O legado de Yasuo Otsuka | Tradução

Em 15 de março de 2021, o produtor do estúdio Ghibli, Toshio Suzuki, anunciou que Yasuo Otsuka faleceu aos 89 anos. Aproveitando uma pergunta que recebemos sobre a história e importância do mestre da animação, o intuito é contar um pouco sobre uma das figuras mais importantes da animação mundial que foi embora; não é exagero dizer que Otsuka foi a própria personificação do anime e de sua história.

Dada a tamanha colaboração do mestre Otsuka para a animação, todos seus feitos e conceitos, seria impossível relatar e mostrar todas as nuances de sua técnica, atos e obras-primas em um só artigo. Este texto é uma versão traduzida e adaptada do In Memoriam de Matteo Watzky do site FullFrontal, um ótimo apanhado geral e introdutório sobre suas realizações com base principalmente no que é relatado no excelente documentário Yasuo Otsuka’s Joy in Motion .

Otsuka nasceu em 11 de julho de 1931, na prefeitura de Shimane. Ele começou a gostar de máquinas desde os 10 anos de idade, quando viu uma locomotiva a vapor pela primeira vez. Mas, como a maioria dos artistas japoneses de sua geração, seu primeiro encontro real com objetos mecânicos foi com os militares: em 1945, sua família se mudou para perto de uma base militar e ele teve muitas oportunidades de ver, admirar e desenhar veículos militares. Essas experiências foram fundamentais para aquele que se tornaria um dos inventores da animação mecânica japonesa, além de um dos maiores fãs de jipe que o mundo já viu. A maravilha de como as máquinas simplesmente se movem, e suas peças se encaixam para criar um todo, e a necessidade de desmontá-las e reconstruí-las em esboços e desenhos para entender nuances do seu funcionamento seria o primeiro passo na vocação de Otsuka como artista.Desenhos de Otsuka aos 14 anos, feitos a partir da observação veículos mecânicos e seus funcionamentos.

Após alguns anos como cartunista amador, e depois cartunista profissional, Otsuka entrou no mundo da animação em 1956, quando iniciou seu trabalho no estúdio Nichidou aos 25 anos. Nichidou veio a se tornar a Toei Animation, o primeiro e único grande estúdio de animação do país na época – e Otsuka foi seu primeiro recruta e aprendiz oficial. O estúdio tinha apenas dois animadores profissionais à sua disposição: Yasuji Mori e Akira Daikuhara. Como aprendiz mais talentoso, Otsuka sintetizou a atenção aos detalhes e realismo de Mori com a espontaneidade e energia de Daikuhara. Foi depois de passar no exame de admissão do estúdio e fazer alguns trabalhos em seus primeiros curtas que Otsuka se tornou o segundo animador-chave de Daikuhara no primeiro longa-metragem da Toei, Hakujaden, em 1958.

Já naquela época, Otsuka demonstrava grande talento, a liberdade que Daikuhara deu aos seus assistentes ofereceu ao jovem todas as oportunidades de que ele precisava para crescer ainda mais. Foi, portanto, com Hakujaden que animou sua primeira obra-prima, a tempestade e as sequências subaquáticas que fazem parte do clímax do filme. Otsuka conseguiu transmitir uma sensação formidável de vida e volume em sua própria sequência, embora ele estivesse trabalhando em um layout tão difícil envolvendo movimento complexo em profundidade e movimento de câmera. Ele já havia dominado o primeiro fundamento da animação que aprendera lendo e copiando manuais de animação ocidentais (principalmente da Disney): que animar significa dar a ilusão de vida. Mas isso foi apenas o começo e ele iria ainda mais longe.Depois de um começo tão bom, Otsuka rapidamente subiu na hierarquia do estúdio e se tornou um animador principal (ou primeiro animador principal) no segundo longa-metragem da Toei, Shounen Sarutobi Sasuke, de 1959. Lá, ele consolidou sua amizade com outro jovem que estava na Toei, Daikichirou Kusube, que também fez sua estreia em animação em Hakujaden. A partir de então, foi reconhecido como uma das maiores figuras criativas do estúdio e entregou diversas sequências de destaque. Desde esses primeiros dias, os mais impressionantes são, sem dúvida, os do clímax de Wanpaku Ouji no Orochi Taiji em 1963: o primeiro trabalho na animação japonesa que contou com o cargo chamado diretor de animação, ocupado por Yasuji Mori. O filme é uma das obras-primas atemporais de anime, e as sequências de Otsuka, animadas e com storyboards feitos em conjunto com Sadao Tsukioka, destacam-se como algumas das melhores conquistas deste longa.

Não era nada fácil a tarefa de animar os movimentos contínuos de monstros com várias cabeças, ou toda a agilidade do protagonista nessas sequências de ação, mas os dois jovens artistas conseguiram executar com certa facilidade uma cena de ação incrível que é ao mesmo tempo assustadora, inspiradora e cheia de emoção. Há muita complexidade aqui, e, no entanto, o que é mais impressionante é a quantidade de emoções que os animadores deram a seus personagens; enquanto a jovem se rasteja com medo, o herói tenta ao máximo lutar contra a fera.

1963 também foi o ano em que o anime chegou à televisão e Otsuka rapidamente se posicionou na vanguarda das aventuras da Toei nessa nova mídia: em 1964, ele foi diretor de animação na primeira série de TV do estúdio, Ookami Shounen Ken. Foi aqui que conheceu aqueles que se tornaram seus dois maiores alunos: Isao Takahata, que era o diretor do episódio, e Hayao Miyazaki, um animador in-between na época.

Por volta de 1965, Otsuka foi considerado importante o suficiente pela diretoria do estúdio Toei Animation ao ponto de receber a oportunidade de atuar como diretor no seu próximo filme. Otsuka, um animador acima de tudo, recusou e deu a posição ao jovem promissor Isao Takahata: o filme se tornaria uma das maiores obras-primas da Toei, Taiyō no Ōji Horusu no Daibōken. Embora tenha sido uma produção longa e dolorosa, Otsuka desempenhou um papel fundamental como diretor de animação e desenhou os storyboards nas orientações de Isao Takahata. A partir daí, ele pôde treinar diretamente a promissora nova geração do estúdio: figuras estabelecidas como Reiko Okuyama e Akemi Ota, mas também estrelas em ascensão como Yôichi Kotabe e Hayao Miyazaki.Taiyō no Ōji (ou Horus, do nome em português Horus: O Príncipe do Sol) foi um filme revolucionário, graças à sua direção incrível e temas complexos para uma animação naquela época. Do ponto de vista da animação, foi aí que Otsuka contribuiu para estabelecer uma das mais importantes características estilísticas ainda hoje associadas a anime: a modulação do frame rate. No final da cena de abertura do filme, Otsuka animou dois personagens em taxas de quadros totalmente diferentes e, além disso, usou o que foi considerado animação “limitada” em um deles: o gigante foi animado em 3 e 4, o que significa que apenas um quadro em 3 ou em 4 era um novo. No contexto da cena, deu peso e magnitude ao movimento do gigante, em contraste com o movimento mais rápido e dinâmico do protagonista. Mas, mais do que expandindo consideravelmente as possibilidades expressivas da animação em célula, a introdução da modulação da taxa de quadros deu aos animadores muito mais liberdade e a capacidade de quebrar os limites convencionais da animação “total” e “limitada” em favor da pura alegria do movimento.

Essa ideia central de que a animação não é apenas subserviente à ação, mas tem valor e poder próprio, é provavelmente o núcleo duradouro do legado de Otsuka, que ainda é transportado pelos animadores de hoje e pela comunidade sakuga.

Apesar de ser uma realização artística, Horus foi um fracasso comercial, afinal era algo até então novo, e Otsuka foi parcialmente culpado por isso. Além disso, ele percebeu naquele momento que o jovem Hayao Miyazaki, de potencial gigantesco, já fazia um papel de segundo em comando de Takahata. Foi então que Otsuka foi convidado por seu amigo de longa data, Daikichirou Kusube, para se juntar à recém-criada A Production, um estúdio terceirizado que já era um pilar da indústria de anime para TV.

Embora Otsuka tenha contribuído para algumas séries de TV no final dos anos 60, como na abertura de Kyojin no Hoshi e com Moomin de 1969, o que realmente o levou para A Production foi um projeto apaixonante: adaptar o mangá Lupin the Third de Monkey Punch. Três coisas levaram Otsuka a este trabalho: A possibilidade dele perder a sensibilidade em relação a animação mecânica, que há muito não fazia; a oportunidade de deixar a atmosfera sufocante da Toei por um ambiente de trabalho novo e mais independente; e uma chance, talvez, de seguir com a mesma ambição de Horus de fazer filmes de animação voltados para um público mais adulto.

Otsuka começou seu trabalho em Lupin como animador principal do filme piloto, lançado em 1969; mas sua real contribuição foi na primeira temporada da série para TV, em 1972, em que trabalhou como diretor de animação. Quando a avaliação do programa começou a cair, foi Otsuka quem trouxe dois novos diretores recém-saídos da Toei, Isao Takahata e Hayao Miyazaki, que poderiam levar a série para uma nova direção. Mas o mais importante, foi a partir daí que Otsuka começou a treinar uma nova geração de animadores, o que seria conhecido como a escola Otsuka: seus membros mais importantes eram Yoshifumi Kondou, Yuuzou Aoki, Osamu Kobayashi e Tsutomu Shibayama. Alguns deles mais tarde se juntariam ao estúdio Ghibli ou criariam estruturas próprias, como o estúdio Ajia-Do, estabelecido por Kobayashi e Shibayama.

O anime Lupin era sem dúvida criação de Otsuka, no sentido de que a série carregava o DNA do artista, era o lugar onde ele e seus alunos Yuuzou Aoki e Hayao Miyazaki estariam entre os primeiros a desenvolver uma filosofia distinta de animação mecânica, tanto realista quanto expressiva. O que isso acarretou não foi apenas uma nova abordagem para desenho e movimento, mas também a integração de modelos reais de carros e aviões em vez dos originais – embora também tenha sido lá que Miyazaki apresentou alguns de seus primeiros designs icônicos de aviões.

Lupin também incorpora a melhor filosofia de Otsuka: um prodigioso senso de diversão, um amor por máquinas de qualquer tipo e uma paixão pelo próprio movimento. Todos esses elementos foram passados ​​para seu melhor aluno Hayao Miyazaki, que consegue desenhar personagens se curvando e contorcendo, quase como se fossem cair, apesar de ser apenas sua prodigiosa e divertida forma de animar.

Depois do primeiro Lupin, a carreira de Otsuka nos anos 70 foi rica e, como dito no ato introdutório, seria necessário um artigo inteiro e muito mais completo para fazer justiça a todos seus feitos e técnica. Basta dizer que foi incrível e repleto de obras-primas, como Panda Kopanda, Mirai Shōnen Konan e, claro, uma de suas maiores obras como diretor de animação: Rupan Sansei – Kariosutoro no Shiro (O Castelo de Cagliostro). Foi nessa década também que ele estreou na direção – uma das únicas obras que dirigiu foi o filme Sougen no Ko Tenguri, de 1977. Mais importante ainda, foi em 1978 que Otsuka ingressou no estúdio Telecom Animation, criado em 1975 para ocupar o lugar de A Production, que tinha acabado de se separar. O lugar estava cheio de novatos, e o talento de Otsuka era extremamente necessário para ajudar a continuar Lupin III Parte II que a Telecom estava animando; provavelmente foi lá que Otsuka descobriu plenamente sua própria vocação como professor: ele permaneceu no estúdio Telecom pelo resto da vida.

Na verdade, o último grande trabalho de Otsuka como animador foi em 1985, em Sherlock Hound. A essa altura, ele já havia começado a transmitir sua paixão por compartilhar seu conhecimento: pelos próximos 35 anos, ele ensinaria e daria palestras em locais tão diversos como a própria Telecom, o Instituto de Animação da Toei, a Academia de Animação Yoyogi, escolas de animação de Taiwan e França e no estúdio Ghibli. Uma lista completa de todos os homens e mulheres que ele ensinou seria interminável, mas entre eles encontramos o designer de personagens de Evangelion, Yoshiyuki Sadamoto, o gênio animador Shinji Hashimoto, mas também artistas estrangeiros, como o animador francês Ken Arto; e isso nem mesmo começa a incluir todos os que ele inspirou indiretamente, isto é, sem realmente tê-los conhecido ou ensinado.Otsuka parece ter sempre tido consciência do seu papel na história dessa indústria de anime e, juntamente com os seus amigos da Ghibli, sempre dedicou tempo a refazer a evolução da forma da arte. Ele contribuiu para muitos livros e exposições, sendo a mais abrangente, sem dúvida, suas próprias memórias, o livro de ilustração sakuga Ase Mamire de 1983.

Refazer a carreira de Yasuo Otsuka é simplesmente refazer a história da animação japonesa moderna, desde o início até hoje. É simplesmente impossível estimar totalmente o talento e a importância de um dos maiores animadores do Japão e, mesmo após sua morte, seu legado viverá para sempre. Além de todas as obras-primas que ele produziu e gênios que treinou, a maior descoberta de Otsuka foi simplesmente o poder que está por trás do movimento. Ele percebeu que, além de qualquer aspecto técnico, a animação tem uma expressividade própria, e que o amor que o animador individual coloca em seu trabalho sempre se transfere para o espectador. A vida e a carreira de Otsuka provavelmente foram moldadas por uma coisa simples: paixão. Paixão pelas máquinas que amava admirar e desenhar, pelas pessoas que conheceu e trocou experiências, além da paixão pela sua arte. Isso é o que o torna atemporal, ele e sua obra serão lembrados eternamente.


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