Dê uma chance a Kyokou Suiri (In/Spectre) | Review

Estúdio: Brain´s Base | Diretor: Keiji Gotou | Fonte: Mangá | Ano de Publicação do Mangá: 2020 | Estreia do Anime: 2020
Sinopse
Aos 11 anos, Kotoko Iwanaga foi sequestrada por yokais por duas semanas e convidada a se tornar a “Deusa da Sabedoria”, uma mediadora entre o mundo dos humanos e dos espíritos, o que ela facilmente aceitou mas com o custo de perder o olho direito e a perna esquerda. Agora, seis anos depois, sempre que os yokais precisam de ajuda, eles chamam por Kotoko. É quando ela conhece Kurou Sakuragawa, um estudante universitário de 22 anos que acabou de terminar um relacionamento. Ao tentar se aproximar do rapaz, na tentativa de casar com ele, Kotoko percebe que existe algo a mais nele e o convida para resolverem juntos os casos sobrenaturais do país.
 
Review
O principal objetivo da arte é envolver quem a experiencia na tentativa de transmitir uma mensagem. Paradoxalmente, conquistar esse envolvimento exige um disfarce, porque mascarar o seu próprio desejo é o que encoraja as pessoas a entrarem no que foi proposto, e porque a beleza da arte está no quão engenhosos podemos ser ao nos expressarmos. Logo, eu não posso simplesmente chegar aqui e dizer que a Deusa da Sabedoria de um mundo, ao lado de um imortal e uma policial enfrentaram um fantasma numa luta de ficções. Isso é um feto de uma ideia sobre o qual devo me debruçar, esmiuçar detalhes: desde conceber como esse mundo é, quem são esses personagens, o que essa premissa me propicia explorar em termos temáticos, entre outra porção de coisas. E numa obra audiovisual é muito importante considerar as minhas potências; que é preciso, para além de texto, pensar em como as imagens e os sons (a música, a fala) vão me envolver (ambientar) e contar essa história. 
 
Com algum tempo de jornadas por diversos mares, diversas histórias, aprende-se que entregar a informação  de bandeja é, além de preguiçoso, ruim. Sendo bem direto: diálogo expositivo deve ser evitado. Ele é uma ameaça às máscaras da arte, pois costuma rasgar os panos que encobrem as mensagens “secretas” dos autores, extraindo força de seus trabalhos (o que não significa que não seja um recurso válido). Entretanto, aprende-se também que a arte têm suas lá milhões de possibilidades e jeitos de funcionar e é tudo uma questão de encaixe e, muitas vezes, coragem. Hunter x Hunter, um dos maiores shounen, diria, um dos maiores mangás (uma das maiores histórias!) de todos os tempos usa o diálogo expositivo não só como um recurso frequente mas como um de seus alicerces estéticos. Hunter x Hunter é diálogo expositivo. Não à toa as pessoas sempre debocham que ele poderia ser uma novel de tanto texto. Mas é isso que faz ele ser o que é: a audácia de Yoshihiro Togashi em pensar cada detalhe, cada possibilidade a partir de um conceito que ele mesmo desenvolveu (o nen) é que cria os embates psicológicos que sustentam a narrativa. 
 
Digo tudo isso, porque foi inevitável não lembrar de Hunter x Hunter ao receber Kyokou Suiri no prato. A doçura e agressividade de Kotoko Iwanaga poderia ser um pedaço cativante de só mais um anime de loli razoável. Neste inverno japonês, no entanto, Kyokou Suiri se mostrou um floco de neve especial pela maneira com que conduziu sua tensão, sua leveza e espontaneidade através dos seus diálogos, inclusive dos expositivos. 
O primeiro episódio é uma abertura muito honesta. Kotoko e Kuro (o imortal) se conhecem (ou reencontram) e começam a conversar. Sim, conversar. E explicação, e memórias… e quando você percebe, embarcou num script fluido e foi fisgado por uma reviravolta. Nos episódios seguintes, dois casos se desenvolvem e são solucionados, ou mais ainda, são sustentados pela força e fluidez do script. Ao mesmo tempo em que ele articula mistérios, enfiando os personagens em viagens lógicas, vendo e revendo pistas e possibilidades (e aí que tá, sobretudo, a semelhança com o Hunter x Hunter), ele consegue com que todas as interações do elenco sejam vivas e naturais. Iwanaga transita tranquilamente tanto entre uma Deusa, de fato sábia, capaz de incríveis deduções quanto em apenas ser uma garota meio ácida e uma namorada insegura que gosta de piadas de duplo sentido, da mesma maneira que o Kuro vai além de um ser imortal e é também um jovem calmo, de quem é difícil extrair os verdadeiros sentimentos. São todos personagens muito críveis formando um elenco cheio de química. 
 
Vale destacar que a dinâmica entre os personagens é bastante curiosa: os três principais são formados por um casal e a ex do cara. Em nenhum momento o Kuro sai de gostosão ou isso vira um harém. O roteiro de Kyokou Suiri sabe onde pisa. O que vemos são diálogos sobre desconfortos muito comuns em relações de ex-namorados, coerentes numa situação em que por acaso eles precisam estar juntos novamente depois de muito tempo sem se ver. Eu gosto, por exemplo, quando a Saki diz que embora consiga falar com Kuro após o término, ainda não se sente confortável em tocá-lo. Até mesmo o ciúme da Iwanaga, que às vezes proporciona uns momentos meio bestas, tem um sentido em estar presente.
Para que tudo isso funcione, o anime se arrisca numa direção mais apática. Se normalmente, uma música engraçada tocaria nas partes de humor e os personagens fariam caretas cartunescas, o diretor Keiji Gotou optou por menos exagero nas expressões faciais sem deixar de perder a emoção das cenas bem como a ausência de trilha sonora ou apenas permanecer com uma mesma música na cena inteira, permitindo uma transição de emoções orgânica durante todo o diálogo (que é sério). Talvez, por isso, o anime pareça um pouco seco. No entanto, é essa escolha de direção, aliada a um mundo fantasioso (que é como o nosso, exceto pelas figuras mágicas que o habitam) e uma dinâmica de elenco tão real, que dão a Kyokou Suiri uma singularidade. 
 
Essa mistura é ainda mais valiosa quando o show assume a sua intenção de discutir ficções. Não dá pra dizer exatamente que é um viés temático, porém o seu conflito principal se resume a como produzir uma ficção e isso dá um brilho maior a parceria entre estética narrativa mais rígida e real dos diálogos racionais e a estética visual fofa e fantasiosa das criaturas: é como se existissem dois mundos, duas realidades, versões diferentes. E, claro, é um mérito muito grande da história a forma com que abordou um caso sobrenatural. A justificativa da existência do fenômeno e a proposta de solução foram engenhosamente fora do comum. 
O que faltou à obra foi medir em certos momentos quando diversificar um pouco os métodos. O (curto) arco da cobra é praticamente todo uma grande chatice até a gente entender do que de fato ele se trata – por isso, eu te peço um pouco de calma, porque vale muito a pena, mas bem que caberia uma direção um pouco mais dinâmica e ousada. A mesma coisa vale para o arco final, em que por uns 4 ou 5 episódios, se foca na mesma situação e vemos na tela basicamente a mesma coisa: o universo das deduções de Iwanaga, transita um pouquinho pras reações da Saki, aí o Kuro lutando, aí dedução da Iwanaga, Saki… e em certo ponto, ainda que o encaixe da trilha sonora, o esforço visual da direção e a solução astuciosa de conflito que está acontecendo sejam notáveis, a experiência se tornou um pouco cansativa. 
No fim, o anime pode ou não ser do seu agrado, mas ele certamente se sobressai pela coragem estética e narrativa e por quão diferente conseguiu abordar uma história de fantasmas. Genji Kotou, o diretor, é um cara experiente no ramo com algumas direções, muitos designs de personagem e quadros-chave na bagagem. Inclusive já trabalhou ao lado de caras como o Kunihiko Ikuhara (Sarazanmai, Utena, Mawaru Penguindrum). Então confie! Dê uma chance a Kyokou Suiri.