Kino no Tabi (2003) | Análise

Autor do texto: Xqnasc
 
 
Obs: Como Kino no Tabi é episódico, ou seja, há vários arcos fechados, abre espaço para cada episódio ter sua interpretação. Entretanto, o texto irá propor uma abordagem mais geral do anime. Esse texto conterá spoilers.
 
Kino no Tabi: The Beautiful World é um anime adaptado de uma light novel de mesmo nome, que conta a história de Kino e seu motorrad Hermes, em uma jornada que busca conhecer mais sobre a cultura de diversos países, ao mesmo tempo que tentam entender mais sobre o mundo em que vivem.
 
O fato é, Kino no Tabi é um anime muito contemplativo pelos temas que aborda e principalmente pela sua excelente execução narrativa, no qual a sutileza predomina.
 
Um grande exemplo é a personagem Kino. A protagonista é desenvolvida de forma meticulosa. Sua conduta é fria e pouco expressiva, mesmo em algumas situações extremas. Porém, é uma personagem que ainda possui sentimentos, só que esses são internalizados, não manifestados de maneira explícita, até como modo de não demonstrar fraqueza.
 
Para transmitir tais sentimentos o anime usa informações tácitas, uma estrutura de vários elementos que terão que ser deduzidos para conceber a ideia –  um roteiro refinado e sutil.
No ep2, Kino atribui a ajuda aos perdidos (num diálogo com Hermes) a sentimentos supérfluos, como vaidade e ganância. Porém, para fazer tal caridade, Kino teria que sentir uma grande empatia em relação a eles, pois havia grande empatia com os coelhos (que serviam como alimento aos perdidos), ao ponto de rezar por eles e sentir-se em dívida ao matá-los.
 
Logo, a resolução do episódio em que os perdidos revelam-se como assassinos que trairiam-a afetou profundamente Kino. Note que nada disso é verbalizado em diálogos ou demonstrado explicitamente nas expressões de Kino, mas expresso na sutileza da montagem e do roteiro.
 
A montagem, ao contrário do reboot de 2017, é condizente e eficiente. Estranhamente no reboot, a montagem se assemelhava muito com uma de comédia romântica, com planos  detalhes que salientam características atrativas de alguns personagens. Nesse, além de não possuir tal quebra de atmosfera, em monólogos longos, os planos mudam regularmente, por vezes realizando suaves movimentos de “câmera”, oferecendo dinamismo. A montagem corrobora também com a situação – no episódio 1 o diretor se concentra em mostrar janelas e portas vazias, salientando o despovoamento do local. No episódio 10, há uma plano que permanece estático por 10 segundos ocultando a família robô atrás de uma porta, gerando suspense sobre como seria aquela família.
 
A atmosfera pessimista e o sentimento vazio é criado durante o anime a partir de histórias trágicas e temas que remetem ao desconforto humano sobre sua limitação epistemológica e aos propósitos, razão do ser. Nutrido também por cores lavadas, uma trilha branda e traços sóbrios – contido nas emoções e caprichos.
 
No episódio 10, os robôs com a morte de sua dona possuem um final trágico, suicidam-se por não terem razão para existirem. No 11, “love and bullets” o criminoso que possui esperança na sua redenção é enganado pela moça que a ofereceu. Ainda no 11 “A história do sábio”, o eremita que supostamente não possui nenhum objetivo caí em lágrimas ao descobrir que nada serviu sua dura caminhada em descobrir como voltar a ser como antes.
 
Cabe aqui também uma reflexão do episódio 5 “workable”. Quando Kino conversa com o trabalhador da fábrica e o pergunta do porquê está trabalhando mesmo não havendo aparentemente nenhuma finalidade – naquele país, não havia nenhuma necessidade de esforço humano para subsistência – , ele responde “é para se estressar” e ao longo do tempo argumenta que humanos precisam de obstáculos. Mas o mais interessante da cena é o final, Kino pergunta “Você gosta de viver nesse país?” e no final o trabalhador acaba não respondendo por voltar o trabalho. É deixado em aberto.
 
Aqui entra o aspecto contemplativo sobre a culturas de diferente países de Kino no Tabi, conjecturar a validade das ocasiões e os corolários que podem surgir da premissa. E nesse caso em particular, supor tantas outras formas de obter um sentido do que um trabalho enfado ao ponto de pessoas terem úlceras e cometerem suicídio – transparecendo a melancolia e conformismo daquele povo.
 
Conectados no mesmo episódio e também tematicamente ocorre a história “on the rails”, que possui uma situação parecida, no qual os 3 trabalhadores dos trilhos realizam um trabalho sem nenhuma finalidade produtiva, porém eles não estão cientes desse fato e continuam trabalhando devido a essa crença, ao contrário da situação anterior. O problema é que eles trabalham nesses trilhos a no mínimo 50 anos, caso soubessem sentiriam um agudo abatimento. Tudo seria em vão.
 
No 3° trabalhador já há o fator ironia dramática que eleva a tensão. Sabemos uma informação importante que o personagem não sabe, ao mesmo tempo que aguardemos caso Kino irá falar a verdade ou não.
 
Percebe-se que o conflito em Kino no Tabi não está na ameaça física, mas no dilema dos personagens apresentados na trama, que também caracteriza o aspecto psicológico do anime. 
Desconforto sobre o obscuro – ambas as cenas ocorre ao problema da indução – .

Algumas histórias são análogas ao dilema central da protagonista – o porquê dever continuar a viagem – . Porém não há uma evolução na personagem no sentido de passar de um estado para outro, ultrapassar seu conflito. A sequência dos episódios não representa uma sequência cronológica – por exemplo, o episódio 13 se passa antes de todos os outros – , o que contribui ainda mais para esta situação da personagem.

Embora não tenha uma evolução, o chamariz da personagem é ser intrincada e enigmática – desse modo imprevisível – . Se conhece mais sobre ela ao longo dos episódios, e também se reforça algumas percepções.
 
Uma das características de Kino é não permanecer mais que três dias em um país, por receio de criar vínculos e afeição, no qual podem interromper a sua viagem. Ela cumpre rigorosamente tal principio, a exceção é o episodio 13. Neste, Kino expressa que quer permanecer alguns dias a mais no país em questão, ou seja, especialmente, Kino demonstra não ter medo de se afeiçoar e assim correr risco de acabar com sua viagem. 
 
Desde modo, Kino que possui como razão de sua existência perambular por diversos países, indica pela primeira vez não ter receio de ter uma finalidade nova – se estabelecer e ter relações naquele país.
 
Kino vê naquele local um ambiente, ao contrário dos outros países, caloroso, receptivo, onde pessoas amam, casam, e na figura de Sakura, identificação e amizade  – a montagem da cena no começo do episódio se assemelha bastante a chegada do Kino original no episódio 4  – .
 
Por isso é tão impactante o desfecho do episódio. E ganha proporções maiores, pois nunca presenciamos Kino se expressar explicitamente sentimentos profundos da maneira como ocorreu – agonia e desespero. Corroborando com a ideia de mesmo sendo episódico, é importante assistir o anime na ordem.

No fim, a conclusão que faço, é que Kino é uma personagem confusa, insegura e não linear. Vai sendo definida ao longo da narrativa. Ora aparenta está certa de sua vocação de viajar, ora se questiona sobre o sentido maior de sua viagem. O sentimento vazio e de incompletude jaz nela.

Talvez, Kino possui certeza que o mundo é bonito, mas ainda tenta encontrá-lo.
Nota: 9.5/10