My Broken Mariko: uma aula em quatro capítulos | Review

My Broken Mariko mangá JBC

O review abaixo possui sim alguns spoilers, MAS considere a leitura mesmo que você ainda não tenha lido o mangá. Eu tentei ao máximo não estragar a experiência de quem não conhece a obra, dando descrições equilibradas, nem tão genéricas nem tão abrangentes. Este é, afinal, um texto para quem já leu, mas também um convite para os que ainda não conhecem My Broken Mariko.

Além disso, vale avisar que, embora não tenham descrições detalhadas de nada ou que a abordagem do mangá sobre seu complicado tema seja boa (e o texto é sobre isso, aliás), o texto e a história ainda podem ser um gatilho para temas como abuso e suicídio. Tenha cuidado.

Dito isso, vamos nessa!

REVIEW

Quando se fala em violência contra a mulher na ficção, muito marcada pela violência sexual, esbarramos muitas vezes em questionamentos. Essa é uma tendência relativamente recente, mas pertinente uma vez que de fato existem problemas em como diretores e escritores (homens em especial, mas também mulheres, ambos fadados a reproduzir certas decisões estéticas) abordam isso. No meu ver, há dois principais problemas, não exclusivos das mídias anime e mangá, mas presentes em narrativas num geral: o sadismo e a erotização, isto é, ou o estupro/abuso tem o seu devido peso, mas é desnecessariamente gráfico ou longo demais, ou ele busca, mesmo deixando claro se tratar de uma violência, erotizar o corpo feminino para o consumidor (masculino, principalmente). Como exemplo do primeiro, citaria, de fora do mangá/anime, o estupro de “Irreversível” (ou “O Tempo Destrói Tudo”) do diretor francês Gaspar Noé; do segundo, cito os já conhecidos e exaustivamente discutidos Goblin Slayer e Berserk.

My Broken Mariko cap 1

Em “My Broken Mariko”, a estreia da autora Waka Hirako como mangaká, temos uma história de abuso, na minha opinião, de tratamento ideal. Na trama, acompanhamos a personagem Shiino Tomoyo a partir da notícia do suicídio de sua amiga, Mariko. Ela é pega completamente de surpresa e nós vemos um desenho gradual de suas reações, desde a descrença à raiva e tristeza. A história, no entanto, engrena mesmo quando Tomoyo decide pegar as cinzas de sua amiga na casa de sua família e partir em uma jornada para lidar com o luto. É aí que vamos desvendar a relação das duas e o terrível passado de Mariko que a levou a sua drástica decisão.

A questão é que, embora as páginas desse mangá estejam repletas de uma contumaz e incisiva violência, em nenhum momento a narrativa apela para uma amostragem física dela. O que vemos são os vestígios materiais das agressões: seja mostrando um ou outro ferimento ou enquadrando o ambiente de desordem da casa onde ocorre a violência ou através de cartas escritas por Mariko, seja – e muito mais fundamentalmente – através das atitudes e discursos da personagem.

Além disso, preocupada com a totalidade do alcance da violência, a autora não se limita à dor inescapável da vítima. Ela também aborda o quão complicado é estar de fora buscando entender essa dor e ser de alguma maneira um suporte emocional eficiente. Por isso Tomoyo é a protagonista. Como amiga, ela quer entender e ajudar Mariko, porém ela nem sempre consegue, e sua impotência é real e tocante.

My Broken Mariko história

My Broken Mariko manga
Tomoyo vê a si mesma numa posição materna em relação à Mariko. Mora aí, talvez, a enormidade do seu sentimento de responsabilidade para com a amiga.

Vemos que essas violências são de longa data. Ainda adolescentes, Mariko frequenta a escola com ferimentos horríveis, enquanto Tomoyo tenta ter uma amizade normal com a amiga. Elas conversam sobre fugir para o mar, têm sua relação interrompida por intervenções do pai abusivo de Mariko, Tomoyo tenta intervir nessa relação abusiva… Ademais, é visível que Mariko, graças aos abusos sofridos, desenvolveu mecanismos muito delicados de se lidar. Ela quase que busca a violência porque é desta maneira que ela ganha a atenção de Tomoyo. É masoquista, sádico, mas é uma defesa contra a solidão. O medo de perder Tomoyo é muito grande, e, claro, para Tomoyo, lidar com isso é estressante e também a machuca muito. Isso nos mostra como uma pessoa numa situação dessas, sem apoio, pode se tornar também nociva mesmo que não seja intencionalmente. É impossível culpar Mariko ou cobrar mais de Tomoyo, ainda mais sabendo o quão jovens elas tiveram de lidar com isso.

Eu confesso que gostaria bastante de ver um aprofundamento sobre como a escola lidava com uma aluna que aparecia machucada com frequência. Seria um ponto muito interessante de se pensar, pois o que essa história da a entender é que não houve qualquer apoio para essas duas além delas mesmo. Eis aí talvez o grande vilão… inclusive, uma passagem interessante logo no começo do mangá mostra que um colega de trabalho de Tomoyo simplesmente desdenha da tristeza da personagem como se o suicídio de uma amiga não fosse difícil de encarar. Nem mesmo na pior das feridas que essa violência poderia causar, existe apoio emocional para Tomoyo – Mariko já nem sequer está mais viva para conseguir algum.

My Broken Mariko manga online

A viagem de Tomoyo, fugindo da cidade grande e do trabalho, acaba sendo uma solução quase inevitável. Sem acolhimento no trabalho ou de familiares e, agora, sem sua melhor amiga, ela se vê sem outro caminho. Durante a viagem, há vários acessos de fúria da personagem, enquanto a autora intercala entre linhas sinuosas e linhas agudas para transmitir e dar poder à raiva, aliado ao cigarro, à fumaça que paira os quadros, como companhia aprisionadora e insistente. As memórias de sua adolescência com Mariko fluem, despejando e desenhando intermitentemente o absurdo do que elas viviam para nós.

Não acaba aí, entretanto, a qualidade mor de sua abordagem. Waka Hirako alcança o ápice de sua escrita e a libertação catártica de Tomoyo a partir de um texto brilhante. Num retorno ao passado, vemos Mariko evocar falas direcionadas a ela por seu pai: “‘Eu te espanquei porque você estava sendo irritante’. ‘Eu te espanquei porque você não fez o que eu te disse para fazer.’ ‘Eu saltei em cima de você porque você me seduziu.’ ‘Eu te deixei porque você estava sendo irritante e carente.'” Ela, então, complementa:

My Broken Mariko tema

E então, de volta ao presente, a resposta de Tomoyo a essa lembrança vem alguns quadros depois, da maneira mais bonita e acolhedora que poderia um dia ter feito com sua amiga, imaginando um gesto tão afetuoso quanto, drasticamente potencializado pela arte visceral e palavrenta de Hirako:

My Broken Mariko tema cap 4

É isso. Simplesmente uma síntese perfeita do que significa um abusador e ser abusado. O abusador manipula informações e argumentos ao seu bel prazer, se justificando apenas com covardia conveniente diante de uma vítima confusa e impotente; neste caso, Mariko em sua infância, o que permitiu que o abuso se perpetuasse, aliado a uma falta de apoio imensurável.

Por outro lado, Tomoyo em seu emocionado discurso acerta pungentemente na fraqueza de um abusador, verdadeiramente alguém inseguro e ignorante o suficiente para reverter suas frustrações em violência. Quem não cuida de si, não vai cuidar bem do outro; não será necessariamente violento, mas é preciso entender que o abusador nem sempre vai ser um psicopata, inerentemente mau. A violência e o abuso também são recurso, de defesa, de poder, e, como mangá traz desde o início, pode vir de dentro da sua própria casa (e as justificativas trazidas por Mariko são frases bem conhecidas por nós). O abusador, nessa história, nada mais é do que alguém que não se responsabiliza por si e projeta isso no outro – isso é “colocar todas as suas fraquezas sobre você e te culpar por isso”.

Dessa maneira, My Broken Mariko oferece uma aula de abordagem de violência: consegue ser forte textual e visualmente, sem apelos extremos, mas através dos vestígios físicos e psicológicos em um universo negligente, mostrando entendimento profundo do tema sobre o qual se debruça. Uma vez que ela compreende o que sustenta o abuso e para onde ele estende seus terríveis tentáculos, a obra, em míseros quatro capítulos, esmiúça seu tópico central por diferentes vieses, trazendo à tona suas verdadeiras e terríveis consequências. Somos constantemente provocados a nos sensibilizar e refletir sobre as vítimas, ao passo em que a obra também não poupa palavras ou esforços. Uma dose equilibrada de carinho e soco no estômago.

My Broken Mariko tema cap 1
Há de se destacar a capacidade de Waka Hirako de poluir seus quadros catárticos e enquadrar as mais turbulentas emoções que ecoam por esta história.

É realmente interessante parar pra pensar como as características possessivas desenvolvidas por Mariko são uma extensão preocupante do recurso da violência – novamente, mesmo que no fim das contas ela só esteja com medo de ser abandonada diante de suas circunstâncias asfixiantes. Sem apoio, não há muito que duas adolescentes possam fazer e isso gera um ciclo de violência e de frustrações e perdas.

Se essa é A forma pela qual isso deve ser abordado, sinceramente não sei. Porém, essa foi a que mais me satisfez até agora e me pareceu a mais responsável: sem erotização, violência excessiva que desconsidera um consumidor-vítima, nem recorrer a um uso banal como motivação para um personagem terceiro, mais importante do que a violência em si – comumente, um homem que sairá em busca de vingança pela “desonra” que sofreu.

E por mais que eu tenha dado muito de mim nesse texto, eu me contive afim de evitar spoilers e mal encostei no poder genuíno da narrativa de Waka Hirako (se eu não tivesse me contido, também, não conseguiria de qualquer forma). Estou falando de algo que me emocionou profundamente e é, hoje, um dos meus mangás favoritos. My Broken Mariko, senhoras e senhores, é uma estreia triunfante, de tirar o fôlego. É, repito, uma aula em quatro capítulos.

My Broken Mariko final

Aqui no Brasil, “My Broken Mariko” já foi anunciado oficialmente pela editora JBC. Eu, com toda certeza, vou garantir o meu quando lançar.


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