The Summit of the Gods e a evocação da natureza

The Summit of the Gods é um filme animado francês, disponível na Netflix, que adapta o mangá Kamigami no Itadaki de Jiro Taniguchi — o poeta do mangá — e Baku Yumemakura, publicado em 2000 no Japão. O filme traz uma grande meditação à natureza sobre os porquês de alguns alpinistas se desafiarem cada vez mais em uma jornada perigosa de escalar o Everest, explorando o sentimento de estar vivo ao enfrentar situações que podem ser fatais.

Trata-se de uma história ambientada em 1994, que se inicia quando o fotojornalista japonês Fukamachi Makoto, e uma equipe de alpinismo que ele está cobrindo, são impedidos de chegar ao topo do Monte Everest devido ao mau tempo. Frustrado em um bar por perder a oportunidade, Fukamachi é abordado por uma pessoa que quer vender-lhe o que seria supostamente a câmera perdida de George Mallory e Andrew Irvine, alpinistas reais que morreram tentando alcançar o topo do Everest em 1924.

Inicialmente, Fukamachi não acredita e sequer dá muita atenção ao homem, mas ele vê em um beco, logo em seguida, a mesma pessoa que ofereceu a câmera falando com um alpinista há muito tempo desaparecido, Habu Jôji, que pega a câmera e some. Isso faz com que Fukamachi inicie uma busca obsessiva para descobrir o que aconteceu com Habu na última década e o que ele está fazendo agora, além de saber a verdade sobre a câmera — e se Mallory e Irvine de fato conseguiram alcançar o topo da montanha no passado.

A narrativa inicialmente se desdobra como um mistério, mostrando Fukamachi fazendo de tudo para ir atrás da câmera perdida e descobrindo mais sobre Habu, com os acontecimentos saltando entre duas linhas do tempo: o presente de Fukamachi, investigando a história de Habu e seu possível paradeiro, e o passado do alpinista desaparecido, mostrando seus desafios, sua personalidade dura e alguns dos traumas que sofrera em decorrência de certos acontecimentos. Dessa forma, alguns fundamentos essenciais da história (os fundamentos da escalada ao Everest e a importância da câmera) são expostos e colocados em contexto à medida que cresce a obsessão de Fukamachi em descobrir a verdade das histórias de Habu e da dupla que morreu tentando escalar a montanha no passado; o fotógrafo começa a se questionar sobre a obsessão de Habu, apresentada nos flashbacks, em perseguir escaladas cada vez mais desafiadoras e perigosas, enquanto Fukamachi nota que ele próprio está obcecado em ir atrás disso tudo.

Como diz o HollywoodPorter, cada vez que Fukamachi vasculha arquivos de sua investigação, ou conduz uma entrevista com alguém que teve contato com Habu, um retrato mais claro do misterioso montanhista emerge e seus paralelos com a vida do protagonista se tornam mais evidentes. Ambos estão procurando um significado em seus trabalhos. Para Habu, escalar é como respirar. Ele passou seus anos mais ativos buscando um mínimo de reconhecimento por suas habilidades, mas nunca deu certo. O sucesso o iludiu e ele viu algumas pessoas, que não eram tão boas quanto ele, vencerem e receberam mais destaque.

The Summit of Gods não está preocupado necessariamente em justificar qualquer paixão específica, afinal, às vezes, o motivo pelo qual somos atraídos por algo não está relacionado ao seu significado intrínseco e sim ao que se é feito a respeito. O filme não quer falar sobre uma resposta espiritual concreta que serve de motivação para conquistar o Everest, ou o motivo de Fukamachi ficar completamente obcecado em investigar e descobrir mais sobre Habu; mas sim concentra-se no que eles fazem no caminho, são questionamentos que buscam compreender os motivos que levam pessoas a terem esse tipo objetivo e comportamento. Por qual motivo aqueles homens são atraídos a escalar montanhas em condições tão difíceis e perigosas?

Ao alcançar o objetivo de conseguir escalar uma montanha, os alpinistas tendem a buscar por um novo, seja uma montanha mais alta ou um desafio mais extremo, como escalar sozinho ou sem oxigênio; alguns se tornam viciados nisso e só param quando a vida não der mais escolhas. A jornada é mais importante do que o destino. O filme capta reflexões sobre as razões de se querer cada vez mais, os desafios e os picos que se tornam cada vez mais altos; muito embora no contexto da animação seja sobre os desafios de escalar lugares em que o ser humano não foi feito para sobreviver, a alegoria serve para basicamente qualquer contexto na vida: ansiar cada vez mais por determinados objetivos (normalmente muito desafiadores) pela simples razão de se sentir vivo durante a jornada. O prêmio de escalar o Everest não está necessariamente em alcançar o pico e aproveitar a vista, mas sim no processo que foi necessário para chegar lá. The Summit of the Gods não tenta vender essa questão como um ideal glamoroso ou romantizado, muito pelo contrário, mostra a todo momento uma ambiguidade sobre a (falta de) racionalidade por trás disso e o que instiga as pessoas.

Um dos objetivos, e também conquistas, do filme é conseguir representar e causar a ansiedade pela imersão que a natureza evoca a cada momento em que os personagens estão se desafiando ao fazer uma escalada; cenas de tirar o fôlego se misturam com a contemplação e os questionamentos sobre porque fazer aquilo. Esse longa-metragem animado é uma das melhores tentativas de representar os obstáculos e a ansiedade de se vivenciar essas situações de risco, algo pelo qual escaladores realmente passam e que a maioria das pessoas nunca vai experimentar; o estresse psicológico nas situações mais difíceis durante a escalada e as diversas variáveis a serem suportadas durante a jornada, como a mudança de clima, o gelo escorregadio, os ventos fortes e as avalanches que podem surgir a qualquer momento. O mérito dessa representação está na produção do filme.

O filme foi dirigido pelo animador veterano Patrick Imbert. Ele buscou um viés artístico durante alguns anos para utilizar como norte nessa adaptação — o resultado disso foi guiar a adaptação direcionada principalmente as questões já citadas sobre os motivos que levam as pessoas a buscarem desafios perigosos. A partir disso, essa animação híbrida, cheia de detalhes que contribuíram à imersão em cada escalada, foi produzida.

 

A produção fez um filme que valoriza o silêncio e o espaço, mais especificamente a contemplação e a evocação da natureza em toda sua grandeza e onipotência. O cenário do Himalaia é retratado em vistas panorâmicas e composições belíssimas sob a direção de arte de David Coquart-Dassault, cheios de cuidados em efeitos para apresentar nevascas e avalanches convincentes através de suas texturas e storyboard. Como mostra o IndieWire, o diretor Imbert e os produtores convidaram especialistas em alpinismo para ajudá-los a alcançar a autenticidade em cada detalhe; traduziram esses esforços para a animação 2D (com algumas utilizações de 3D) e com designs de personagens simplificados em relação aos originais de Taniguchi. Cada detalhe em relação à prática do esporte e o contato com a natureza, como o traçado do vento, a neve e a respiração ofegante, foram meticulosamente trabalhados. Os detalhes garantem que o público sinta cada passo em falso, cada corda esgarçada, cada apoio que se desprende e deixa o alpinista vulnerável, além de toda sobrecarga física que os alpinistas sofrem nessas situações.

 

Toda a representação visual das paisagens naturais é bem detalhada e colabora com a temática. As faces rochosas gigantescas são onipotentes e toda a aura avassaladora em volta ajuda a vender as emoções dos alpinistas e suas obsessões pelo Everest.

Seguindo com os eventos do filme, Fukamachi eventualmente descobre o paradeiro de Habu e vai atrás dele, mas o alpinista não quer ser incomodado. A persistência de Fukamachi em querer saber mais sobre ele faz com que Habu acabe cedendo, concordando em ser documentado por fotografias de Fukamachi enquanto faz sua escalada — desde que não conversem, interviram e ajudem um ao outro no processo.

A princípio, Habu não queria que Fukamachi o seguisse, mas ele pôde perceber que Fukamachi tem uma verdadeira obsessão em segui-lo. Os momentos dos dois juntos, antes da escalada começar, servem para mostrar que a resposta que Fukamachi sempre procurou obter, sobre os motivos que levam Habu a querer se aventurar em uma escalada tão perigosa — em que as chances de voltar vivo são baixas — é a mesma resposta em relação à obsessão dele em saber mais sobre o caso de Habu: não é uma conclusão pronta ou uma justificativa racional.

Fukamachi está tão obstinado quanto Habu, propenso a deixar outras pessoas para trás a fim de perseguir essa sua fixação e tentar obter respostas. Eles são muito parecidos, mesmo que seus objetivos sejam diferentes. Ambos enxergam as dificuldades impostas, mas não conseguem encontrar dentro de si forças para voltar ou desistir, não importa o quão insatisfatório o resultado seja ao final. É simplesmente um impulso que não dá para se racionalizar facilmente, é uma vontade internalizada de perseguir algo e se sentir vivo ao experimentar o percurso. De novo, não é um ideal glamoroso, a reflexão é justamente sobre tentar compreender esse sentimento inerente (um desafio mortal no caso de Habu) que de alguma forma eles não conseguem viver sem. É algo que vai além da própria escalada ao topo da montanha.

E assim Habu tenta chegar ao topo do Everest enquanto Fukamachi o segue à distância com sua câmera. Ele não deve se comunicar ou intervir com o alpinista de forma alguma, pois isso violaria as regras que compõem o que é considerado uma escalada individual de forma oficial. Toda a sequência que acompanha essa escalada final ao Everest é espetacular.

A direção, e a execução em geral, se destaca muito pela tamanha capacidade de imersão nessa aventura final. A dor desimpedida, o estresse, o sufoco, o limite e os momentos de introspecção nos rostos de Habu e Fukamachi são muito bem expressos e animados; as composições fotorrealísticas e a manipulação da filmagem das cenas por ângulos específicos intensificam a apresentação da experiência; os percalços dos dois são muito bem tratados e a todo momento existe uma sensação de que eles estão contra o tempo, afinal, o descuido de alguns minutos no caminho pode comprometer suas vidas.

Quanto mais alto os dois vão, mais reflexivo o filme se torna a partir da fascinante combinação de uma escalada perigosa e a contemplação silenciosa, enquanto a trilha sonora de Amine Bouhafa faz com que cada passo rumo ao topo pareça uma proposição espiritual. Apesar da ambição de Fukamachi, sua habilidade é inferior e isso o faz pensar sobre a situação. Os dois são pessoas de almas insaciáveis ​​e insatisfatórias, o caminho em que se encontram (uma metáfora a própria escalada da montanha neste caso) é o porquê. É por aquele momento. Morrer tentando alcançar o topo é, ao mesmo tempo, enlouquecedor e fascinante.

The Summit of the Gods é um filme que tenta capturar a realidade da dura experiência dos alpinistas, tendo sucesso em sua premissa pelo cuidado de sua direção e imersão ao gigante da natureza. Porém, mais do que isso, é um filme contemplativo que tenta transcender as razões lógicas de tentar escalar as montanhas mais altas ou perigosas do mundo (ou morrer tentando), para trazer um significado muito mais íntimo e melancólico — retratando essa busca de forma reflexiva, na linha tênue a paixão para perseguir uma causa e algo próximo à loucura.

O filme se inicia como um mistério, mas gradualmente extingue os conflitos para prosseguir a um ato final que se resume a um espetáculo silencioso seguindo um alpinista e um fotojornalista que o acompanha, distantes um do outro e do próprio espectador, em direção ao topo da montanha. Como diz o já citado artigo da IndieWire, são nessas passagens mais contemplativas que o filme atinge seu auge, um êxtase exuberante pela animação e o que suas ferramentas e técnicas possibilitam. A combinação disso tudo resulta em uma experiência quase subliminar. O mundo é lógico, mas nem sempre.


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Victor Yano

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