Dororo acabou… mas ainda queremos dançar | Review

| Direção: Kazuhiro Furuhashi (GetBackers, Hunter x Hunter) | Roteiro: Yasuko Kobayashi (Jojo’s, Death Note, Shingeki no Kyojin) | Estúdios: MAPPA (Garo, Yuri! On Ice, Zankyou no Terror) e Tezuka Productions (Oniisama e, Black Jack) | Fonte: Mangá |

Sobre
O trem desgovernado se aproxima. O controle do destino está em suas mãos: de um lado, uma nação inteira sobre os trilhos, do outro, apenas uma criança. Na sua frente, a alavanca que decidirá o futuro. Algumas vidas valem mais que uma?  É justo sacrificar um indivíduo em prol de uma nação? Daigo Kagemitsu tem a resposta clara como as chamas do fogo. O desejo de proteger seu povo e obter renome ferve ao ver doenças e a fome abaterem suas terras e, assim, ele decide renegar a Buda e oferecer o próprio filho às bocas salivantes dos demônios em troca de um futuro próspero. Entretanto, um deles falha e a criança sobrevive; resta uma carne grotesca recém-nascida, envolta num vermelho pulsante, sem membros ou pele. 

Eis a origem do silencioso Hyakkimaru, guerreiro errante que anseia pela vida extorquida de si. Ao lado da extrovertida Dororo, ele lutará incansavelmente por seu corpo, desafiando os demônios e o bem-estar das terras de Ishikawa, protegida por eles. Mas se as mãos do lorde Daigo, diante do recheado Dilema do Trem, não tremularam, tanto o espectador quanto a Dororo precisarão de 24 episódios para elucidar a mente e se impor sobre a alavanca.  

Análise

Num primeiro momento, a resposta parece muito clara. A ida de Daigo ao Salão dos 12 Demônios é verbalizada dentro da história como uma rendição ao caminho do mal. São palavras contumazes, reafirmadas em ecos ao longo da primeira parte do show através das duras batalhas de Hyakkimaru e da dor causada pelas partes recuperadas de seu corpo. A partir do encontro entre ele e o seu negado núcleo familiar (incluindo o próprio Daigo), as coisas mudam de configuração, e o show passa a construir as demais camadas e apresentar os vilões de maneira fidedigna: o pai, Daigo, governante com uma grande responsabilidade sobre os ombros; o irmão, Tahoumaru, quem deseja seguir os passos do pai; e Nuinokata, sua mãe, mulher coberta pelo fel amargo da culpa. Todos, personagens tangíveis que precisam fazer (e fazem) suas escolhas justificadamente e, como uma boa história manda, entre desavenças. 

Do outro lado, Hyakkimaru preenche sua solitude e fragilidade com as partes artificiais lhe dadas pelo velho Jukai e a enorme presença da pequena Dororo. Ela tem um charme único, saído da sua espontaneidade de criança. Fala pelos cotovelos! Barulho preenchedor do silêncio do companheiro calado – agora não mais aquele cara sarcástico do material original de Osamu Tezuka. O clima soturno da obra, já presente no mangá e aqui aprofundado, então, ganha um bonito contraste sem exageros, sem perder a linha. Nem desgraça demais, nem felicidade de menos. Dororo, na verdade, é um brilho de esperança sobre os olhos cegos de Hyakkimaru. Uma porta com novas possibilidades para esse homem de destino tão estreito.

Cada órgão e sentido recuperado é um novo lampejo de vida para o guerreiro. A lenha que eterniza o fogo da vida, no entanto, continua sendo a presença do outro. Quando Hyakkimaru descobre o mundo dos sons, seu corpo padece em choque até encontrar a linda canção de Mio. Os contornos de sua vida mais uma vez se alteram, se abrem. E de modo singelo ele consegue reciprocidade, tocando-a com mãos gentis que destoam das que normalmente a tocam.

Uma vez juntos, os dois não se soltam mais. Estão em eterno diálogo. Ambos compartilham narrativas de esforço excessivo. Mio sonha um mundo feliz, onde ela e suas crianças, tão novas mas já vítimas do doloroso mundo da guerra que Dororo oferece como palco, possam viver em paz. O custo de realizá-lo é cobrado pelas mãos violentas dos guerreiros que ela sacia durante a noite. Enquanto isso, contagiado por esse mesmo sonho, Hyakkimaru luta contra o oni que ocupa as terras almejadas pela mulher. Fraco, ainda sem condições de combate, ele sofre. O corpo é, afinal, uma ferramenta feita para lutarmos pelo que queremos; aqueles que não podem fazer com suas próprias mãos, carregam no lugar delas, lâminas afiadas para que possam, também, ter o direito de conquistar. Essa impotência faz Hyakkimaru ficar cada vez mais distante de abdicar da sede por um corpo. E nós compramos essa ideia.

Mas é também o fim deste arco o responsável pelo primeiro vislumbre de dúvida. A vingança, como bem sabemos, é corrosiva e corrompe o próprio indivíduo que a busca. Ao chegar a última vez em que a música de Mio embeleza seu mundo, Hyakkimaru não consegue suportar mais uma perda e, despedaçado, preenche-se com um pedaço de ódio. É claro, Dororo está lá para contê-lo. Mas até quando?

Aí entra o injustiçado roteiro da segunda metade do anime, grande contribuidor para os maus-tratos a mente do espectador e de Dororo. Ele não só aproveita muito bem situações passadas para delimitar seus conflitos, como joga a camada definitiva criadora da incerteza fatal diante da alavanca no Dilema do Trem. Um exemplo do primeiro é o episódio em que um ayakashi transforma-se na mãe de Dororo para conduzi-la a uma queda d´agua e devorá-la. O episódio sucede o encontro entre Hyakkimaru e sua mãe, que por sua vez, sucede um outro que explora o passado de Dororo e sua já falecida família. Há um conflito interno entre os protagonistas, sendo Dororo uma grande crítica da postura vingativa de Hyakkimaru e inserir o elemento materno trata-se de uma jogada perfeita.

No que tange a temática, o evento com a mariposa-demônio alude claramente à dinâmica entre Daigo e suas terras. O chefe da vila onde Dororo e Hyakkimaru param nessa ocasião, embora alimentasse o demônio com viajantes, o fazia para garantir a prosperidade do povo. Hyakkimaru os vence no fim, mas o cenário desolador de morte (das pessoas, das terras) após o confronto entristece profundamente Dororo, porque ela consegue traçar um paralelo com a narrativa de seu companheiro. Isso é tão conflituoso entre os dois, que os separa.

Vale lembrar que é logo depois desse evento que a Dororo ganha um excelente arco onde precisa lidar sozinha (sem o “aniki”) com um conflito que rememora a época de seus pais. Todo o conflito envolve se relacionar com um vilão do passado e a resolução, em torno de deixar para trás ou para outro momento algo que lhe pertence. É desta forma que o anime se congratula com uma escrita competente, desenhando avidamente seus protagonistas e oferecendo diferentes respostas para a trama central.  

O enchimento final antes de caminhar para o derradeiro conflito é a narrativa de Jukai, o homem que criou Hyakkimaru. Ex-algoz de soldados e civis durante a guerra, ele tenta se desculpar com o mundo criando próteses de partes do corpo. Restaurando as pequenas mortes das pessoas, ele segue a vida até o passado lhe cobrar a dívida de seus pecados. Jukai, então, opta por cuidar dos mortos. Daqueles que já não podem mais cobrar. Mas no meio de tudo isso, existe Hyakkimaru, um alguém (um outro) que vai justificar a vida desse homem que já não consegue mais se suportar vivo. Alcançar o auto perdão é uma jornada árdua trilhada por este personagem, de uma escrita impecável que usufrui dos demônios de maneira simbólica e salienta mais uma vez o valor de uma vida.

Falemos agora de polêmica! Ponto polêmico é a parte visual, bastante impressionante e consistente na primeira metade do show, mas que desanda no segundo cour. Esse é um ponto complicado, envolvendo opiniões justas, um pouco de desconhecimento da indústria da animação e exageros… Vale lembrar que o Mappa é um estúdio com trabalhos bem interessantes ultimamente, porém já conhecido pela queda na qualidade visual na segunda metade de seus shows, como Banana Fish. O que é relativamente normal em animes de dois cours (24 ou 26 episódios, geralmente, sem pausa). 

No caso de Dororo, parte da animação ter ficado com o Tezuka Studios, um estúdio bem inferior, também contribuiu para a diminuição da qualidade. O que jamais deve ser intrinsecamente atribuído à direção de Osamu Kobayashi no episódio 15 (o polêmico). Ali, tem uma questão de estilo, muito único da parte do diretor encarregado, unicamente ruim, de verdade, na trágica cena do Hyakkimaru subindo a montanha (tá permitido chorar sangue nessa). Os demais desconfortos vem da excentricidade do Osamu.

De todo jeito, a parte final ganhou um carinho da produção nas cenas de luta. Tahoumaru e Hyakkimaru trocaram espadas em belas e fluidas coreografias. O animador Keiichiro Watanabe proporcionou cenas maravilhosas com sua inusitada participação. Para quem não conhece, ele fez cortes excepcionais nas duas temporadas de Mob Psycho entre outros animes. Apenas uma pesquisa no site Sakuga Booru é suficiente para encher os olhos com a beleza do trabalho desse homem. Outra participação marcante foi a de Shinzaku Kozuma, autor de cortes muito bons ao longo de todo o anime. 

Corte feito por Keiichiro Watanabe.

Mais de cinquenta anos após a publicação do mangá, Dororo esteve de volta às telas com um toque moderno. Nem o traço nem a narrativa icônicos e despretensiosos de Osamu Tezuka escaparam da renovação. A direção de Kazuhiro Furuhashi aprofundou a soturnez do tom do original ao abraçar a desgraceira. Com sensibilidade, ele conseguiu desviar da apelação e usufruir desse elemento como ambientação, sempre aliado às histórias contadas e à temática central da obra: o valor da vida.

Seja bom cavador, espectador! E seja rápido! O trem desgovernado está próximo. Seu som é ensurdecedor. A alavanca em suas mãos, escolha! Ainda que, admito, o show te dê uma resposta, ele tem seus próprios recursos dentro da história. Mas e você, no mundo real, o que faria? O dilema do trem é um dos mais antigos de nossa moral e persiste dificílimo.

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