86 Part 2 e o retorno ao campo de batalha

Hora de falar sobre a continuação direta da adaptação de mesmo nome que contou com uma interessante e promissora primeira parte; um drama militar agregado com diversos comentários sociopolíticos, além de contar com uma bela produção, retornando em mais um cour. É engraçado que mesmo sendo considerada a segunda parte de uma única temporada com os episódios sendo contados do 12 ao 23, as escolhas narrativas assumidas aqui soam tão divergentes do que foi apresentado na primeira parte que parecem dois arcos bem distintos entre si.

A primeira grande decisão foi desistirem de dividir o tempo de tela entre o núcleo da república para dar um foco quase que inteiro aos 86 vivendo na federação de Gian. Isso acabou sendo uma faca de dois gumes. Se por um lado serviu para suprir uma das ressalvas que eu tinha com a primeira temporada ao expandir o universo da obra, mostrando os outros países além da San Magnólia e demonstrando que a república era um caso bem específico, deixando entendido que existe uma aliança entre os outros países para combater a Legion, por outro lado, o preço a ser pago foi sacrificar o desenvolvimento da Lena. Ela se tornou basicamente uma coadjuvante ao aparecer apenas em momentos muitos pontuais com exceção do primeiro e último episódio, além de que o anime mostra a queda da república de uma forma bem rápida e sem muita profundidade. O que é uma pena, pois eu tinha bastante curiosidade em ver como a Lena reagiria a esse inevitável desfecho e o quanto isso afetaria o psicológico dela de uma forma mais detalhada; ou ainda que houvesse uma contextualização maior a respeito do que ela passou durante o time skip entre a primeira e segunda temporada. 

E com isso chegamos no maior problema que tive em relação a essa segunda temporada, que novamente continua sendo o fato dos personagens ainda soarem bastante distantes e o enredo não conseguir fazer com que eu crie um vínculo maior com eles. Especialmente em relação aos amigos do Shin. Se na primeira temporada ainda tinha a justificativa deles estarem dividindo o tempo de tela com muitos outros personagens e o contexto vendê-los como soldados descartáveis, na 2ª temporada não há mais essa desculpa. A trama faz questão de mostrar que eles serão personagens muito mais importantes daqui para frente. Entretanto, mesmo com os personagens ganhando muito foco e tempo de tela, suas presenças ainda continuam tão apagadas como nunca. Tanto pelo anime não oferecer algum tipo de desenvolvimento que façam com que se tornem mais memoráveis, quanto por não serem capazes de confrontar ou questionar o Shin a respeito de suas atitudes de uma forma mais incisiva. Isso faz com que eles sejam bastante passivos, perdendo a chance de criar conflitos mais interessantes ou ampliar a composição de seus núcleos narrativos. Mesmo um personagem figurante como o Eugene aparenta ter tido uma importância maior no desenvolvimento do Shin do que a Anju, o Theo ou a Kurena; o único personagem que tenta fugir um pouco disso é o Raiden, com certos momentos em que ele tenta colocar o Shin contra a parede e questionar a postura dele, mas mesmo assim, não é nada tão significativo para fazer dele um personagem de destaque. 

O mesmo se aplica para a Frederica, outra personagem bastante desperdiçada, cuja única grande função foi servir como um artifício de roteiro para ajudar o Shin a derrotar o Morpho e nada mais. Isso é algo que chega a ser irônico, pois a obra parecia ter quase consciência do quão inútil ela era com o título de mascote que ela recebe, mesmo obtendo um imenso tempo de tela. E por mais que eu entenda que houve uma tentativa de criar paralelos entre ela e o Shin devido ao seu passado e tudo mais, infelizmente isto não soa tão coeso e bem amarrado quanto na primeira temporada, onde os contrastes entre a Lena e ele eram sempre tangíveis e havia um avanço gradual, mas sempre constante, na relação deles. Isso não acontece na segunda temporada tanto pelos personagens não terem muita química entre si, quanto por essa relação não ser muito aflorada ao nível de eu sentir uma conexão mais palpável ou uma exploração do lado mais humano do Shin como a Lena fez na primeira parte. Tanto que o único destaque que posso dar para Frederica é o fato dela não ser uma personagem insuportável e ser bem inofensiva ao ponto de não comprometer o enredo.

Logo, a grande qualidade que fez essa segunda parte valer a pena foi o Shin, carregando literalmente toda esta temporada nas costas ao receber um arco de personagem que eu não estava esperando. O autor decidiu explorar o lado mais frágil e vulnerável do Shin mostrando que ele está bem longe de ser o cara ultra badass, frio e calculista que pensávamos que ele era na parte 1, o que é excelente. Especialmente quando ele tenta retornar a sua função de ceifador dentro de Gian, mas percebe que isto o atinge mais do que ele pode aguentar; seja por estar em um ambiente em que não é mais descartável, quanto pelos soldados da federação terem muito mais a perder do que os soldados do distrito 86. Isso faz a tarefa de Shin ser tão árdua ao ponto de nem mesmo ele conseguir sair ileso, como é retratado na ótima cena do episódio 6, onde ele decide se suicidar querendo usar o campo de batalha como pretexto após ler a carta na sua cabine, que desencadeia em uma cena bem tensa e carregada. Ou os constantes surtos em momentos-chave ao se lembrar do esquadrão 86, que a cada vez que cenas como essas aparece, mais dá a impressão que o Shin está cada vez mais perto de cruzar o limiar da sanidade e enlouquecer de vez. 

E claro que eu não podia deixar de comentar sobre o episódio 11, que foi basicamente a melhor forma de encerrar o arco do Shin que eu poderia pedir. Mesmo este sendo ironicamente o episódio em que a produção entrou em completo colapso, simultaneamente foi o momento que a direção de 86 ficou em seu ápice, tornando-se o meu episódio favorito de toda a série. Todo o tom obscuro e macabro da primeira metade é excelente, com cortes secos, flashbacks fragmentados, e ótimos enquadramentos e composições, como o momento em que a câmera fica em formato widescreen e vemos o Shin dentro dessa tela como se fosse um filme sendo reproduzido em uma sala de cinema. Uma forma muito inteligente de dizer que o personagem está preso dentro de suas memórias sem nenhum diálogo expositivo. Além disso, a silhueta de sombra dele próprio aparecendo na frente e a cena onde o espaço vazio corta o braço do Shin ao se fechar são muito criativas, sombrias e bem desconcertantes, como se você realmente estivesse vislumbrando um colapso mental. 

Até mesmo a trilha neste episódio estava boa, com a primeira faixa do episódio sendo a minha favorita do anime inteiro. As notas de piano foram contrastadas e posteriormente engolidas por violinos e violoncelos, criando uma aura bem sinistra, tal qual a cena que o robô da Legion vai atacar o Shin. O solo de violino soa como se estivesse definhando, somado as pesadas percussões bem inquietantes, incômodas e esquisitas (no bom sentido). Destaque também para a transição para a segunda metade, onde a fotografia vai se tornando cada vez mais brilhante e vivida durante toda a conversa com a Lena que vai demonstrando cada vez mais a vontade do Shin de querer viver sendo recuperada que também foi bem bacana. Não a toa que houve tanta gente que associou o momento com EVA, já que essa primeira metade tem uma certa influência dos episódios 25-26 da série clássica, assim como o cenário do campo das flores vermelhas na segunda metade faz parecer uma versão mais reluzente da estética do Evangelion 3.33 dos Rebuilds. Sem dúvida, o ponto mais emocionante e fascinante da segunda parte. 

E além disso, também aprecio que mesmo com o anime fazendo questão de mostrar o quão diferente é o governo da federação de Gian, eles não foram ingênuos de retratar todos ali como pessoas honradas, mostrando que o racismo ainda continuará presente em qualquer estado, mesmo que em menor escala, como o plano para matar o Morpho usando os 86. E o episódio final que conseguiu fechar e dar uma conclusão bem coesa e satisfatória para a temporada com a cena do reencontro que admito ser legal, é bem recompensadora após tudo o que os personagens passaram.

Por mais que eu tenha achado essa segunda parte um tanto inferior em comparação a primeira, ainda me parece decente o bastante para conseguir manter o meu interesse pela obra aceso, pois o autor deixa claro que quando ele se esforça, ele consegue entregar algo genuinamente bom, vide o arco do Shin, que foi bem sólido, além do diretor do anime continuar se superando ao demonstrar o grande talento que ele tem, mesmo sendo o seu anime de estreia. Só que, ao mesmo tempo, sinto que o roteiro esteve um tanto perdido em alguns momentos e sem saber muito bem qual temática que queria desenvolver, ou apenas não conseguindo trabalhar todas as ideias de uma forma bem estruturada ou polida como deveria, especialmente em relação a Frederica. Mas mesmo assim, eu continuarei acompanhando a obra caso tenha uma nova temporada, e torcendo para que o autor consiga refinar suas ideias no futuro.


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