureza. No entanto, ela é obrigada a deixar seus amigos para se tornar uma princesa. Tudo o que ela gosta e a define é contido pelas regras de etiqueta dos nobres do Japão feudal, como as definições de beleza (dentes pintados de preto, pó de arroz no rosto e sobrancelhas pintadas) e também a definição de felicidade que as mulheres devem ter ao serem submissas ao homem. Desta forma ela passa a sentir falta dos momentos alegres vividos nas montanhas, sendo que até mesmo o ato de sorrir é restringido pela ética nobre imposta sobre as mulheres, o que contrasta com sua infância alegre. Para alcançar de volta a felicidade, ela precisa ser livre, porém isso é impossibilitado pelo amor que tem ao seu pai, o homem simples e humilde que a criou, mas tornou-se cego por uma vida de muita riqueza e prestígio.
 
Os desejos da princesa e as suas necessidades entram em conflito com o mundo em que vive, onde tudo o que ela é, é reprimido. O conflito é interno também e ela vai se tornando uma garota depressiva e séria, alcançando uma profunda tristeza a ponto de clamar por socorro a lua, que é o seu local de origem.
 
Dentre todas as produções do estúdio Ghibli, Kaguya é, com toda certeza, a personagem mais completa apresentada, sua base é bem construída e esses conflitos internos e externos são facilmente perceptíveis. O diretor ainda usa de enquadramentos que flertam com a liberdade ou passam um sentimento de confinamento, assim como o excelente uso das expressões faciais que são bem humanas e realçam seus sentimentos, acompanhando assim o seu desenvolvimento e suas mudanças de humor.
Juntamente disso, a atuação de voz dos seiyuus também não há onde pôr defeito. No caso, a dubladora, Aki Asakura, contribui muito com o processo dessa humanização de Kaguya, seu trabalho em demonstrar alegria, tristeza e raiva através do tom de voz é perfeito, e ainda ri ou chora com bastante naturalidade.

Comunicação Visual – Cores, objetos e enquadramentos.

É fascinante ver tanta caracterização numa personagem e isso enriquece deliberadamente o roteiro do filme. Mas o excelente trabalho de personagem é igualmente sobreposto por meio da direção de arte de Oga Kazuo (atuou como diretor de arte e background em vários outros filmes do mesmo estúdio), que é muito presente aqui e se comunica bastante com seu público. Em conjunto com Takahata, eles usam muito as cores para transmitir os sentimento dos personagens e o próprio clima da animação. Um bom exemplo disso é o constante uso da cor branca que explora seus significados e é usada de várias formas durante o longa. No conto original, dizia-se que Kaguya emitia uma luz branca natural que clareava até os cantos mais escuros, durante o primeiro ato da animação, não há tons pretos para as sombras e os próprios vãos entre os bambus que compõem o chão da casa dela são brancos, seguindo dessa forma por todo o ambiente da natureza, sendo os tons de cinza o mais próximo de preto que se chega no começo do filme. O branco remete a pureza, paz, sinceridade, calma, verdade e inocência, que são características da personalidade da princesa e do que ela irradia.
Até mesmo as roupas dela são brancas e durante essa primeira parte, a princesa aparece várias vezes centralizada nos quadros, cercada por um branco límpido e logo a seguir a natureza.
Ainda no primeiro ato, ocorre uma mudança de tom drástica do branco para o laranja, quando o cortador de bambu está sozinho em cena durante o trabalho. Muitas vezes o tom alaranjado é usado no cinema como um recurso para atrair atenção do telespectador ou para representar atração, prazer ou um ato de sedução. O laranja também é a cor que representa o fogo, que pode ser usado tanto para transmitir calor quanto demonstrar a junção entre a vingança (amarelo) e o perigo (vermelho). A cena é bem peculiar e podemos tirar algumas interpretações sobre o que ela quer passar. Em particular, a minha interpretação pessoal foi: o rei da Lua, ou deus da Lua, seduziu o cortador de bambu com ouro e tecidos refinados sabendo que Kaguya seria arrastada para a nobreza e assim garantir que ela retornasse para a Lua após ser inibida de sua natureza. Isso pode ser encarado como uma lição ou vingança por ela ter cobiçado a vida na Terra.
O primeiro ato finaliza com um pôr do Sol, simbolizando a partida de Kaguya e sua despedida da natureza, tanto a natureza literal quanto a da personagem.
 
O segundo ato se inicia logo em um ambiente fechado de uma carroça e o rosto da princesa bem próximo, passando uma sensação de sufoco. A partir daí, o filme passa a colocar a princesa cercada por paredes em todas as cenas em que ela está na mansão. A geografia do lugar é bem apresentada e sempre sabemos exatamente onde a menina está, e mesmo que haja uma porta, a sensação de não haver saídas é forte. Ou, em outros casos, a personagem é cercada por pessoas, como se não houvesse para onde fugir.
Em divergência com a primeira parte, Kaguya passa a ser colocada nos cantos das cenas em que aparece com outra pessoa. Uma cena que demonstra isso bem é uma em que a instrutora está ensinando a garota a tocar. Pode-se ver claramente a menina localizada no canto da imagem, e entre ela e sua instrutora uma repartição branca com desenhos de pássaros voando, tanto nessa cena como em várias outras durante o segundo ato, quando Kaguya faz uma ação espontânea e se diverte, a “câmera” muda para um foco central dela e um fundo branco em volta da personagem, desta vez usando a cor para expor honestidade e sinceridade. Ainda na cena, o pai de Kaguya abre a repartição ao lado dela, simbolizando a repreensão da liberdade expressiva da princesa.
Kaguya começa a aparecer em quadros onde os pontos brancos que antes ficavam a sua volta, passam a ficar deslocados e representados por portas, como nas cenas em que ela está com a mãe na cozinha. Inclusive, nessas cenas pode-se ver claramente a princesa bem deslocada ao fundo quando seus pais estão juntos.
 
Por falar nos pais de Kaguya, existe uma notável diferença entre a mãe e o pai aplicada através das roupas que vestem. A mãe permanece vestindo a mesma roupa simples quando está a sós com sua filha em dias normais (como nas cenas em que estão juntas na cozinha), entretanto o pai não veste mais roupas simples e é sempre visto em um kimono amarelo. Amarelo é uma cor que usada para demonstrar alegria, jovialidade, criatividade, mas também significa opulência, ou fartura devido à sua tonalidade próxima ao dourado. Ainda mais afundo no significado da cor, é dito que o uso do amarelo em excesso pode tornar a pessoa irresponsável e volúvel. No filme, o cortador de bambu passa a vestir o kimono amarelo até o final quando se dá conta de que irá perder a sua filha. Uma manifestação da ambição do personagem é bem especifica quando a princesa o questiona sobre a felicidade dele depender tanto de um chapéu na corte.
 
Mesmo assim, os momentos espontâneos da princesa sempre são mostrados com um fundo branco em volta dela.
A celebração do nome “Kaguya” – Essa é uma das cenas mais marcantes do filme, pois no momento em que ela foge quebrando as portas, vemos pela primeira vez o preto usado nas sombras e essas sombras tomam conta do cenário partindo do centro para onde Kaguya vai, como se ela estivesse mergulhando na escuridão e o seu desespero é representado por uma abrupta mudança de tons e traços violentos. Enquanto corre, seus uchikis (kimonos sobrepostos) começam a cair e o primeiro deles é o branco que pode simbolizar tanto a inocência ou pureza perdida da personagem como também o fim do brilho e da paz que a rodeava.
Na sequência o tom da cena muda novamente para uma gélida e tranquila paisagem azulada em composição com a serenidade da natureza nas montanhas, só que, diferente do começo, a paisagem aqui se encontra silenciosa e morta… Deixando implícito algo como “não há mais volta”. O mais intrigante é que tudo não passara de um sonho. Assim como essa cena, temos a linda cena onde Kaguya voa pelos céus com Sutemaru que também remete a um sonho, ilusão. Possivelmente, a única vez que Kaguya saiu da carroça foi quando ela dança embaixo de uma cerejeira, isso porque a carroça, assim como a tenda na mansão, assemelha-se muito a uma gaiola, que fica bem explícito na cena abaixo:
 
Aqui a gaiola é colocada na frente de Kaguya, que veste um uchiki verde por cima de um kimono branco, fazendo uma analogia entre o uchiki e a gaiola.
Outra vez as cores são usadas, porém de uma forma diferente. O verde é colocado no filme sempre como uma alusão à uma gaiola, seja nas venezianas da tenda ou na carroça, entretanto a cor não é usada pra dar significado ao confinamento de Kaguya, e sim do que ela está sendo privada, no caso a própria natureza da personagem.
Uma coisa que pode ser notada durante todo o anime é que, além da linguagem das cores, Takahata e Kazuo também utilizam a linguagem das flores. Sim, as flores contêm muitos significados e são muito usadas no cinema para explicar os sentimentos e personalidades dos personagens. Em Kaguya-hime no Monogatari, notamos o uso delas desenhadas nos quimonos dos personagens e podem revelar muito sobre eles, porém os desenhos mudam bastante e isso pode nos ajudar a compreender as emoções de cada personagem ao decorrer do filme.
 
Na cena da cerejeira, a princesa veste um uchiki rosa com desenho das flores de cerejeira nele. A flor tem diversos significados e alguns deles são muito condizentes com o que aquela cena representa e o que a princesa representa. A flor reflete a beleza feminina e caracteriza o amor, a esperança e a felicidade. Além disso, simboliza a efemeridade da vida e que por esse motivo deve ser aproveitada ao máximo, então da mesma maneira em que as flores são levadas pelo vento em pouco tempo, uma vida pode chegar ao seu fim a qualquer instante. A dança de Kaguya e aquele pequeno momento de alegria são apenas uma imagem de como ela deveria viver e diz muito sobre a sua curta passagem na Terra.
No final do filme, a princesa é levada de volta para a Lua, conforme se aproxima de lá, a paleta de cores vai sumindo e os quadros começam a ficar monocromáticos. Outra vez o branco é usado aqui, mas desta vez para denotar a falta de vida. É um final extremamente triste que nos deixa mensagens importantes sobre a vida, sua importância e os reais valores da natureza a qual deveríamos pertencer.O roteiro do filme teve algumas mudanças em relação ao conto, de forma que a sua mensagem fosse mais moderna para nos entregar uma Kaguya muito mais humana. Há cuidados bem sutis e perfeccionistas com a animação, a trilha sonora e a condução do enredo, para harmonizar com essa humanidade da personagem e a passagem de sua vida durante o filme desde o crescimento até sua partida.

A animação é tradicional, muito orgânica e perfeitamente fluida, juntamente de seus traços, os quadros parecem ter sido pintados com aquarela, trazendo uma enorme sensação de naturalidade com imagens bem suaves e tranquilas. A leveza e o bom uso dos inbetweens nessa animação são essenciais para atingir tal nível de fluidez, e estão impecáveis.

A trilha sonora é mágica e tem seu impacto no filme, mas o que mais chama atenção é a alegria da música tocada pelas damas da lua e o quão belo se transforma aquele momento tão triste. Joe Hisaishi, que já acompanha o estúdio há muito tempo, novamente mostra porque permaneceu por anos em parceria com os diretores Hayao Miyazaki e Takahata.

Conclusão
Kaguya-hime no Monogatari é um filme excelente, tanto pela técnica, onde há uma ótima direção que usa muitos recursos visuais para se comunicar com seu público, quanto pela trilha sonora tocante e uma animação incrível somada a sua arte peculiar, além de todo o sentimento passado por essa história rica em cultura japonesa, que é fortemente mostrada, e também rica em vida e seus significados. Uma rara obra-prima que pode nos fazer refletir sobre como encaramos o mundo e nossas definições do que é felicidade.

Direção: 10/10
Roteiro: 10/10
Animação: 10/10
Soundtrack: 9/10
Entretenimento: 10/10
 
Nota Final: 9.8/10