Desenvolvimento de Personagem:

Recentemente, tenho pensado em personagens, o que provavelmente é porque estou sempre pensando em personagens. Ser capaz de escrever personagens realistas, consistentes e multidimensionais é vital para ganhar o leitor/telespectador. Independente de qualquer outra coisa, é o elemento humano da história que vai ressoar com as pessoas. E eu acredito que o desenvolvimento e o crescimento de personagens multifacetados sempre dizem algo além desses personagens em específicos – personagens são a porta de entrada para muitas das verdades mais universais da ficção. Então, hoje, no nosso artigo quinzenal, tomaremos nota de como olhamos e avaliamos os desenvolvimentos de personagens!

Como avaliar o desenvolvimento de um personagem? A resposta a essa pergunta é basicamente uma vida inteira de estudo, mas acho que podemos começar e atacar aqui algumas noções básicas. Primeiramente, devo enfatizar que nem todos os personagens  precisam de desenvolvimento significativo de personagem. Os personagens geralmente trabalham a serviço de narrativas e, muitas vezes, são necessários apenas para um papel ou momento específico dessa narrativa. Às vezes, personagens não em desenvolvimento são realmente o ponto, e às vezes os personagens “se desenvolvem” em direções que são realmente negativas ou autodestrutivas. “Crescimento pessoal mais bem articulado” não é necessariamente o fim da escrita de todos os personagens. 

Por exemplo: O Som e a Fúria é um livro sobre personagens que são incapazes de escapar de suas próprias naturezas, mas que são vividamente bem realizados como pessoas. O Retrato de Dorian Grayaté onde ouvi, é uma história sobre um homem afundando em seus piores instintos, que capta a racionalidade teórica de cada passo individual com graça fantástica. O Apanhador no Campo de Centeio fornece um instantâneo perfeito do solipsismo arrogante do final da adolescência, e não tem interesse em retratar seu protagonista crescendo fora desse estado. O narrador de Lolita é completamente incapaz de auto-reflexão significativa do começo ao fim, e termina sua história com um triunfante “pelo menos eu não sou aquele cara” em resposta a alguém exatamente como ele. Os personagens não precisam crescer para se sentir convincentes como pessoas plenamente realizadas, e nem toda a história é sobre crescimento pessoal.

Spoilers de Bebop à frente: Cowboy Bebop talvez seja o ponto de referencia mais gritante de como “nem toda a história é sobre crescimento pessoal” – é um programa sobre um grupo de personagens presos em um barranco – a maioria do elenco eventualmente supera esse momento e segue em frente, mas Spike não consegue, e assim a série termina do jeito que terminou. É basicamente uma clássica narrativa do “velho soldado”, em que um ex-guerreiro não sabe como fazer para seguir uma nova vida em um tempo de paz. Spike sendo um personagem estático é o ponto – nem ele nem Vicious foram capazes de ir além de seus passados, e assim ambos são eventualmente consumidos por ele.

Com tudo que  é estabelecido, se estamos falando de histórias em que o desenvolvimento de um personagem como pessoa é central para a narrativa, na maioria das vezes se resume a dois fatores principais: “esse desenvolvimento parece uma evolução coerente da natureza dessa pessoa” e “é este um desenvolvimento obtido pela narrativa”. Em termos da primeira questão, escrever um desenvolvimento de personagem convincente primeiro requer um personagem com uma variedade de qualidades pessoais – forças e fraquezas, objetivos e medos, esperanças e arrependimentos, e um senso claro de identidade. Quando pessoas reais passam por grandes experiências de vida, elas são inevitavelmente transformadas pelo processo, e criar um personagem inicialmente bem-realizado é crucial para transmitir posteriormente a sensação de que esse personagem realmente cresceu.

Os personagens devem sempre refletir sua natureza em suas ações. A menos que você possa realmente acreditar em suas ações a partir de sua perspectiva, você não está escrevendo um personagem com um visão de mundo legítima, você está escrevendo a extensão de uma diferente visão de mundo.

É fácil criar um personagem que simplesmente incorpore algum valor ou conceito único que um público específico gostaria de incorporar – comumente Isekais tomam isso para suas escritas -, mas criar alguém que se distingue do público, mas que ainda seja coerente e acreditável como pessoa, é mais difícil e muito mais valioso. Uma vez feito isso, só então é possível escrever ou engajar-se criticamente com seu desenvolvimento, o que geralmente envolve seu personagem atual passando por uma experiência que desafia seus preconceitos, forçando-os assim a sofrerem auto-reflexão e emergirem com uma nova, concepção única de seu lugar no mundo. 

Essa descrição basicamente cobre o amadurecimento no sentido humano do mundo real, mas só isso não pode criar uma narrativa satisfatória. Na verdade, as histórias são em grande parte sobre imitar a vida real de tal maneira que elas se sintam mais satisfatórias e coesas do que a própria vida. Em termos de desenvolvimento de personagem, isso significa que o crescimento de um personagem deve emergir de desafios analisáveis ​​dentro da narrativa, e sua mudança final deve ser uma reação satisfatória a esses desafios específicos. 

Demasiadas vezes, os personagens e o enredo são vistos como entidades separadas – a tal ponto que muitas vezes os colocamos uns contra os outros, tentando determinar o que é mais importante. Mas nada poderia estar mais longe da verdade. O enredo e os personagens são essenciais um para o outro. Remova qualquer um da equação (ou até mesmo tente abordá-los como se fossem independentes uns dos outros), e você corre o risco de criar uma história que pode ter partes impressionantes, mas que não será um todo incrível. 

Um dos exemplos que posso citar que realmente obedece a um tradicional “personagem com um problema que passa por lutas e aprende com a experiência, chegando a um maior autoconhecimento no processo” padrão é Hibike! Euphonium, e isso é em parte porque Hibike! Euphonium é um drama conjunto que tem apenas o *tempo* para dar a cada um de seus personagens narrativas relativamente diretas. Euphonium é bem escrito no modo como essa cultura, de “desenvolvimento de personagem”, espera que as histórias sejam bem escritas – personagens como Kumiko, Reina e Asuka têm claras restrições/perturbações emocionais obstruindo seu caminho, e suas lutas para lidar com seus próprios sentimentos e aprender a superar essas fontes de problemas emocionais é a substância de suas narrativas.

Em contraste, Koe no Katachi é uma história em grande parte sobre pessoas que já cresceram até certo ponto, mas que ainda carregam consigo as cicatrizes do passado. Os protagonistas Shouya e Shoko lutam com uma auto-aversão profunda nascida de eventos do passado, e o drama da história está em grande parte relacionado a eles aprenderem a perdoar o passado, e não deixar que isso destrua suas vidas atuais também. Trata-se da dificuldade de comunicação e de como todos nós carregamos nosso passado conosco, o que me parece um retrato muito mais preciso da dificuldade de crescimento do que simplesmente evoluir para além de nossos problemas passados.

E, então, temos Evangelion, que não tenho certeza se qualquer outro anime fez um trabalho melhor em articular a complexidade total de seres humanos danificados, e a dificuldade de se comunicar e crescer mesmo quando tudo o que queremos é nos comunicar e crescer. Shinji passa por muitos ciclos de auto-ódio e auto-aceitação, muitas vezes fixando sua capacidade de amar a si mesmo na aprovação daqueles que o rodeiam. Personagens como Asuka e Misato são igualmente ricos, seus eventos traumáticos formativos refletem apenas uma pequena parte de sua complexidade como seres humanos. Em Evangelion, o crescimento é como a própria conexão humana – simultaneamente impossível e inevitável, uma das muitas contradições enlouquecedoras inerentes à tentativa de simplesmente viver conosco e com os outros. Novamente, para ser honesto, eu sou bastante suspeito sobre a atual tendência online para definir “desenvolvimento de personagens claro, em várias etapas, com um início e um ponto final coerentes”, como o fim da escrita de todos os personagens. Os seres humanos reais não funcionam assim, e é uma maneira muito simplista de avaliar os personagens e o desenvolvimento humano. Nós viajamos em caminhos sinuosos em direção a um maior autoconhecimento, geralmente internalizando lições positivas e negativas no caminho, e às vezes até nos tornando mais dogmáticos e de mente fechada devido à experiências. Na ficção, queremos que os personagens que gostamos cresçam e experimentem coisas boas e sejam recompensados emocional e intelectualmente por suas lutas, mas a grande ficção muitas vezes desafia essa narrativa idealista, e a grande escrita não exige que os personagens acabem onde gostaríamos.

Em vista disso, o desenvolvimento de personagem, caso central para a historia, é sempre uma espécie de compromisso entre humanizar psicologicamente seus personagens e garantir que eles contribuam para uma estrutura narrativa coerente e dramaticamente satisfatória. Seus personagens devem se sentir simultaneamente ricos em profundidade e “solucionáveis” em termos de batidas dramáticas, o que é um equilíbrio complicado de se atacar. 

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