Nogi Wakaba Wa Yuusha De Aru e as sequelas de ser um herói

Eu tenho que assumir que a minha afinidade com a franquia Yuuki Yuuna nunca foi das melhoras, visto que a série clássica, lançada em 2014, nunca conseguiu chamar a minha atenção. Isso especialmente após ler sobre o seu final um tanto questionável, que parecia contradizente a sua proposta de ser mais uma desconstrução do gênero mahou shoujo. E mesmo que eu tenha tentado dar uma segunda chance a ela através da adaptação da prequel da série clássica, a Washio Sumi no Shou, lançada em 2017, continuou parecendo para mim uma obra um tanto medíocre, em que as personagens eram bem fracas, como meros arquétipos de garotas moe tradicionais jogadas em um cenário distópico, sem nada muito memorável, com exceção de poucas cenas isoladas.

Logo, eu obviamente não estava nutrindo grandes expectativas com essa nova revisita ao universo da franquia, mas felizmente, ficou bem claro que essa light novel, mais uma prequel, dessa vez se passando 300 anos antes da série clássica, está em um nível completamente diferente de qualquer outra obra da franquia que eu tenha visto, mesmo que com algumas ressalvas.

Por mais que a premissa aparentemente continue a mesma, com um grupo de garotas tendo que salvar o mundo das ameaças de criaturas chamadas Vertexes, a forma como isso é abordado é um tanto diferente. A obra já começa muito bem logo no primeiro capítulo (desconsiderando o capítulo 0), não demora em mostrar toda a ameaça que os Vertex podem causar através de um ataque repentino que acaba devastando todo o Japão; não apenas consegue criar uma atmosfera extremamente brutal e desesperadora durante toda a cena, mas também estabelece um grande senso de perigo e urgência em relação a grande ameaça que eles representam tanto em curto, quanto a longo prazo. E só então há um corte para um time skip de 3 anos, dessa vez se focando em apresentar suas personagens e tentar aprofundar as suas construções e desenvolvimentos. É nesse momento que algumas das grandes falhas da obra começam a aparecer, especialmente por duas personagens: Chikage e Tamako.

Por mais que eu admire a intenção dos autores em criar uma personagem como a Chikage, com uma composição mais dúbia, contendo uma moral um tanto duvidosa e cometendo atitudes questionáveis, visando essa característica mais cinza e fugindo do arquétipo esperado para personagens que são heroínas, a forma como isso foi executado foi falha para mim. Especialmente porque a obra comete o erro fatal de querer fazer com que você sinta pena e insinue que todas as atitudes mesquinhas, egoístas, e até desprezíveis foram culpa de qualquer outra coisa que não fosse ela própria, seja direta ou indiretamente. E não entendam errado. Óbvio que todo o background da personagem, tendo que viver em ambiente totalmente tóxico, tanto no âmbito familiar quanto no social, conseguem tornar crível o fato dela ter essa personalidade muito reclusa, antissocial, e com baixa auto estima como uma sequela desses traumas, porém isso não justifica o fato dela simplesmente humilhar a sua companheira só para massagear o próprio ego e ainda tentar fazer pressão psicológica na líder do esquadrão só porque ela quer assumir o posto unicamente para ganhar status e aceitação das outras pessoas no meio de uma batalha real contra um Vertex, quando essa atitude podia matar todas as garotas no processo, incluindo ela própria.

E quando isso acontece, simplesmente não importa o quão trágico seja o seu passado, já que isso não lhe dá direito de ser uma irresponsável e um completa idiota, especialmente descontando sua raiva em pessoas que não tem absolutamente nada a ver com os seus problemas. As outras garotas tentam se aproximar dela e lhe oferecer um apoio, mas ela acabar rejeitando essa ajuda nos capítulos posteriores. E mesmo assim, a obra faz questão de insinuar que essas decisões são culpa ou deste passado trágico, ou da sociedade que não reconhece os trabalhos dos heróis, ou da pressão psicológica causada pelos Vertex, quase que isentando ela de qualquer responsabilidade que teria com essas atitudes, insinuando que ela foi uma vítima da sociedade ao invés de alguém que sofreu as consequências pelas suas ações egoístas e mesquinhas, como falado acima.

Na pior das hipóteses, daria a interpretação para alguém falar que a Chikage estava certa em agir daquela forma, pois todo mundo era babaca e ela que era a vítima, como se justificasse o direito de ser um escroto desde que “seu passado seja sofrido” para justificar isso. Por mais que eu saiba que a intenção dos autores foi das melhores, ainda assim, pareceu-me um tanto irresponsável. E isso principalmente pela forma um vitimista que a narrativa trabalha com a personagem, por mais que tente mostrar mais para frente que ela conseguia ter lampejos de autorreflexão, assumindo que tudo foi culpa foi dela, fica difícil de achar isso convincente quando, em poucas páginas antes, a obra toma uma postura totalmente oposta. No meio de uma crise, surge uma passagem melodramática e totalmente desnecessária relembrando o quanto a mãe dela estava doente e que ela teve que ouvir os seus gritos enquanto estava isolada em seu quarto. A obra já mostrara isso no volume anterior, além de já ter lembrado a condição da mãe dela umas 4 vezes durante a história, e já era meio sem sentido tentar criar empatia depois de tudo o que acontecera, principalmente com um diálogo desses.

Tudo isso só serve para tentar criar uma redenção da personagem, insinuando que ela era sim uma pessoa muito nobre e honrada no fim das contas, o que, aliás, é reforçado com a estranha passagem em que a Nogi fala que ela é a heroína com o maior senso de justiça do grupo, mesmo com essas atitudes deturpadas; não é uma tentativa de criar uma reflexão real sobre as atitudes dela. Um belo exemplo de como a composição dela poderia ter sido melhor explorada, foi o momento aonde ela confronta a Nogi depois da Yuuna ficar hospitalizada na quarta batalha dos Vertex; ela fala que a culpa é dela por ela estar cega por vingança e não se importar com ninguém ao seu redor, já que, por mais que as intenções por trás disso eram mais focadas em querer humilhar a Nogi, foi uma observação muito pertinente e certeira. Se a personagem tivesse mais passagens como essa, ela poderia de fato se tornar muito mais eficiente e complexa do que foi. Mas, pelo menos, o arco dela consegue retratar bem a consequência do que acontece quando você decide ficar dependente da aceitação dos outros, do objetivo de ganhar status e fama se tornar uma obsessão, mostrando o quanto isso pode ser nocivo e destrutivo para a pessoa em questão, algo bem legal. Porém, ainda sim, faltou certo tato e habilidade na construção da personagem como um todo.

 

E quanto a Tamako, foi algo mais grave ainda. Sendo de longe, a personagem mais deficiente da obra, com todo o background dela se resumindo em explicar a relação dela com a Anzu e o porque delas serem tão unidas. E no fim, a explicação se resume ao fato da Anzu representar o ideal feminino que ela sempre almejou, mas nunca conseguiu ter por ela não ser “feminina o bastante”. E sério? É sério que eles quiseram resumir toda essa questão da suposta admiração e amizade dela para com a Anzu com um motivo estético? E o pior é que realmente não pareceu que a Tamako admirava ela pelo fato dela ter a aceitado da forma como ela era. Ou por ela se esforçar na linha de frente, mesmo sendo a mais medrosa e frágil do grupo até então. Ou por qualquer outra virtude que ela tinha. Foi só porque ela representava essa visão idealizada de beleza mesmo, que a obra vendeu como um motivo muito nobre e inspirador. O que ironicamente, soou muito superficial e falso. Já que se for assim, se ela não fosse tão feminina, ela ia gostar menos dela? Já que ela não precisaria ser protegida por ela? Logo, tudo bem? Fora que essa visão idealizada da Tamako nem é abordada como um tipo de sequela ou trauma por ela ser “mal vista” pelas outras pessoas, pois ela nunca pareceu se importar com isso. Tanto que em nenhum momento ela sequer se esforça para ser mais feminina e entrosar mais. Logo, não faz muito sentido isso ser a grande razão dela admirar alguém.Fora a própria composição dela que também não ajuda. Com ela assumindo o papel principal de alivio cômico, o que reforça um outro problema, que são as piadas. Em que algumas delas só soam forçadas e totalmente fora de contexto, como as piadas sobre peitos no campo de treinamento no inicio e na cachoeira com a Hinata. O fato da Nogi comer a carne de um Vertex ser tratado como uma piadinha qualquer, sendo que qualquer uma das personagens deveria ter achado isso no mínimo, estranho. Já que isso era uma representação do desgaste mental da Nogi. Mas nada supera a piada com o Udon na terceira batalha. Em que no momento em que eles mostram um surgimento de um novo Vertex evoluído, os autores quebram todo o clima de tensão da batalha com essa piadinha totalmente sem graça e fora de Timing. O que é uma pena, já que a luta dela e da Anzu no segundo volume é simplesmente um dos momentos mais inspirados e bem feitos de toda a obra. Em que eles não só criam um clima crescente de urgência, como eles ainda subvertem a sua expectativa durante toda a luta, mais o fato da escrita retratar a luta dessa forma muito lenta, estendendo os acontecimentos ao máximo, que faz a tensão ficar no teto. Tanto que ela só não me impactou mais por eu realmente não gostar e não me importar nenhum pouco com a Tamako mesmo, já que a Anzu era a minha segunda personagem favorita. Com um dos desenvolvimentos mais notáveis e coesos dentre todo o elenco, além de ter uma função bem importante no desenvolvimento da Nogi, e conseguindo fazer a sua admiração para com a Tamako ser algo convincente, ao contrário de sua parceira. Além da Yuuna, que soou apenas uma personagem que serviu de muleta para as outras, já que ela só conseguia um maior destaque quando acontecia algum acidente envolvendo ela ou quando ela se colocava em risco, sem muita coisa para se falar sobre ela, fazendo dela uma personagem um tanto apagada.

Logo, o grande destaque vai obviamente para a Nogi, indiscutivelmente a melhor personagem de toda a obra, e talvez até de toda a franquia, por sua bela quantidade de nuances e camadas, que a tornam a personagem mais fascinante e profunda da história. Mesmo que a garota tivesse esse estereótipo da personagem nobre, honrada, e destemida, ela conseguia ser muito viva, conseguindo expressar uma imensa gama de sentimentos como medo, raiva, insegurança, dúvida, hesitação e tristeza, fazendo dela a personagem mais humana e palpável de toda a obra. Além da própria reflexão sobre a questão do lema da família dela, que era basicamente uma adaptada do “olho por olho, dente por dente”, em que mostram o quão prejudicial e o quão perigoso isso pode ser, já que essa filosofia fazia ela ficar bastante instável e vingativas nas lutas, que criava consequências um tanto graves, servindo de desfecho para desenvolver a personagem e fazer com que ela refletisse e repensasse suas atitudes, o que é bem maneiro. A amizade dela com Hinata também é bem convincente e interessante de se acompanhar, a relação dentre elas demonstra-se mútuo e verdadeiro.

Ao contrário da Washio Sumi, a narrativa estava com muito mais foco nas mensagens que queriam transmitir, o que rendia grandes momentos como o capítulo extra da Shiratori. Ele possui uma mensagem anti guerra muito pertinente e precisa sobre o quanto as regiões e pessoas menos favorecidas podem ser usadas, manipuladas e enganadas apenas para serem descartadas em prol de benefício próprio de pessoas mais poderosas, transmitida de uma forma muito seca, crua, e brutal.Por mais que de início eu tivesse achado a Shiratori uma personagem genérica, quando você enxerga ela como uma alegoria e como uma representação de pessoas guiadas para guerra através desse ideal de patriotismo, é possível perceber o que a obra está tentando falar; o capítulo  se torna um soco no estômago. As 5 páginas finais são totalmente devastadoras.

Esse ponto é reforçado não apenas aqui, mas em outros momentos da história, como no arco da exploração, em que não apenas mostram as consequências do ataque dos Vertex após o time kkip fora a área protegida, mas também criam momentos muitos inspirados como a parte do diário em que a pessoa narra toda a clausura e a perda da sanidade dos sobreviventes durante o ataque dos Vertex, transmitidos através de uma sequência de diálogos extremamente chocantes, ríspidos e diretos, que mostram o que o ser humano consegue fazer em momentos de mais puro desespero. Os relatos vão ficando cada vez mais hediondos, desconfortáveis, trágicos, repulsivos e infelizmente, muito críveis, tornando-se um dos momentos mais memoráveis da obra. Além das batalhas dos Vertex, que conseguiam ser bem construídas e tentavam ser o mais convincente possível, tentando reduzir ao máximo qualquer protagonismo.

O próprio final que, evitando maiores spoilers, reforça uma das maiores qualidades na narrativa: a forma como tudo é feito para te obrigar você a se focar no micro, enquanto constroem o macro de uma forma que você nem perceba. Não apenas para surpreender com reviravoltas, mas também para criar críticas e reflexões que vão agregando cada vez mais a mensagem principal da obra sobre os males da guerra, que atinge o seu ápice na reviravolta do ato final.

E no fim, Nogi Wakaba é uma bela obra. Por mais que eles tenham derrapado no desenvolvimento de certas personagens, o resultado no fim ainda conseguiu ser muito satisfatório para mim. Não apenas abordando temas pertinentes de uma forma bem mais coesa, concisa, elaborada e imersiva do que o anime do Washio Sumi, e provavelmente da série clássica, mas também conseguindo criar uma identidade própria ao ponto em que, mesmo que a franquia sempre seja comparada com Madoka, tentar comparar essa obra em específico com ela é o equivalente a comparar laranjas e maçãs.

Por mais que ambas sejam uma desconstrução do mahou shoujo, toda a narrativa, a trama, a temática e as mensagens são bem distintas entre si. Isso foi o que me deixou bem feliz, visto que mostra o esforço em tentar fazer com que a franquia se tornasse menos derivativa e consiga sua própria individualidade. Então, para quem não conhece a franquia, ou assim como eu, assistiu os animes e não gostou, recomendo a dar uma oportunidade a essa obra. Não apenas por ser bem fácil de se ler, contendo apenas 2 volumes, mas também por mostrar uma evolução na exploração do universo da franquia em vários âmbitos. Muito bom.

 


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