Divagações sobre Sonny Boy: Temáticas, Nietzsche e mais

Sonny Boy é o anime original de Shingo Natsume pelo estúdio Madhouse que estreou na temporada de julho de 2021, despertando o interesse de muitos pela sua identidade visual única logo à primeira vista. Seus 12 episódios foram bastante discutidos por envolver uma história de crescimento pessoal ímpar, cheia de simbolismos e metáforas sobre sociedade e filosofia, enquanto jovens com poderes despertados a partir de suas condições psicológicas desbravam mundos fantasiosos sob uma execução de estilo de direção austera e impressionista. O jeito de guiar sua narrativa e explorar diversas temáticas e seus personagens levantou questões sobre sua abordagem, sobre ser um “desenho desnecessariamente difícil de entender” ou alguma variante disso devido à natureza do projeto, que é, sobretudo, uma animação experimental.

A experiência em relação a sua jornada de 12 episódios proporcionou a mim uma necessidade de registrar alguns dos meus pensamentos a respeito, e aqui estamos. Este texto não se trata de uma análise a fundo do anime e todos seus elementos em cada episódio, tampouco uma tentativa de “desmistificar” ou “explicar” a série em sua totalidade; trata-se de apanhados de pensamentos originados de anotações feitas conforme assistia aos episódios, além de algumas reflexões gerais sobre a experiência. Sendo assim, o texto vai pairar sobre todos os episódios, hora mais e hora menos aprofundado, conforme as temáticas que tive mais inquietação para comentar a respeito. O intuito, no fim das contas, é que neste texto fiquem registradas minhas reflexões gerais sobre alguns conceitos e o peso desta série enquanto arte. São apenas meus pontos de vista e interpretações para certos pontos e não as “verdadeiras respostas” para o que a série apresenta. Antes disso, no entanto, é importante falar do contexto de Sonny Boy.

Contexto

Como o Kevin do Sakuga Booru demonstrou no seu ótimo artigo que aborda aspectos gerais da produção do anime, Shingo Natsume conseguiu um projeto com cheque em branco para realizar uma produção de arte orientada à animação e conduzir sua execução explorando e extrapolando alguns limites da forma de trabalhar tradicionalmente nessa mídia: o que significa que mostrar sua visão de mundo, trabalhar conceitos e mensagens (de forma até egoísta) através do audiovisual são os maiores primores da série. É muito interessante notar, inclusive, que essa série não possui um diretor-chefe de animação, Natsume confiou a cada diretor de episódio a liberdade para criarem suas próprias composições e expressões artísticas. Sonny Boy é mais sobre isso do que sobre uma estrutura de dramaturgia padrão, um drama humano ou algo “dentro da caixinha”, como se esperaria em algum caso normal e, sendo assim, é no mínimo injusto tentar observá-lo e julgá-lo como se fosse de “dentro da caixinha”. Talvez seja um dos melhores exemplos recentes do uso do don’t tell me show me em grande escala (não tem monólogos, afinal), pois sua execução está em uma categoria própria — Shingo Natsume usa imagens animadas para explorar possibilidades imaginárias e psicológicas; esse é possivelmente o motivo pelo qual muitos tenham julgado que alguns de seus momentos não são condizentes ou então muito abertos à interpretação, sendo que… é sobre isso, é uma obra sobre observar, refletir e ligar os pontos.

Ainda assim, também não é o caso de ser uma série de apenas apelos visuais desenvolvidos por seu autor e despreocupada com o que seria “o mínimo” de uma estrutura usual: a obra tem um nível de organização e de planejamento grandes o suficiente para se observar que tudo mostrado em tela tem uma razão, por mais que seja necessário ir em busca dos significados — há prenúncios desde seu primeiro episódio para eventos que ocorrem ao longo ou ao final da série. O cerne estrutural temático da série é simples, na verdade. É uma história sobre crescimento pessoal de jovens no período de transição entre a escola e a vida adulta, sendo a formatura a metáfora mais inerente e evidente nesse sentido, além de que Nagara “ativa seu poder” para levar todos ao “mundo à deriva” logo após sair da sala dos professores, naquele habitual processo de aconselhamento sobre o futuro dos estudantes — e, a partir disso, ele teletransporta todos para o mundo à deriva como escapismo literal de sua realidade, enquanto outros personagens também despertam alguma habilidade por consequência do mesmo problema. Apesar dessa perspectiva macro clara na série, simples e com estrutura coerente do início ao fim, que compartilha alguns dos preceitos da Jornada do Herói descritos no monomito de Campbell do seu próprio jeito, a obra ainda fala sobre muitas coisas em várias camadas ao longo de seus episódios enquanto apresenta suas experimentações visuais e execução obtusa.

É válido dizer que aproveitar a experiência “Sonny Boy” não demanda a completa compreensão de seus diversos símbolos e metáforas presentes. É plenamente possível assistir ao anime para acompanhar sua apresentação visual ou mesmo pela curiosidade que o roteiro desperta em mostrar, de maneira vaga e gradual, a exploração dos mundos e seus recursos, a situação dos personagens e o que os aguarda em cada episódio. Na verdade, sua estrutura narrativa se beneficia desse formato e isso, por si só, já pode servir como motivo instigante para acompanhar e desvendar a jornada. Natsume confia que seu público consegue acompanhar o ritmo da série, e, mesmo que algum ponto seja perdido, não compromete a experiência e a visão geral, pois segundo o próprio diretor em entrevista ao Febri:

Se você olhar para a história como um todo, parece bastante complicado, mas é simples. Eu queria mostrar o crescimento de Nagara de um menino para um adulto no contexto dos tempos atuais. Existem muitos absurdos no mundo, em que você pode se perguntar “por que é assim?”. Mas isso é verdade no mundo real também, e acho que fui capaz de incorporar motivos físicos, multidimensionalidade e teoria quântica na visão de mundo do anime. Pode parecer um pouco duro, mas acho que “não sei” é a resposta certa para a história.

Entretanto, como já mencionado, a obra dialoga sobre várias temáticas e em várias camadas. O exercício da interpretação é oferecido o tempo todo para quem se dispõe a buscar o que a obra tem mais a oferecer de uma forma um pouco mais intelectual e principalmente filosófica, por mais que não as considerem como verdadeiras em último caso. Sonny Boy é uma expressão artística, é óbvio que para ir a fundo desta forma se faz necessário estar engajado o suficiente com o anime. Esse é um dos pontos que acabam afunilando o seu público, afinal não são todos que estão interessados em consumir arte, principalmente a que de alguma forma se apresenta mais desafiadora, que faz parar, pensar e refletir para, então, preenchê-la com significados alcançados através da experiência. Ainda mais considerando que, em alguns momentos, é realmente importante entender os simbolismos para a compreensão do que está acontecendo. Os eventos às vezes giram em torno disso de forma até literal. Isso é arte abstrata por definição. A priori, Sonny Boy é uma peça de arte plurissignificativa, e não há problema nenhum nisso. 

Outros fatores também podem ser considerados para justificar os motivos de alguém não encarar a série dessa forma, além do motivo óbvio de simplesmente não gostar daquilo proposto. As experiências passadas com obras que propõem narrativas audiovisuais disruptivas, a visão de mundo e arte, e mesmo o momento onde o espectador se encontra ao consumir a série; esses pontos podem refletir no engajamento ou na falta dele. De qualquer forma, é bom evidenciar que isso não é de forma alguma “culpa” dessa animação, enquanto arte, por ter tal proposta, dado que o contexto mostra que essa é legitimamente a expressão de seu criador, mas sim, está relacionado às circunstâncias daqueles que a consomem. E tudo bem, ninguém é obrigado a gostar ou se engajar com tudo.

Seguindo com a estrutura do anime, gosto de pensar nele dividindo-se em duas partes que separam o foco narrativo, embora isso seja apenas para termos ilustrativos: os seis primeiros episódios focam-se tematicamente em abordar muitas questões sobre a sociedade, liberdade, as regras e a falta de lógica em suas nuances subjetivas, o que também levanta pautas sobre autoritarismo, ao que após os episódios seis e sete, que trabalham em conjunto para serem “divisores de água” do núcleo narrativo, o segundo ato da série se trata muito mais de questões ligadas ao indivíduo, existencialismo e nuances da vida humana. Não que seja rigorosamente dessa forma, afinal o contrário também se aplica em algum grau, mas, em termos gerais, talvez facilite pensar no anime em dois atos principais desse modo. Gostaria de falar um pouco mais a respeito dessas partes a seguir.

 

Primeiro ato (sociedade)

Como Natsume disse em sua entrevista sobre o anime ao Anime News Network, concedida enquanto o anime ainda estava com o primeiro ato em exibição (isto é, antes do episódio 7), a obra foca inicialmente em retratar a falta de lógica existente em regras e condicionamentos sociais, o que afeta não só a formação do núcleo da sociedade, neste caso formada pelos alunos, mas também os fenômenos físicos que acontecem na narrativa. Natsume diz que cada ponto de vista subjetivo, não importa qual seja, tem sua própria forma de correção, e ainda completa dizendo que um dos temas da história, que se reflete neste início, é o das crianças que continuam a resistir à falta de lógica que nasce dessa subjetividade.

Sonny Boy fala sobre a natureza da sociedade a partir da instituição escola como referência. Nesse ambiente, os alunos constroem um microcosmo da sociedade, formando grupos de contexto e condições diferentes, seja para o melhor ou para o pior. A narrativa enquadra esses grupos que vão surgindo para ter conversas mais amplas durante esta primeira etapa.

O primeiro episódio, por exemplo, tem um texto fortemente ligado à discussão sobre natureza do poder, demonstrando como estruturas de governos ou de hierarquias são criadas com o monopólio da força e território através dos poderes e penalidades. Há paralelos com discussões de Hobbes e o estado de natureza através de seus diálogos sobre regras absolutas, penalidades e apropriação de território. Nozomi é introduzida, nesse ponto, como “representação anárquica”. Ela não quer participar do sistema criado pelos membros do conselho estudantil, que se enxerga no direito de criar tal estrutura. Ela questiona a falta de lógica na subjetividade dessas leis e imposições, criticando as deficiências do plano de poder de Hoshi, que aparenta ser democrático, mas é autoritário.

Nozomi se nega a fazer parte da autocracia do conselho estudantil e diz que todos têm o direito de ser livres.

Irônico notar, inclusive, que Natsume admitiu, na mesma entrevista, ter criado o personagem Hoshi com a imagem vaga de um estereótipo de político em mente. O que faz sentido ao olhar para o personagem, que tenta criar uma autocracia sob o pressuposto de que assim tudo “daria certo” e que seria o “salvador” — a narrativa é um questionamento sobre o mundo ser justo e sobre pessoas comuns agindo como autoridades ou mesmo deuses.

Nozomi se mostra uma garota “pró liberdade” com essa forte autenticidade, ao contrário do passivo protagonista Nagara, por exemplo, que apenas aceita que “regras são regras”. Essas características e personalidade da garota são consolidadas conforme os episódios passam. Há vários momentos durante todo o anime em que ela fala sobre “seguir adiante”, ser livre, aproveitar a vida, e isso contrasta com as composições da narrativa visual e alguns diálogos que indicam que Nozomi provavelmente sofre de algum problema de saúde, e que seu futuro talvez estivesse predestinado — o que justificaria suas ações e personalidade mais rebelde.

Já com o segundo episódio, há um avanço na construção de um modelo de sociedade. A narrativa explora conceitos de economia básica que, na verdade, funcionam como representação óbvia, além da metáfora para as regras impostas na escola (sociedade, neste contexto), que devem ser obedecidas, transformando-se em senso comum: se alguém tentar pegar algo de outra pessoa sem permissão, será punido, e assim por diante.

A personagem Mizuho é melhor introduzida neste segundo episódio, mostrando que, para escapismo, ela se enche de bens materiais para tentar fugir ou esquecer da realidade (consumismo), por isso ela “mora” em uma espécie de mansão e seu poder é o de criar qualquer coisa material. O sistema capitalista que conhecemos é praticamente fundado nas representações do episódio.

Tanto Nagara quanto a própria Mizuho tentam sair do estado passivo em que se encontram para enfrentar a situação e mudá-la durante os eventos do episódio. Nagara, ao conseguir ajudar o gato de Mizuho, demonstra o primeiro sinal de um gradual desenvolvimento baseado em reflexões próprias que recebe durante toda a série, já que no próprio episódio, durante o flashback da escola, ele ignora uma ave sofrendo em agonia, enquanto, ao decorrer da narrativa, passa a demonstrar interesse em ajudar alguns animais. O desenvolvimento do protagonista será comentado mais adiante.

A partir do terceiro episódio, a obra começa a explorar mais os microcosmos já formados na classe de Nagara. Em decorrência aos eventos anteriores, onde foi estabelecida a economia e forças de trabalho, há uma alusão de que poucos daqueles alunos possuem tempo livre porque estão trabalhando o dia todo. Alguns se isolaram por se sentirem desvalorizados, excluídos e até incapazes de se expressar; alguns pensam que não podem continuar com seus hobbies, dado que precisam passar a maior parte do tempo trabalhando para cumprir as regras econômicas estabelecidas; outros percebem que nem sequer fariam falta caso sumissem. É o que acontece. O episódio terceiro explora, então, o “mundo dos hikkikomoris”, que separa à força aqueles que eram excluídos, desvalorizados ou que se sentiam incapazes de expressar seus sentimentos livremente.

Sonny Boy retrata esse tema sem colocar a culpa sobre esses indivíduos. A cena de Mizuho sugerindo o uso da força ou suborno para tirar os hikkikomoris daquela situação é um bom exemplo, já que Nagara reconhece que isso não fará diferença, afinal o problema não é sobre isso em primeiro lugar, é sistêmico. A narrativa opta por apresentar o tema como uma questão a ser exposta para que a sociedade discuta. É por isso que o conflito se resolve quando puxam, de forma literal, as cortinas daquele mundo onde os isolados estão, a fim de expor seus problemas ao restante e aborde essa questão ao invés confrontar os indivíduos diretamente como se fossem os culpados. A solução apresentada é a inclusão, empatia, liberdade de expressão e a necessidade de que o coletivo (neste caso, de alunos) esteja unido para que conflitos sejam resolvidos e as coisas avancem, o que, por natureza, são alguns dos pontos-chave para o funcionamento da sociedade.

Seguindo na mesma linha de explorar algum corpo social específico, o quarto episódio é também um dos que mais experimenta a forma de executar sua narrativa. Apresenta um meta-comentário sobre a idolatria da humanidade e a mentalidade das ovelhas que podem ser guiadas por alguém influente, contadas através da fábula da Liga dos Macacos, que ainda critica a indústria de esporte (neste caso, beisebol) ou várias outras que se encaixam no mesmo raciocínio.

O personagem Ace, apresentado no episódio, “deu o beisebol” aos macacos para que eles o venerassem, já que no “mundo à deriva” ele não era ninguém conhecido, o que explica seu atrito com Nagara, um “ninguém” que passou a receber atenção neste mundo. A ferramenta usada por Ace para “enxergar” os macacos se trata de uma lanterna que ele aponta para si mesmo. Ele os “enxerga” ao apontar os holofotes sobre si mesmo na tentativa de validar o próprio reconhecimento, visto que é disso que ele depende no mundo real — no mundo em que estão, seu talento não é apreciado.

O conto sobre a Liga dos Macacos mostra como a obsessão com o esporte e a competição leva as pessoas à barbárie ou a algo muito próximo disso. A representação com macacos e sua natureza mais selvagem facilita essa implicação, enquanto também demonstra a tênue linha entre a liberdade e as regras necessárias para o funcionamento de uma sociedade minimamente estruturada.

É irônico como Nozomi elogia o árbitro apresentado no conto da Liga após ouvi-lo, enquanto Cap presume erroneamente que ela se referia ao Blue. Isso reitera todas as características dela apresentadas no episódio inicial em relação aos seus questionamentos sobre liberdade e justiça. A morte do árbitro simboliza que o desejo de vencer competições sempre tende a sobrepujar o desejo de conquistá-las de forma justa, levando à morte do verdadeiro espírito competitivo. Blue desejava dobrar a verdade aos seus caprichos utilizando de sua influência para conquistá-la, enquanto o árbitro representa aquele que assegura “a verdade” ou “a justiça”, muito embora ele não seja quem as cunhe, apenas as garanta. O árbitro assegura as regras da competição, necessárias para proteger o direito de todos e impedir infringimentos. Dessa forma, garante que as engrenagens funcionem e que os privilegiados (isto é, aqueles que se destacam entre a população) sejam idolatrados a ponto de que as pessoas se agarrem às suas palavras como as verdadeiras a serem seguidas; ele impede esses conflitos ao democratizar o acesso e garantir a liberdade. O episódio todo é uma evidente crítica.

No quinto episódio, os ratos daquele “mundo dos ratos” onde os protagonistas se encontram no início do episódio representam os diferentes grupos e fragmentos antagônicos de diferentes circunstâncias presos naquele mundo. Na verdade, todos animais mostrados desde o início, como gatos e pássaros, também são utilizados para representar a liberdade e a independência das restrições sociais, principalmente em relação àqueles mais marginalizados, segundo Natsume na mesma entrevista já citada.

Esse episódio abre a oportunidade de pontuar algumas coisas sobre alguns personagens, sejam eles novos ou presentes na obra desde o início. Rajdhani, por exemplo, é consolidado como um importante personagem; ele centra a razão durante as discussões entre os alunos, que normalmente envolvem acusações radicais e perigosas, e tenta lidar da melhor maneira possível. Outro ponto a se observar é que, mesmo sendo o “agente científico e racional”, o personagem ainda faz algumas menções religiosas, mostrando que ele está o tempo todo aberto à fé e ao misticismo. O resultado prático disso é que Raj consegue lidar melhor com o bizarro em comparação aos outros alunos de sua turma. Isso fica evidenciado principalmente com os eventos da parte final do anime, que reiteram, também, o fato dele ter um psicológico forte.

É no episódio cinco, inclusive, que alguns daqueles elementos anteriormente citados, que se apresentam para supostamente revelar a verdade sobre Nozomi, aparecem para justificar tudo que já foi discutido sobre a personagem. Também é bastante claro o quão observadora ela é, sempre ajudando Nagara, puxando-o ou levantando-o de alguma situação. Ela é o gatilho para que ele saia do fundo do poço, sempre disposta a ajudá-lo a melhorar. Ao mesmo tempo, a professora Aki (na verdade, uma aluna disfarçada) é apresentada, símbolo óbvio da figura de autoridade e pressão social que condiciona regras para os jovens seguirem cegamente, como ocorre com boa parte da turma posteriormente.

Alguns paralelos religiosos também podem ser considerados em relação a alguns personagens, como Nagara referenciado como “salvador” muitas vezes, Asakaze que funciona quase como seu anticristo devido às suas ações e antagonismo em relação ao protagonista, e Hoshi, que possui a figura mais evidente; ele é aquele que tenta assumir o papel de guia e herói, “a pessoa abençoada” que ouve a voz divina de Deus (o diretor da escola) e tentará ajudar as crianças a retornarem à realidade. Na verdade, Hoshi é uma retratação de Noé conforme a bíblia. Isso se torna óbvio e literal com a construção de sua arca que “salvará a todos” no episódio seguinte.

Hoshi vai contra a ideia de Aki-sensei, afinal ela diz não haver salvação. A partir disso, Hoshi tentará a salvação no episódio seguinte.

Até mesmo Aki-sensei pode ser lida como “agente enviada por Deus” para ficar de olho e impedir que as crianças tentem sair daquele mundo, algo como um teste do diretor para observar se os alunos já estão prontos para crescer e progredir nas etapas da vida. A personagem acaba se aproveitando da fraqueza mental de Asakaze para enganar os alunos da sua própria maneira neste mundo. O diretor da escola manipula peças antagônicas para testar a todos.

O sexto capítulo funciona como o início da mudança da estrutura narrativa do anime, muito embora o episódio sete seja também parte essencial para concluir o que é apresentado; trabalha o conceito das “realidades que são como filmes” de Nagara, misturando conceitos sobre seu mundo abstrato com alguma ou outra noção de teoria quântica em prol de amarrar as questões psicológicas desses multiversos com hipóteses teóricas por trás de tudo. Isso alimenta o argumento de que cada mundo reflete um problema interno de uma pessoa, uma espécie de inferno pessoal de cada um (como ficará mais evidente no segundo ato), mesmo que acompanhemos tudo pelo ponto de vista de Nagara.

Hoshi se convence de que é o “salvador”, ainda que precise da ajuda de Nagara, colocando o plano da arca em execução. Mas tudo que a turma consegue no fim é um vislumbre da sua realidade alternativa não alcançada, já que ocorreu um cálculo de probabilidade: Deus “rolou os dados” conforme as hipóteses de probabilidades quânticas apresentadas como bases desses mundos. A realidade alternativa, onde os alunos estão na formatura do colégio prestes a se formar, pertence a “outros eles”, pois, por perderem na hipótese probabilística, eles (que estão presos “à deriva”) são meras cópias.

A conversa entre Nagara e o diretor reiterando que o protagonista é o observador também retrata bem este ponto sobre probabilidade quântica e apresenta um pouco do efeito do observador: a presença de Nagara altera seu ambiente e cria o resultado de outras probabilidades de eventos. Talvez as coisas não estejam lá, talvez estejam. Mas o fato de Nagara estar observando, como diz o efeito, influencia como o fato é percebido, fazendo com que ocorra uma probabilidade de que um resultado exista. Esse diálogo é apenas um exemplo entre vários que ocorrem durante o anime confirmando as alusões da série à teoria quântica para servir de base daqueles mundos. Pode parecer confuso, e realmente é para quem não está acostumado com o assunto, mas o elemento está bem amarrado durante a narrativa, além de que também não é como se essa questão realmente importasse muito. É somente um artifício que leva a história. Essa é uma dentre suas diversas camadas de compreensão, e, ao observar atentamente, há uma explicação ou hipótese para tudo que é apresentado. Nada está colocado de forma gratuita.

multiversos

Alegorias quânticas à parte, essa tentativa falha de regressar à realidade é um choque que muda e redireciona os personagens. Nozomi, por exemplo, percebeu sua morte naquela realidade, o que reitera os indícios até então mostrados sobre sua condição, enquanto boa parte dos estudantes acaba aceitando que não será mais possível voltar à realidade. Observar suas “versões reais” na formatura faz com que precisem agir ou tentar seguir seus próprios caminhos. A formatura por si, ato final realizado no colégio, é uma metáfora clara sobre essa necessidade.

 

Segundo ato (Indivíduo)

Fazendo a ligação com o episódio sete, que conclui esse evento, boa parte dos alunos da turma vai embora, e é justamente pelo que ocorrera que boa parte dos personagens é tematicamente concluída. Esses personagens representam aqueles que ainda estão presos, buscando um caminho para seguir no seu próprio inferno pessoal; os que não passaram no teste ou ainda os que simplesmente desistem de voltar para casa devido a essas e outras circunstâncias. Não havia mais motivo para continuar esperando uma salvação de Nagara ou Hoshi, que falhara e não era mais visto como salvador. O próprio Hoshi, neste ponto, não ouve mais a Deus — ele o abandona. Em sua despedida, parece feliz e liberto, talvez realmente preparado para enfrentar o futuro pela primeira vez. Ele deixa sua fé para trás para seguir um rumo desconhecido, e apenas teremos menções a ele ao final.

Nesta cena do episódio 7, Hoshi está muito mais amigável e sereno do que jamais fora até então.

Os alunos da turma então decidem tentar cada um seguir sua vida e percorrer seus próprios caminhos. A narrativa de Sonny Boy, a partir do episódio sete, começa a ser muito mais pessoal em relação ao núcleo de personagens que cercam Nagara e a ele próprio, pois restam a estes buscarem algum caminho ou resposta. Não é como se os outros alunos tivessem sido “largados” pelo roteiro; os mundos visitados representam o inferno pessoal de cada um ou de um grupo de pessoas, e, por conta disso, os outros alunos seguem caminhos distintos. O foco nesta parte final é mostrar o crescimento de Nagara e do núcleo de personagens à sua volta.

Resta somente a Nagara e seu grupo seguirem um caminho, procurar pela “verdade” ou então uma forma de sair daquela situação. O cerne da narrativa passa a ser nos seus próprios mundos e circunstâncias e não mais na dinâmica de “turma de colégio” naufragada — é até por isso que nestes dois episódios é mostrado haver mais mundos e alunos (de outras épocas) coexistindo, não somente aqueles da classe de Nagara. Desta forma, o primeiro destino do nosso protagonista é a Torre de Babel, uma conclusão para toda essa explicação da conexão entre os episódios.

O episódio sete é uma boa “transição” entre a parte mais voltada à sociedade a essa centrada no filosófico de seus personagens de maneira mais direta. A Torre de Babel em que Nagara entra é uma referência bíblica direta onde a informação se faz necessária para compreender melhor seu papel: ela foi construída por descendentes de Noé, após o dilúvio, para que os homens pudessem tentar se comunicar com Deus em busca da esperança. Ora, como relatado antes, Hoshi tinha o papel de Noé fazendo a barca para que a turma de estudantes escapasse; após o dilúvio, isto é, a tentativa fracassada de voltar à realidade, alguns dos alunos que tentaram seguir pelos próprios caminhos acabaram neste ambiente, reféns de um trabalho inútil e alienado. Alguns tentam se alimentar de uma falsa esperança, estagnam-se sem perceber sua condição ou apenas se conformam.

O “garoto formiga” apresentado no episódio também é um simbolismo óbvio para a classe trabalhadora — por isso, inclusive, que enxergo esse episódio como o que mais equilibra questões sociais e filosóficas enquanto faz a transição dos atos da série. Devido à complacência daquelas “formigas” trabalhadoras, não há progresso, elas estão trabalhando sem sair do lugar — e há centenas de anos, já que a narrativa confirma os indícios de que o tempo passa de maneira diferente em cada mundo. Além disso, no topo da torre fica um grupo de indivíduos chamado “elite”, que é, ao mesmo tempo, representação social óbvia e a descrição literal de um grupo de personagens que faz parte da “elite do mundo à deriva”, o que, na prática, deve ser o mesmo que o primeiro caso. No entanto, o mundo de Babel está de cabeça para baixo. Os trabalhadores estão sempre em direção ao fundo da torre, enquanto a “esperança está trancada” em seu fundo. Como resultado, as “formigas” estão organizadas em uma estrutura social que requer um trabalho constante, árduo e inútil para alcançar o “céu” ou a “esperança”, indo também na direção contrária à verdade no sentido filosófico.

Nagara escolhe perseguir a verdade, no mesmo sentido filosófico, ao invés do que seria a “esperança religiosa”. A Torre de Babel representava uma esperança fútil daqueles que vagavam, seja por acreditar em Nagara anteriormente, tratando-se de seus colegas, ou por outros que aguardavam por algum outro milagre. A escolha de Nagara pode significar a busca pela esperança e a confiança para conseguir levar sua vida após entender seus conflitos internos, inerentes à existência humana. Ademais, essa decisão faz com que o mundo vire de cabeça para baixo, ou seja, na posição certa, permitindo que ele escape ao final. Essa conclusão do episódio é também um novo e importante passo para o progresso do desenvolvimento do protagonista, que passa a desejar ir para casa de forma mais convicta. Nagara age mais como agente observador e reflexivo dos acontecimentos, tentando tirar proveito das lições, do que como personagem ativo de algum conflito que o atinja de maneira direta — essa é a maneira como a obra decidiu abordar boa parte de seus personagens.

Komuri, o personagem com o guarda-chuva no fundo da torre “trancando a esperança” diz que Nagara é um observador e que eles eram apenas “meras probabilidades” enquanto ele não estivesse naquele local, referindo-se diretamente ao já mencionado efeito do observador, indicando, conforme a sua descrição, que o protagonista conseguiu alcançar o “topo” da torre pelo fato de ter tomado atitude ao demonstrar inconformismo com a situação. No fim, Nagara está livre, pois já superou uma importante etapa de sua jornada de crescimento pessoal, e isso só foi possível por ele comparecer e observar a torre e as formigas.

Avançando pelo segundo ato, o episódio 8 mostra execução e temática ímpares, mesmo em comparação aos demais de Sonny Boy. Esse é o motivo pelo qual é meu episódio favorito. Empolgou-me ainda mais que os outros, tornando-se provavelmente o episódio em que mais quis tentar arranhar a superfície de sua compreensão.

A narrativa segue o estudante Yamabiko, preso a um corpo de cachorro há realmente muito tempo, em um extenso flashback em que ele conta sobre seu passado, enquanto Nagara absorve e reflete sobre tudo que é dito. Toda a execução do episódio demonstra uma carga existencialista e aborda o niilismo de maneira como nunca vi antes na mídia da animação japonesa, seja pela sua narrativa visual, a paleta de cores e todo o trabalho de direção e animação solo de Keiichiro Saito, ou pelos simbolismos que envolvem religião e filosofia intrinsecamente ligados ao que ocorre no passado do personagem.

O episódio trabalha como uma crítica à religião, arrisco que falando de forma específica do cristianismo tal qual o filósofo prussiano Nietzsche, a partir de todas as referências à sua obra, além de também focar na questão do indivíduo e advertir das consequências de tentar buscar a salvação em outra pessoa ou algo que não seja a si mesmo.

Yamabiko fica tão preso à ideia da garota Kodama como uma salvação que ele acaba deixando de lado sua individualidade, e, devido a isso, torna-se um cachorro. O casarão mostrado no episódio lembra muito uma igreja e, apesar de não transformar água em vinho, Kodama transforma água em sopa. Até a maneira como ela e Yamabiko se encontraram no local lembra algum ritual religioso. Em “Anticristo”, Nietzsche faz uma crítica ao cristianismo por ser responsável pelo triste rumo da humanidade, pois, segundo o filósofo, se sustenta pelo pecado das pessoas e utiliza da salvação como meio de dominação da sociedade, exatamente o papel que Kodama exerce sobre todos os estudantes que a veneram e, principalmente, por Yamabiko, que perde seu valor como indivíduo ao entregar-se a ela como um (literal) cachorro serviente.

Além disso, o conceito do homem niilista que Nietzsche descreve em “Assim falou Zaratustra” também está presente até de forma literal na figura de Yamabiko e nos eventos que o cercam no passado em relação à Guerra e à praga. No livro, o filósofo apresenta o conceito do “último homem”, que, de maneira resumida e simplista, é o arquétipo do niilista passivo: uma pessoa mediana que vive na sociedade moderna e que, além de passiva, é indiferente e conformista, igual Yamabiko se descreve durante boa parte do episódio. O filósofo ainda acrescenta em certo momento que “o último homem é o que mais tempo vive”, exatamente como ocorre com Yamabiko, o único não afetado pela praga que levou a vida de Kodama e todos os outros estudantes. Alguns diálogos de Yamabiko com Nagara consolidam a ideia:

Outros diálogos também colaboram para essa compreensão, além de fazerem com que Nagara se enxergue em Yamabiko por retratarem as atitudes e personalidade do protagonista nos primeiros episódios:

O personagem “Guerra” pode ser compreendido como o vácuo moral que existe no mundo moderno. Há aí uma relação com a famosa citação de Nietzsche, “Deus está morto”, uma fala sobre a falta de valores e todos os males dessa cultura que cercam o homem niilista, em que, para o filósofo, “tornaria tudo em doença e calamidade”. É por isso que Kodama não consegue curar aquele grupo de alunos: ela conseguiu representar Deus (talvez especificamente sua figura no cristianismo) e até a ciência, mas foi incapaz de liderar aquele grupo, sua sociedade.

Kodama tem poderes quânticos de mudar a matéria e o espaço-tempo, o que mais uma vez mostra a guinada para o cientificismo que Sonny Boy revela ter com seus conceitos quânticos. A imagem da personagem visualizando os seus poderes, por exemplo, é semelhante à forma como uma realidade multidimensional é visualizada através da teoria das cordas — e essa cena se repete em alguns momentos durante o anime quando alguns personagens estão entre as dimensões e mundos, por formas e perspectivas diversas.

Durante o episódio, Yamabiko reflete sobre como carregou o arrependimento de se fechar e não agir para salvar Kodama, acreditando que somente ela, a “salvação de todos”, poderia fazer algo. Em resumo, uma culpa por terceirizar sua esperança. Se ele apenas tivesse cumprido sua promessa para ela e aberto seu coração, poderia tê-la salvado. O final do episódio apresenta a ênfase no otimismo de Nietzsche com o niilismo ativo, que está relacionado aos poderes que Yamabiko revela ter. Yamabiko diz que seu poder é “o poder de materializar o que estava na minha mente”, semelhante ao conceito que o filósofo define como uma “força humana”, destinada a se expandir e melhorar a vida de cada pessoa. Para ambos, isso significa que, para alcançar a vida imaginada em sua mente, ele primeiro deve superar seus arrependimentos, perdoar a si mesmo e aprender a fazer melhor, se considerando como indivíduo — o que Nietzsche chamaria de “aceitar a morte de Deus” em sua filosofia, não significando a ausência de fé ou de alguma entidade divina, mas sim se livrar de valores impostos e encontrar o próprio valor enquanto indivíduo.

Somente através da aceitação de seus próprios fracassos e de uma vida pró-ativa que Yamabiko conseguiu derrotar o ressentimento e transcender para o estado de espírito em que se encontra no tempo presente da série. O protagonista, inclusive, demonstra ter refletido sobre as ponderações do seu novo amigo e começa a pensar que deveria deixar de lado seus arrependimentos também. Ao fim da incrível execução que é todo o episódio com sua grande carga de existencialismo, resta a Nagara, como já fizera antes, observar os eventos ou os diálogos e tentar aprender algo com isso de modo a buscar um rumo para sua vida nessa jornada de autoconhecimento. O episódio oito é, individualmente, uma obra-prima em temática e execução como poucos nessa mídia conseguiram ser.

Os episódios seguintes, para esse núcleo principal de personagens, serve apenas como fixação dessas questões a partir da continuidade das reflexões de Nagara, Mizuho e Nozomi (afinal é uma jornada pessoal para cada um), enquanto os eventos dos episódios acabam focando em terceiros, agregando à narrativa da jornada filosófica ao mesmo tempo que explora também os multiversos e fala de outros personagens. O episódio nove, por exemplo, apresenta a história sob perspectivas dos gatos de Mizuho, fazendo amarras a diversos pontos apresentados em episódios passados em relação ao funcionamento dos mundos, dos poderes de Mizuho e de seus bichanos ao demonstrarem as consequências disso. É uma prova daquilo que comentei no início sobre como houve um planejamento para diversos acontecimentos desde o início da história, por mais que anteriormente pudesse não fazer tanto sentido.

Enquanto isso, a trama envolve o garoto Sou Seiji, sua “cópia” e todo dilema filosófico relacionado à motivação de viver, ao sacrifício e à morte — sua existência dependia do conflito e da ajuda externa, ele não encontrara um caminho. Ao final, apesar de já ter incentivos e estar praticamente com sua reposta formada, Nagara se questiona se tudo que resta é apenas um buraco vazio (afinal é o que ocorre com Sou Seiji) e se há sentido em continuar navegando através do caminho que ele escolheu, ao que Nozomi demonstra não ser a mesma pessoa de antes. Os acontecimentos na tentativa falha de volta à realidade, em que ela se viu “morta”, deixaram-na perdida em seus pensamentos e, ao fim do episódio, ela se abre para um dos gatos de Mizuho, mostrando como está deprimida. Nozomi não quer mais retornar devido a tudo que aconteceu e aos pensamentos que a atormentam.

Nozomi já desistira de voltar, mas dessa vez é Nagara quem a ajuda. Esse é o fator decisivo para ela apoiá-los a retornar à realidade com os eventos do episódio 11, mesmo que ela tenha perdido o próprio interesse de voltar para casa.

Outros personagens que já seguiram seu caminho, como Asakaze e a professora, retornam por estarem perambulando e tentando interferir nas jornadas de alguns estudantes. O episódio dez os segue em uma missão do diretor para matar o “Guerra”.

Asakaze volta para mostrar que continua uma pessoa sedenta por atenção, quer que todos o enxerguem como alguém importante — por isso ele é atraído pela sensei e é facilmente manipulado. Ele foca em tentar desempenhar um papel que pensa ninguém mais ser capaz, quer ser visto como salvador. Já o “Guerra” nesse episódio, é novamente uma meta-perspectiva. Eles vão ao “mundo da Guerra”, simbolismo da natureza da Guerra e do vácuo moral, onde a doença e calamidade estão presentes. Visualmente, é um mundo infértil e desolado, parecendo ser composto por nada além de pedras e árvores mortas e uma coloração estéril e monótona. Há um desfiladeiro que possui uma descrição muito específica de ser “uma fenda que rasga o mundo”. Um homem entorpecido no local demonstra o real efeito desse ambiente. É possível compreender esse capítulo como uma metáfora visual apropriada mostrando que o “mundo guerra” reflete o que significa a guerra, ao mesmo tempo que é um ponto (positivamente) vago o suficiente para os próprios personagens trabalharem na questão do que seria exatamente o conceito “guerra” ao decorrer da narrativa.

O grupo, ao liberar o homem, aparenta “resolver” a guerra, Asakaze decide mostrar certa misericórdia a ele, enquanto Nozomi sofre o acidente após discutir com Asakaze sobre a verdadeira natureza do garoto. Depois que Nozomi o rejeitou, ele não pôde salvá-la no acidente que culmina na morte da morte dela. Ele hesita, não quer que ninguém mais faça nada. Ao ficar tão surpreso quanto Tsubasa, ele mostra a ela que seu poder de ler mentes não é tão incrível assim, pois ela apenas ouve o que os outros pensam e não o que está no fundo de seus corações. Isso pode significar que ele estava se fechando para o lado mais sombrio de seus sentimentos, sem ter consciência de como poderia se tornar mesquinho e nocivo, afinal ele sequer admite gostar dela, apesar de pensar na garota diversas vezes.

Com o acidente, o legado dela se manifesta imediatamente na forma material, assim como outras manifestações ocorrem no anime após uma “morte” ou um conflito concluído. O que resta de Nozomi é uma bússola. O último desejo dela, após todos seus problemas sobre não ter mais uma razão para continuar, e após ter se aproximado tanto de Nagara, que a ajuda ao final do episódio nove, é que ele e Mizuho consigam voltar para casa.

O episódio onze é uma preparação para o final, um capítulo que foca no luto e no peso da perda, em mostrar o amadurecimento de Nagara e Mizuho ao tentar lidar com essas questões e, principalmente, em abordar tópicos finais sobre aqueles mundos a partir dos diálogos de Raj, que retorna para apoiar um amigo.

Com a história de Raj, é apresentado o paradeiro final de Hoshi como aquele que “inventou a morte”, embora outro conceito. Após os eventos fracassados tentando guiar os alunos da classe à realidade, Hoshi foi incapaz de lidar com a passagem do tempo, visto que se passaram muitos anos nos mundos por onde esteve. Ele começou não só a negar, mas se voltar contra Deus e eventualmente negar a todos. Seu impulso para continuar em algum momento se virou contra a regra principal que ditava tudo: sem mais uma razão legítima para continuar vivendo, Hoshi tornou-se apático e perdeu sua individualidade. Tudo se torna mais homogêneo com a passagem de tanto tempo, como explica Raj.

Até mesmo Raj diz que também estava ficando assim por estar sendo drenado pelo tempo. No fim ele acabaria se tornando um “buraco vazio e torto”, ainda que fosse o personagem mais racional e de atitudes mais coerentes entre todos os alunos de sua turma. Raj ainda segue forte, mas ele tem noção que nem mesmo alguém como ele resiste a isso.

A passagem do tempo fez com que Hoshi perdesse os valores que inicialmente tinha, por isso que, conforme Raj conta, Hoshi cometeu atrocidades, mas isso não o saciou. Hoshi continuou procurando por algo que o completasse, ele passou a buscar o que seria a “morte” no sentido mais filosófico, na intenção de transcender e ficar em êxtase, em plenitude. Assim, fez a “cadeira elétrica” que proporcionava tal efeito e, após ter conseguido, ficou satisfeito consigo mesmo, abandonando críticas e o ódio em um momento catártico. Ele morreu no mundo à deriva no momento em que atingiu seu objetivo principal de criar a “morte física” com a cadeira elétrica, como se ele tivesse transcendido à física de seu próprio corpo. Dado isso, não tinha mais nada pelo que ansiar; alcançou um status pleno como de um Buda. Sua morte não foi trágica, mas um processo de satisfação e paz.

É interessante notar que, mesmo deduzindo que este personagem é Hoshi, o anime não faz questão de confirmá-lo. Não exibir seu rosto inteiro, escondendo a estrela ao lado esquerdo do rosto de Hoshi, pode levantar certa dúvida sobre a identidade desse personagem.

Rajdhani não pôde dizer que Hoshi se odiava por fazer isso consigo mesmo. A “morte” em um mundo estático é uma mudança de estado em que sua forma física original é perdida, o que leva ao desvanecimento da consciência; é realmente transcender ao nível espiritual. Nagara mais uma vez tem o papel de refletir a partir do diálogo do seu próximo e, a partir disso, acaba desabando em lágrimas por pensar no valor da vida. A morte de sua amiga no mundo à deriva, somado a todas suas observações, fez com que ele mentalmente amadurecesse durante todo o processo. Mizuho e Nagara vão para casa, os únicos que, no fim, desejaram isso e aceitaram tal futuro ao longo de toda a história.

Final (o começo da vida)

Como pode ter ficado claro a este ponto, a função e a forma como os personagens de Sonny Boy progridem é diferente. Os personagens não possuem grandes conflitos para resolver. Não precisam entrar em um robô para salvar o mundo, não estão no meio de campos de batalhas contra algum tipo de criatura e tampouco estão em situações extremas que os levam ao fundo do poço. Talvez já tenha ficado claro para o leitor essa minha percepção de que Sonny Boy é uma jornada de autoconhecimento, pessoal também para cada personagem. É por isso que Nagara e outros são, muitas vezes, passivos em relação a tudo que acontece. Eles tendem a absorver os eventos, e a narrativa os induz a uma reflexão para tentarem avançar com suas próprias questões.

Apesar dos poderes originados por questões psicológicas e suas condições, ninguém é realmente especial e está predestinado a algo, muito menos Nagara. Ele progride de forma lenta conforme aprende com os meta-comentários de cada episódio, os absorve, leva umas broncas e tenta melhorar, mesmo possuindo inicialmente uma personalidade apática e sobretudo muito passiva em relação à basicamente tudo. O Nagara do início é o mesmo que Yamabiko se descreve inicialmente no episódio oito, mas há mudanças significativas conforme os episódios avançam, algo melhor evidenciado nos episódios sete e no próprio final do episódio oito.

Mas esse caráter de desenvolvimento contemplativo com certeza é um motivo que leva muitos a não gostarem de vários personagens e principalmente de Nagara. Eles não têm tanta “relevância narrativa”, não fazem muita coisa. Mas o anime É sobre isso, esse é o ponto que está sendo abordado e discutido o tempo todo, ainda que seja compreensível que tal desconfiguração possa incomodar. Sonny Boy é muito mais sobre as reflexões internas dos personagens e menos sobre o papel ativo deles.

O final de Sonny Boy é, apesar de tudo, otimista. É agridoce, pois mostra que a realidade ainda é difícil, não é como se todos os problemas fossem se resolver após uma jornada de autoconhecimento ou após os personagens enfrentarem seus próprios infernos pessoais em outro(s) mundo(s). O que fica é que cada um tem o que precisa dentro de si para aceitar os próprios fracassos e ter uma vida proativa em busca de uma boa vivência conforme explicado no episódio oito. Alguns conseguem resgatar isso de seu interior melhor do que outros, mas todos possuem tempo para isso.

O “confronto final” com Deus serve como um último teste para ver se a dupla que estava tentando retornar, Nagara e Mizuho, tinha coragem de realmente seguir com suas vidas. Porém, voltar à realidade não significaria que tudo magicamente se tornaria melhor e nem que seria o mesmo de antes, visto que há também uma questão de probabilidade em relação ao mundo em que retornaram. Eles retornam para uma “versão do mundo” em que Nagara nunca foi ao telhado e nunca conheceu Nozomi como no início da história — o que também demonstra que ela deve ter passado mais tempo com Asakaze, feito mais amigos e não ter sofrido do-que-quer-que-seja que tirara sua vida em outra possibilidade de realidade.

Essa imagem simboliza todo o trabalho e crescimento dos dois como pessoas: estão prontos para sair do “mundo à deriva”, ou seja, pisar para fora do colégio, pois estão agora mais preparados do que antes para lidar com a vida.

O encontro final com Asakaze serve para reiterar que ele não foi capaz de se perdoar no tempo que passou e, portanto, foi incapaz de seguir em frente. A troca dos objetos entre Nagara e Asakaze (a carta de Tsubasa pela cópia original da bússola de Nozomi) foi uma forma de apaziguar, um jeito de Nagara dizer que a morte de Nozomi não foi culpa dele apesar de tudo, enquanto a carta de Tsubasa serve de alento para Asakaze.

Com a bússola verdadeira de Nozomi, eles encontraram o caminho correto para casa.

Fora do mundo à deriva, eles ainda têm problemas e há um gosto amargo. Mizuho ainda está lutando. Ela encara o fato de que não está mais com todos os seus gatos e precisa lidar com o falecimento de sua avó. Na verdade, a primeira reação de Mizuho é uma negação da realidade, por isso a personagem vai à escola durante a noite e joga o copo no chão. Ela quer entender o que vai acontecer, se é possível escapar desse mundo novamente; até perceber que não adianta nada, começa a se acalmar e então passa a tentar se conformar com o que está acontecendo — assim, ela consegue falar com Nagara, já que no primeiro dia de volta ela o ignora por se encontrar em negação. Ao final, Mizuho tenta seguir em frente. Seus diálogos sobre seus próximos passos são exemplos disso. Mizuho não pôde mudar o mundo, mas este é o futuro que desejou. Ela pode seguir procurando seu caminho enquanto aproveita das experiências que vivenciou para tentar progredir.

Nagara precisa trabalhar para ser independente em um local de trabalho ruim, as pessoas ainda são hostis, a vida não é fácil e o mundo ainda possui vários absurdos. Porém, desde que consiga ser um pouco de quem ele passou a ser no mundo à deriva, uma vez que ele se lembra de todas as experiências e reflexões, tudo vai ficar bem — ele pode encontrar sua própria força para continuar vivendo e agir sobre o mundo. Nagara quebra a promessa que fez com Nozomi, sobre conversarem um com o outro sobre tudo que aconteceu ao voltarem à realidade para se tornarem amigos, mas ainda assim os instantes finais mostram que eles estão cientes um do outro. O protagonista demonstra preocupação em ajudar os filhotes de pássaro, valor simbólico de sua evolução, enquanto sua aproximação e diálogos finais com Nozomi demonstram sua intenção de se reconectar com ela novamente. Não há porque ter tanta pressa, ainda que ele tenha dado todos os indícios desse progresso; como o próprio garoto diz, suas vidas estão apenas começando e o que vem logo a seguir só vai demorar um pouco mais.

 

Enfim, Sonny Boy

Ditas todas essas interpretações e tentativas de obter mais respostas, o que fica ao final é que Sonny Boy é sobre crescer, não ser dominado pelo escapismo e tentar encontrar seu próprio valor enquanto indivíduo, mesmo que todos os problemas persistam. É outro desenho sobre rejeitar a fantasia (e aqueles que não o conseguem) para tentar encarar a realidade em toda a sua grandeza, de peito aberto às nossas expectativas e decepções. Nem sempre as coisas são como se gostaria, nem todas as respostas desejadas são alcançadas, nem todos os problemas são resolvidos; o mundo é mais complexo do que isso. 

Esse não é um anime que todos os públicos conseguem aproveitar, pois ele apresenta um nível de autoindulgência que não se vê todo dia nessa mídia. Há muita coisa sendo explorada e dita, há incentivos para se interpretar e buscar algumas respostas do seu início ao fim — até por isso que, na verdade, é um trabalho egoísta de Shingo Natsume: ele fez uma obra para ele mesmo, no final, cheia de autorreflexões apresentadas através de seus personagens, cheios de questões pessoais. Isso não apetece a todos, por bem ou por mal. Se você é um espectador que consegue mergulhar de cabeça em uma animação experimental que retrata a visão de mundo de alguém, esse anime é o que há, principalmente se gosta de exercitar a interpretação e está aberto a tentar buscar algo a mais nessa experiência.

Da mesma forma, Shingo Natsume se firma ainda mais como criador idiossincrático com essa animação. Um artista disposto a trabalhar a arte à sua própria maneira, brincando e extrapolando com os limites da animação para demonstrar como é possível que criadores utilizem-na como meio de demonstrar ideias e conceitos a partir da exploração da percepção audiovisual, seja com conceitos narrativos já recorrentes ou não. Natsume segue os passos de criadores consagrados, como Masaaki Yuasa e Satoshi Kon, para trabalhar os limites da fronteira da mídia com seu conteúdo e técnica — não é à toa que ele sucederá o primeiro no anime sequência de The Tatami Galaxy. O diretor é um exemplo do avanço criativo que ainda persiste mesmo em meio a uma turbulenta indústria.


Agradecimento especial ao Léo Medeiros que revisou e ajudou a estruturar o texto.


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