Doraemon, Nobita’s New Dinosaur e o legado criativo da franquia

O objetivo deste artigo é analisar o filme 40 de Doraemon: Nobita’s New Dinosaur (2020). Mas, antes disso, é necessário falar brevemente sobre a franquia e sua importância.

Introduzindo Doraemon

Doraemon é um mangá criado em dezembro de 1969 pela dupla conhecida por Fujiko Fujio, assinatura que se baseia nos verdadeiros nomes dos autores Motoo Abiko e Fujimoto Hiroshi. Publicado entre 1974 e 1994 no Japão, a série alcançou 45 volumes e vendeu mais de 100 milhões de cópias em todo o mundo, tornando-se um dos maiores sucessos infantis do país. A história é sobre Doraemon, um gato robô azul produzido em 2112, que volta no tempo para ajudar o jovem Nobi Nobita a não ficar endividado por várias gerações. A partir dessa premissa, o mangá explora diversos assuntos do cotidiano de uma criança e inúmeras temáticas sobre questões da idade, além de mostrar o cenário do Japão da era Showa e especificidades da época. A magia do mangá reside na forma como toda essa dinâmica funciona liderada pelo adorável Doraemon e sua infinidade de aparelhos futuristas que cultivam a criatividade sem limites da obra.

Sua primeira adaptação em anime foi ao ar entre abril e setembro de 1973 com produção pelo estúdio Nippon Television Douga, tendo apenas 26 episódios. A série até se tornou popular, recebendo boa sinalização para a produção de uma segunda temporada, mas isso nunca aconteceu devido à falência da Nippon Television, a estação de TV responsável pela produção. Entra em ação, então, o produtor Sankichiro Kusube (1938-2020): durante a época de 70, ele teve papel fundamental em convencer os autores e a TV Asahi a produzir uma nova versão da animação de Doraemon. Como resultado ele contribuiu para que uma segunda adaptação em anime começasse a ser lançada em 1979, com produção pelo estúdio dirigido por seu irmão Daikichiro Kusube, Shin Ei Douga (Shin Ei Animation). O estúdio já animara outras obras de Fujiko Fujio anteriormente, na época que ainda se chamava A Pro — acabou sendo renomeado para Shin Ei (New A) após se desvencilhar do estúdio Tokyo Movie para quem fazia terceirizações, onde, inclusive, Sankichiro Kusube era produtor inicialmente antes de deixar a empresa para seguir o irmão. [1]

Primeira animação de Doraemon (1973)

Essa segunda versão do anime foi ainda mais popular. Seus designs simples e carismáticos, junto de seu escopo infantil, tiveram o apelo necessário para manter a série famosa e duradoura: o segundo anime de Doraemon foi ao ar de 1979 até 2005 com um total de 1787 episódios exibidos. Em abril de 2005, uma terceira versão do anime começou a ir ao ar com novas vozes e visual repaginado — essa versão ainda está em lançamento. Se um anime que dura mais de 40 anos como uma das maiores audiências da animação japonesa por si só não é símbolo de sucesso, a franquia conquistou diversos outros feitos que fizeram dela um dos maiores símbolos da animação do Japão.

Em 2002, Doraemon foi eleito o “herói da Ásia” pela Time Asia! devido ao seu enorme sucesso na China, Coreia do Sul e praticamente todos os países do sudeste asiático; a obra ainda recebeu cada vez mais atenção em países da Europa e até mesmo no continente americano. E como se não bastasse, Doraemon recebeu em 2008 o status de “embaixador animado da cultura japonesa no exterior”, ganhando até mesmo o seu próprio museu no Japão, em uma região próxima de Tóquio.

Falando sobre Doraemon nos cinemas, a franquia também é um sucesso com seus filmes anuais que funcionam como histórias originais isoladas. A franquia comumente está entre as melhores bilheterias do ano no país a cada novo lançamento, e isso também é graças ao produtor Sankichiro Kosube em primeiro lugar. Por volta da mesma época em que ele ajudou a segunda versão do anime de Doraemon a ser produzida pela TV Asahi, Kusube investiu esforços para que a franquia ganhasse espaço no cinema. Ele próprio garantiu para os autores e para a produtora que assumiria pessoalmente a responsabilidade caso o primeiro filme da franquia, Doraemon: Nobita’s Dinosaur, lançado em 1980, fosse um fracasso. O resultado: Nobita’s Dinosaur foi a maior bilheteria nacional naquele ano para uma animação japonesa. [1]

Esse primeiro filme recebeu um remake em 2006, no filme 26 intitulado Nobita’s Dinosaur 2006. Mas foi em 2020 que uma “nova versão” do primeiro filme foi lançada: o filme 40 Doraemon: Nobita’s New Dinossaur é, ao mesmo tempo, releitura e homenagem ao primeiro filme da franquia. Apesar de ter a mesma premissa, difere do remake de 2006 que basicamente apenas atualizou a animação e estética, indo além e apresentando uma nova história. O foco da análise é justamente sobre essa nova versão, bem como suas similaridades e diferenças em relação ao filme de 1980.

Análise de Doraemon Filme 40: Nobita’s New Dinosaur

Nobita’s Dinosaur (1980) / Nobita’s New Dinosaur (2020)

Como mencionado, as premissas de ambos filmes de Nobita’s Dinosaur são basicamente as mesmas: o protagonista acaba de alguma forma encontrando um ovo de dinossauro na sua vizinhança e o leva para casa. Uma hora o ovo choca, nasce um dinossauro e Nobita faz questão de cuidar da criatura com a ajuda de Doraemon até ela crescer o suficiente para que ele possa mostrar aos seus amigos e impressioná-los. No primeiro filme, Nobita sai desesperadamente em busca de algum fóssil de dinossauro (por fazer uma aposta com seus colegas) e acaba encontrando um ovo ao procurar por fósseis na vizinhança; na versão moderna do filme, ele está com uma equipe de pesquisa de arqueologia nos arredores da cidade e acaba encontrando sem querer algo que aparenta ser um ovo envolto de pedras.

Enquanto no primeiro filme Nobita encontra um ovo de futabasaurus e tem comportamento um pouco mais travesso e desobediente, fazendo de tudo para que seus pais não percebam o que está em seu quarto, na nova versão ele acaba cuidando de dois dinossauros de uma raça até então desconhecida, um casal de filhotes que nasceu junto no mesmo ovo — ele também tenta esconder de sua família, mas isso é colocado de forma bem mais sutil. O filme 40 de Doraemon, além de ter recursos modernos de animação, também evidencia um pouco dessa leve mudança de personalidade que o protagonista da série passou ao longo de todo esse tempo. Isso fica claro ao colocar os dois filmes lado a lado, mas também é perceptível logo no início que há outras mudanças mais substanciais na narrativa que fazem com que os dois filmes se distingam bastante apesar do mesmo ponto de partida.

Sequência animada por Etsuko Kawano (河野悦子)

Um dos pontos mais altos da franquia Doraemon há algum tempo é o fato dos produtores do estúdio Shin Ei estarem sempre atentos aos seus artistas e à liberdade criativa. Muitos bons diretores já passaram pela franquia para animar seus filmes ou mesmo temporadas da sua longa série; não seria diferente com Nobita’s New Dinosaur, que reúne uma equipe incrível e invejável que soube muito bem aproveitar o potencial do imaginário infantil que a série possibilita.

A começar pelo diretor Imai Kazuaki, que já fizera um ótimo trabalho dirigindo o filme 38: Doraemon: Nobita’s Treasure Island, praticamente tão bem animado e criativo quanto o New Dinosaur. Ele conseguiu em ambas as produções trazer artistas contemporâneos e até bem jovens na cena do anime para ajustar e modernizar o cenário da era Showa em que a história se passa. Enquanto no filme 38 Yoshimichi Kameda (muito conhecido atualmente por conta de Mob Psycho 100, apesar de já ter uma carreira consolidada como um dos principais artistas de anime das últimas duas décadas) é o designer de personagens e supervisor de animação, o filme 40 de Nobita’s New Dinosaur conta com Takashi Kojima encarregado dessas mesmas funções, uma alma jovem perfeita para refrescar novamente os traços da franquia nessa nova animação. Seu trabalho em Flip Flappers ou mais recentemente em Heike Monogatari e One Piece são provas da sua capacidade de trabalhar com efeitos (2DFX), expressões e estilização de design — isso tudo foi colocado em prática e foi certeiro em Doraemon.

Cenas de Takashi Kojima em algumas das séries em que, além de animar, também participou como diretor de animação e/ou designer de personagens. Respectivamente: Shigatsu wa Kimi no Uso, Heike Monogatari, Flip Flappers e One Piece.

Um dos maiores pontos positivos de animar Doraemon é que seus personagens são proporcionados de formas simples, o que, na prática, significa maior facilidade para os animadores movê-los e criarem nuances com um estilo de animação próprio. Esse é um dos fatores que mais contribuem para que grandes artistas queiram se envolver de alguma forma com a franquia e explorar as possibilidades que a animação oferece para o seu conceito. É por isso que a incrível lista de animadores deste filme inclui Arifumi Imai, Keiichiro Watanabe, Takeshi Maenami, Naoki Kobayashi, Kiyotaka Oshiyama e muito mais. Animadores consagrados e jovens webgen trabalharam juntos para fazer de Nobita’s New Dinosaur o mais alto padrão da animação para o cinema japonês moderno (para obras que não são meramente de ação). Afinal, esse é o tipo de franquia respeitada por já ter criado tendências de animação para comédias voltadas ao público infantil, homenageada constantemente e de que muitos artistas querem fazer parte.

O longa carrega essa estética e designs simples que caracterizaram a franquia em todos esses anos, mas a arte de se reinventar através do meio criativo que apenas a mídia animada permite é o que torna cada nova experiência tão refrescante. A criatividade é um dos pilares de Doraemon e seus filmes, e um ótimo exemplo de como isso é possibilitado é a engenhosidade sem limites que a utilização das variadas bugigangas de Doraemon oferece. Os aparelhos que o gato azul tira do seu “bolso” permitem uma gama de novas dinâmicas para a história e animação per si.

As cenas abaixo são bons exemplos: Doraemon possui um aparelho que consegue diminuir tudo, um diorama para “criar animais” que é igualmente manipulável e uma câmera que consegue fazer uma cópia autêntica de tudo que aponta. Com isso em mãos, eles criam um ambiente que se assemelha a um parque ao ar livre dentro da maquete, com árvores, brinquedos e um rio com vários peixes. A maneira como a maquete é utilizada para Nobita e Doraemon criarem novos cenários (de maneira literal) a fim de conseguirem espaço para cuidar e brincar com seus dinossauros de estimação permite aos animadores criarem um ambiente novo em que os personagens estão reduzidos dentro de uma maquete no quarto do protagonista. É um cenário que passa essa sensação de liberdade e imensidão, apesar de, na verdade, ser um espaço tão pequeno em perspectiva.

Doraemon tem ainda um aparelho complementar que lhe permite controlar “fenômenos naturais” dentro do diorama, como alterar o clima e até criar peixes para o rio.
Perceba como as linhas de velocidade colaboram para a sensação de amplitude e liberdade dos dinossauros brincando pela maquete.

A história avança enquanto Nobita cria seus dinossauros escondidos em casa até que eles acabam ficando grandes e inconvenientes o suficiente para Doraemon sugerir viajar até o período cretáceo, por um de seus aparelhos, para que os filhotes possam viver com outros de sua espécie. É a partir deste ponto que o filme assume uma nova etapa temática de aventura. E apesar do antigo filme também ter uma aventura pela era dos dinossauros, os desenvolvimentos e desdobramentos são ligeiramente diferentes.

Seguindo agora com spoilers da história, no filme Nobita’s Dinosaur de 1980 o enfoque da aventura está nas crianças indo da América do Norte à área onde posteriormente seria a península japonesa, na região correta em que a espécie do dinossauro de Nobita vive. Durante a aventura, surgem caçadores de dinossauros querendo o filhote de Nobita, e, ao mesmo tempo, eles ameaçam a existência da humanidade devido a possíveis alterações na linha do tempo por interferir naquela era. A narrativa se prende um pouco mais nessa trama de deter os vilões enquanto as crianças de alguma forma ainda precisam chegar ao local correto para deixar Piisuke (o dinossauro de Nobita no antigo filme) com outros da sua espécie.

Em Nobita’s New Dinosaur, a aventura acontece com as crianças procurando pelo local onde reside a espécie dos dinossauros de Nobita para que os filhotes possam viver no ambiente ideal, mas essa jornada prepara o terreno para desenvolvimentos paralelos de Nobita e um dos filhotes de dinossauro. O protagonista enfrenta dificuldades na escola e mais especificamente em fazer exercícios de ginástica; um dos seus “pets” dinossauro, o filhote amarelo Kyuu, ainda não consegue voar como sua irmã e acaba sofrendo pela sua desvantagem natural ao decorrer do filme.

Divertidas cenas da aventura das crianças, possibilitadas pelas dinâmicas que os aparelhos de Doraemon proporcionam para como se envolvem com os dinossauros.

O jovem dinossauro Kyuu não consegue se misturar com os outros de sua espécie, ele não é aceito devido à sua incapacidade temporária de fazer o mesmo que outros, e essa alegoria é brevemente estendida para o protagonista em relação aos seus colegas de classe nas cenas mostradas logo no início do filme, quando as outras crianças da sala riem de Nobita por não conseguir completar os exercícios. Uma conexão dramatúrgica que vincula os dois personagens é estabelecida para ser desenvolvida pelos dois personagens no segundo ato do filme enquanto a aventura na era dos dinossauros continua.

Já o ato final do filme é um tanto evidente, afinal os dinossauros foram extintos e Nobita obviamente não conseguiria retornar para a época atual com os filhotes — o processo do filme para chegar neste final é o que faz valer a pena, principalmente quando eles descobrem que estão exatamente no dia em que começará a extinção em massa. A aventura que começa de maneira divertida mostrando as interações de Nobita, Doraemon e seus colegas com os dinossauros, transforma-se em um espetáculo de imagens e um desastre inevitável, enquanto um desafio final de superação ocorre. Nobita se enxerga na dificuldade de Kyuu e ambos se esforçam para conseguirem praticar e melhorar naquilo em que estavam falhando.

Nesse ato final, a patrulha do tempo aparece para avisar que eles precisam deixar logo o período cretáceo e que o evento do fim dos dinossauros não pode ser alterado por mais que Nobita queira salvar seus novos amigos. O espetáculo visual da catástrofe que acaba com os dinossauros toma conta da tela enquanto os conflitos são resolvidos e Doraemon intervém de sua maneira mágica para amenizar o impacto que é a extinção dos dinossauros presenciada pelos personagens ao (pelo menos temporariamente) salvar os dinossauros de Nobita e alguns outros quando os teletransportam para outro canto da região. 

O clímax do filme é satisfatório, pois fecha muito bem o ciclo de aventura e os desenvolvimentos propostos para os personagens, além do alto empenho de sua animação ao fazer jus ao potencial imaginativo da série em sequências impressionantes. É uma animada experiência com etapas e cargas dramáticas bem construídas se você se permite aproveitar o tom cômico de uma história infantil tão rica em imaginação.

Sequência animada por Takeshi Maenami (前並武志)

Não é a toa que Doraemon é um dos maiores sucessos infantis do Japão até hoje, os artistas por trás de suas produções possuem brilho e dão a atenção necessária para desenvolver suas ideias e explorar as infinitas possibilidades que a obra permite na mídia animada, mantendo vivo o legado de uma franquia tão duradoura. Nobita’s New Dinosaur é um ótimo filme, um dos melhores da franquia sem dúvida pelos seus aspectos gerais, uma ótima porta de entrada para Doraemon inclusive, mas, ao mesmo tempo, já é fácil dizer atualmente que sua qualidade enquanto animação é praticamente o padrão típico para um filme moderno da franquia.


[1] — O produtor Sankichiru Kosube conta isso e muito mais sobre sua longínqua relação com a franquia Doraemon em Letter of appreciation for “Doraemon”, publicado em 2014 no Japão.


Revisão: Leo Medeiros


Agradecimento especial aos apoiadores:

Victor Yano

Apolo Dionísio

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