A Emancipação de Evangelion 3.0 + 1.01

A Emancipação de Evangelion 3.0 + 1.01 A Esperança (ou Thrice Upon a Time).

Autor do texto: Carlos Dalla Corte do site Devaneios Cinéfilos.

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A questão da liberdade, entre as tantas vertentes filosóficas que Evangelion bebeu, sempre foi elementar na construção da psiquê de basicamente todo personagem central de Eva. O existencialismo da série diverge entre doutrinas que começam de Kierkegaard, cuja assinatura encontra melhor representação na figura revoltada de Asuka, e principalmente em Sartre, que aí tem reverberado seus ensinamentos de modo mais geral. 

O intelectual francês sempre pregou a morte de Deus na sociedade moderna como o trunfo da liberdade, porém atribuindo a isto uma maldição. A maldição do livre-arbítrio;  assim como defendeu Nietzsche. A resolução de Sartre para tal debate sempre foi positiva, que é a adoção do último estágio de niilismo de Nietzsche, mas que frequentemente é exposta em círculos (e em quase todo site educativo nacional) como uma sintetização em um só sentido errôneo que lhe esvazia significado e distorce a intenção final, malogrando a reputação do filósofo alemão. O supracitado último estágio do niilismo, chamado de ativo, é a transvaloração da pessoa por si, isto é, assumindo novos valores de vida subjetivamente, e não adotar um hedonismo ou eudemonismo destrutivo e vazio, sem objetivos. É alçada moral de ressignificar a própria vida após perder a imposição de uma ordem sagrada, rejeitando comandos impostos em um coletivismo consciente ou inconsciente. É a individuação harmônica do ser consigo mesmo e a humanidade toda. 

Estabelecendo os conceitos, se simplifica como encaixar Evangelion e seus personagens nisto. A maldição da liberdade é um confronto já primariamente encarado por suas figuras, majoritariamente os três jovens que comandam Evas: Shinji, Asuka e Rei. São conflitos que atravessaram o anime e chegaram intactos para uma conclusão neste quarto filme do Rebuild, expressos em diálogos das próprias personagens. Rei, ao encontrar seu papel na comunidade que chegam no início do filme, diz que se são ordens, ela obedece, para depois se mostrar ingenuamente surpresa pela satisfação que encontra numa vida sem autoridade – com liberdade, ainda que ela não saiba diretamente como usá-la. Como um clone criado à imagem de uma pessoa, Rei se reboota a cada existência, com funções programadas e impostas. Asuka, na contramão, teme a liberdade, e voltando à Kierkegaard, foge dela, foge de seu próprio ser por boa parte do panteão de Eva, encontrando valor e utilidade somente na beligerância quando dentro de um EVA. É isso que evidencia seu comportamento ultrajante e psicótico, mas também a faz ser quem melhor entende e se aproxima de Shinji, por mais que suas atitudes demonstrem o contrário disso. Pois é Shinji, mais do que todos, que se acovarda perante a responsabilidade que vem com a liberdade, que lhe incumbe da iniciativa de decidir o que fazer, e isso respingando nos outros. É o soco que Asuka o dá por não conseguir decidir salvá-la nem matá-la. Se parecem tão distintos, é essa similaridade, separada por como lidam com ela – ela no confronto suicida e ele na retração – que os torna tão próximos, e Asuka a se importar com Shinji apesar de castigá-lo mental e fisicamente. Talvez um lembrete da própria condição, um espelhamento que a impele à violência como um ódio próprio. “O inferno são os outros”, diz uma cena do filme – parafraseando, justamente, Sartre, simbolizando como são os outros que refletem nossos demônios.  

As questões que permeiam a construção de Shinji, o tornando um personagem tão polarizado na comunidade, odiado por suas ações ou adorado por sua complexidade, reflete também um senso de identificação para com ele, e talvez um ódio tão elevado revele uma característica que vemos em nós mesmos, mas rejeitamos e desprezamos, assim catalisando tudo em ojeriza para quem expõe essa fragilidade que dividimos. Porém, restringindo aqui aos Rebuilds, Shinji aqui inicia a jornada no auge de sua depressão, deterioração da estima e confiança, ao culpar-se pela morte de Kaworu. É curioso notar, porém, como mesmo humilhado, Shinji jamais busca o suicídio, e sim uma solidão que se revela por vezes como uma autocomplacência. Buscar e aceitar a violência que Asuka lhe propõe. Shinji, e Hideaki Anno entende bem disso pelo seu histórico de luta com a depressão, assim como esse que lhe escreve, busca a validação através do fracasso e do lamento. Num ponto tão baixo de confiança e autoconsciência, ele só vê razão em sua existência através de aspectos negativos. É isso que ele espera dele e é isso que ele entrega, e por isso a indignação e revolta em ver a insistência de Rei e dos outros o tratarem bem, pois isso o invalida. Ele não merece e somente traz culpa. É Asuka, novamente, quem melhor lhe entende e lhe entrega o que ele – e ela também – busca. Um coice, um murro, e não um sorriso e abraço. 

A resposta que Anno deu para o enigma de Shinji – e talvez para si próprio ao finalmente voltar à produção do filme, após anos afastado justamente por questões psicológicas – está justamente no…niilismo ativo. O primeiro arco do filme, no vilarejo isolado da brutalidade do mundo atual através dos cilindros de proteção, serve justamente de uma reaproximação de Shinji, Rei e Asuka a uma realidade tenra e humana, de labor e convivência. Todo o significado de Evangelion como obra está na calmaria vivida ali. Rei redescobre um sentido na vida fora seguir ordens, e cometendo o pecado de soar blasé, da simplicidade, assim como Shinji, quando o tempo lhe mitiga a culpa e trauma. Assim, ao decidir embarcar com Asuka para combater seu pai e a NERV, o protagonista demonstra uma tranquilidade e serenidade de compleição inédita, e sua escolha, depois vemos, é de inverter o amor que recebe não com revolta, mas sim buscar justificá-lo. E isso tampouco significa querer agradar a todos, mas sim fazer de si mesmo alguém valoroso e digno, principalmente a si próprio. É por isso que ele finalmente consegue se igualar a seu pai, não por tentar agradá-lo para receber amor, mas somente para entendê-lo. 

É o aspecto divino da humanidade, uma que Sofia nos legou quando abandonou a pleroma gnóstica, em outra analogia tão frequente na série. Mas não o heroísmo, e sim a redenção, a virtude. É por isso que o confronto final de Thrice Upon a Time não passa por lutas épicas e megalomaníacas entre robôs gigantes, e sim num diálogo, justamente a primeira conversa limpa e aberta entre Shinji e seu pai. O destino da humanidade, de Shinji e Gendo, é decidido ali, através da memória daquele trem. É ali, também, que um entende o papel do outro. Shinji em como seu pai parecia consigo mesmo, e por uma miríade de fatores, seguiu o caminho que seguiu, e Gendo em como a resposta para suas dores sempre esteve em sua frente. A libertação emocional de Shinji é também a de todos. De Rei 01, Asuka, Gendo e Kaworu.

E este é um mundo de emancipação. Um mundo que não precisa de Deuses, e em que a resposta não é, como Gendo e a Nerv almejavam, substituir as divindades, mas sim um em que o arquiteto é o próprio homem. Se a instrumentalização humana era tão somente uma anestesia geral definitiva para extinguir as dores a custo da própria individualidade, o novo mundo proposto por Shinji não é uma utopia, que etimologicamente significa lugar nenhum – ou seja, inexistente -, mas sim uma nova chance ao real e à liberdade de sentir, sabendo que a vida é, como disse a esposa de Toji, uma sucessão contínua de coisas boas e ruins.

Não é em vão que nossa última visão do universo Evangelion seja um plano aéreo que subtitui a animação pelo real. É Ube, a cidade natal de Anno. Ele pode ser Shinji, mas quanto mais a câmera subir e abrir, mais nos veremos ali. Tornar a liberdade uma maldição ou uma bênção, essa é nossa função, e não da religião ou Deuses. Geologicamente, nós vivemos na época do Antropoceno. A era dos homens.