Totsukuni no Shoujo OVA (2022) e a delicadeza de artistas indie no anime

O mangá Totsukuni no Shoujo de Nagabe, finalizado em 2021, tornou-se um sucesso consolidado pelo seu conto dramático e sua estética austera, um dos maiores destaques recentes do quadrinho japonês e muito aclamado pelo público. Em meio ao seu sucesso e popularidade fora do Japão, a obra recebeu uma animação promocional em 2019, um curta muito ambicioso de dez minutos de duração que contou com uma equipe pouco conhecida no meio do anime para produzi-lo em uma nova filial do estúdio Wit, em Ibaraki. O resultado dessa pequena amostra animada de Totsukuni no Shoujo foi muito positivo, abrindo possibilidades para que mais tarde uma nova produção, dessa vez mais extensa, fosse desenvolvida pela mesma equipe de artistas.

Em 2021, houve o anúncio dessa nova adaptação do mangá a partir de uma campanha de financiamento coletivo realizada com sucesso, que garantiu o orçamento de mais de 183 mil dólares para a produção do projeto. Surgiram dúvidas em meio a isso sobre se esse novo projeto de animação para Totsukuni no Shoujo conseguiria apresentar a mesma qualidade de produção do vídeo promocional anterior, mas, apesar de mais extenso, o anime no formato OVA lançado em 2022 ainda é uma produção impressionante especialmente devido ao talento imensurável daquela mesma equipe de artistas independentes que liderou seu desenvolvimento.

Essa nova animação no formato OVA é um recorte de algumas das principais cenas do mangá até certo ponto da história, funciona mais como um produto próprio que tenta apresentar o universo da obra fazendo jus a sua estética, mas que não substitui a experiência da leitura completa do material original; até por este motivo que o anime possui certa reorganização e contextualização semi-original dos eventos, não se trata de uma adaptação de toda a história, mas sim de um aperitivo do que é a essência de Totsukuni no Shoujo e o que aquele universo da história tem a oferecer.

A trama do anime apresenta trechos da história original principal, mas não mede esforços para ir a fundo em seus desenvolvimentos ou explicações, deixando sempre um ambiente muito mais convidativo para que o espectador, após a experiência animada, mergulhe a fundo no universo da obra ao consumir o material original. Sendo assim, o OVA de 70 minutos de duração atua como uma espécie de introdução ao universo do mangá para quem nunca leu e tem curiosidade a respeito, mas também é funcional para quem já tem alguma familiaridade com o quadrinho, afinal seus recortes e execução brilham em dar vida e movimento para a história.

Deixando um pouco de lado as questões sobre os aspectos mais relacionados a história, já que este não é o propósito nem da nova animação e nem deste artigo, e ainda considerando que já comentei um pouco mais sobre a história em outro texto sobre o mangá, quando ainda estava no início, o elemento mais importante para este OVA é, na verdade, justamente a criação de uma experiência imersiva a um universo já muito bem elaborado e explorado no material de origem a partir de uma animação estilística que tenta fazer jus à sua estética — e é fácil afirmar que o OVA de 2022 de Totsukuni no Shoujo cumpre com este objetivo pela delicadeza de sua produção.

A produção dessa nova animação, como já brevemente mencionada anteriormente, esteve a cargo da filial regional do estúdio Wit, a filial de Ibaraki. Ela fica longe do grande centro do estúdio principal em Tóquio, o que significa que essa filial não convive com a pressão de grandes produções comerciais do estúdio em que a principal preocupação é entregar os trabalhos o mais rápido possível. Como conta o SakugaBlog, a operação da Wit Ibakari está focada em dois segmentos principais: o primeiro deles é o treinamento de jovens artistas a partir do foco em produções infantis, com a filosofia de que é neste tipo de ambiente de produção em que os artistas encontram mais espaço para tomar o próprio rumo artístico devido às possibilidades de trabalhar com criatividade infantil. Isso tem realmente sido o caso para inúmeros artistas da indústria desde antes mesmo de Masaaki Yuasa, um famoso exemplo de artista que emergiu da animação infantil. Já o segundo segmento da filial Ibaraki é a criação de uma plataforma de revitalização para a animação, onde seja possível que artistas independentes e alternativos, que normalmente possuem dificuldade de entrar na cena do anime, consigam espaço em suas produções.

Yuasa já animava animes infantis desde o fim dos anos 80, este frame é da colaboração de animação solo dele para a abertura de Crayon Shin-chan (1998).

É com este contexto de artistas indie tendo oportunidades em produções de anime que entra em cena a dupla que criou a concepção, dirigiu, fez storyboard, animação e pintura não somente deste OVA de 2022, mas também do curta anterior de dez minutos: Yutaro Kubo e Satomi Maiya. Eles já eram muito conhecidos na cena indie da animação japonesa, pois após se formarem em um dos mais prestigiosos programas de animação alternativa do país, receberam muita atenção por se envolverem em produções de curtas e MVs; os estilos deles sempre combinara este é um dos principais motivos deles terem feito vários projetos em conjunto nos últimos anos — e até hoje, ainda pela Wit Ibaraki; o equilíbrio entre a narrativa visual pictórica e a animação transmutável, que os permitiu fazer animações que se projetassem como pinturas, tornou a dupla uma unidade criativa muito forte.

Essa identidade artística foi muito bem implementada em Totsukuni no Shoujo, uma produção meticulosamente desenvolvida para retratar a ambientação e fazer jus a arte e o cenário rústico do mangá a partir do trabalho de direção de artística de Takeda Yuusuke, um dos melhores diretores de arte ativos na indústria que sabe incrivelmente bem como criar cenários vivos e detalhados. Seu trabalho auxiliou na criação da fenomenal estética do anime junto da dupla na direção; a atmosfera idílica da obra toma conta de cada composição pela deliberada utilização do preto e branco na composição do anime, indo além ao transformar o que seria uma limitação convencional do mangá em uma das principais forças dessa animação. O preto e o branco retratam o caos, mas o anime hora se configura em uma paleta de cores de tons pasteis para balancear a intriga entre os momentos de colapsos mentais e os recortes da vida diária em um ambiente imersivo ainda sombrio, tenso e estéril.

Das suas magníficas composições e cenários, onde cada quadro parece uma pintura individual, partes de um universo dividido entre os insiders e outsiders com uma atmosfera assombrosa, até o cuidado especial com as manchas de pincel no sombreamento dos personagens, que ficam deliberadamente oscilando para criar uma textura tangível, como se fossem gotas de tintas aquarelas respingadas e borradas nos personagens, a identidade visual do anime é formada por uma elegância abstrata e igualmente poética; o OVA alcança novas maneiras de evocar os mesmos sentimentos da leitura do mangá refente a um conto de fadas sombrio entre a garota e a criatura que dela cuida, mas a partir de convenções próprias dos artistas que planejaram a animação. São inúmeros detalhes que compõe a execução e que a elevam na própria categoria enquanto experiência animada.

Essa adaptação de Totsukuni no Shoujo representa os primeiros passos da revitalização da animação japonesa conforme o estúdio Wit Ibaraki idealiza, onde artistas independentes ganham voz e espaço para trabalharem em animações especiais ou infantis, refrescando o núcleo criativo de uma indústria saturada, enquanto também treina jovens talentos em condições mais razoáveis e com oportunidades para consigam encontrar seu próprio caminho na arte. O OVA seduz o espectador com sua atmosfera, pinturas, acabamento e toda sua narrativa visual caprichosa, evidenciando o potencial gigantesco que existe em uma nova geração de artistas da animação japonesa quando estão longe da pressão dos prazos apertados. Tomara que a filial da Wit em Ibaraki continue seguindo por um bom caminho.


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