A Composição de Vôo de Miyazaki:

Miyazaki é uma lenda – não há duvidas quanto a isso. Existem tantas partes de seus trabalhos que funcionam como mundos inteiros que talvez a parte mais difícil nos primeiros instantes seja escolher sobre o que falar. Há uma variedade de mundos a se adentrar. Já examinei, por exemplo, um campo mais amplo de seu trabalho – sua animação. Contudo, trabalhando com algo tão amplo como a animação perdemos as nuances dos diversos núcleos que existem ali dentro (cores, fundos). 

Hayao Miyazaki ama aviões. Qualquer um que tenha visto seus filmes sabe que o vôo é constantemente recorrente como um motivo. Às vezes, apenas no fundo da história, às vezes, como centro narrativo. Pense em “Nausicaä do Vale do Vento” (1984), em “Laputa: O Castelo no Céu” (1986), em “Porco Rosso” (1992), em “O Castelo Animado” (2004) e não menos em “O Serviço de Entregas da Kiki” (1989). Em todo lugar as coisas estão no céu. Em aeronaves, em pranchas futuristas, em balões de ar e zepelins, em vassouras. Junto com os temas ecológicos e espirituais que Miyazaki está constantemente voltando, o sonho de navegar pelo céu é o que une sua arte. Não é de se admirar, então, que ele ocorra no centro do palco em “Vidas ao Vento”, o filme que talvez seja o último do mestre animador. Hoje, vamos adentrar no mundo flutuante de Miyazaki. Veremos sua capacidade de compor sequências nos céus.

Uma das características mais ressoantes quando falamos de movimento nos filmes de Miyazaki (sendo a base quando falamos da animação no ar), é a abundância de dispositivos estranhos e implausíveis que, apesar de tudo, voam pelos céus ou se movem sobre a Terra. Ao olharmos para tais dispositivos nos deparamos com a incoerência deles. Geralmente, tais veículos parecem muito volumosos e pesados ​​de mais para se moverem. Em Laputa: O Castelo no Céu (Tenkuu no Shiro Laputa – 1986), especialmente na sequência inicial com o título, há as aeronaves que parecem combinar dirigíveis, bicicletas e hélices, e é preciso imaginar como esses dispositivos poderiam decolar; assim como os castelos no céu, eles parecem pairar ou flutuar em vez de voar no sentido de acelerar pelos céus. Enquanto as naves de Nausicaa (Kaze no Tani no Nausicaa – 1984) não parecem totalmente diferentes de nossos aviões, os frascos voadores e os grandes dirigíveis desafiam nosso senso de aviação. 

Miyazaki parece gostar de entidades bulbosas com muitas pernas finas ou hélices; veículos tão diferentes como o ônibus-gato em Totoro e o castelo em O Castelo Animado (Howl no Ugoku Shiro – 2004) são essas entidades. Os insetos gigantes de Miyazaki em Nausicaa e aviões inspirados em insetos em outros filmes (como os em Laputa: O Castelo no Céu) também parecem ao mesmo tempo absurdos, mas estranhamente coerentes; são grandes e com muitos membros, mas ainda rápidos. Às vezes, veículos familiares ocorrem em combinações anacrônicas: no O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no Takkyuubin – 1989), temos a transformação feita pelo garoto Tombo de uma bicicleta em um avião. Tanto bicicleta quanto o avião são duas entidades/veículos comumente conhecidos por nós, mas Miyazaki os combina. Somando tudo, esses veículos divertidos e excêntricos, muitas vezes com muitas pernas batendo ou braços girando são o que os tornam caprichosamente acessíveis ao corpo humano; parecem calculados para evitarem um design ‘balístico simplista’ (como o design de foguetes).

Miyazaki cuidadosamente evita jatos e foguetes, e quando cita tais projeteis, eles estão intimamente associados com os males da guerra (em particular, em O Castelo Animado). O diretor usa projetos cômicos e excêntricos para abrir a ideia tecnológica de nosso mundo moderno para outros possibilidades, gerando veículos que parecem implausíveis, mas de certa forma precisos, assim refocalizando nossa percepção das tecnologias de vôo e movimento.  

Ao mesmo tempo, os arquétipos de vôo em seus filmes são aqueles que permanecem no ar com o mínimo possível de tecnologia: o planador da Nausica, o planador do Pazu, a vassoura da Kiki, o Totoro quando recebe uma rajada de vento. São em sequências de deslizamento, flutuação ou subida que as camadas deslizantes da imagem (de tais veículos) podem ser enfatizadas em seu melhor efeito. Essas tecnologias voadoras cartunescas são, portanto, associadas a um terceiro registro de animação – a animação de personagens, isto é, a animação dos corpos humanos que habitam esses mundos.

Não irei adentrar completamente no campo da ‘animação de personagem’ nas obras do Miyazaki, já que este já é um mundo a parte que vale a pena ser explorado em outro momento. Mas mesmo que eu quisesse manter tudo isso para outro dia, não tenho como desenhar mais sobre a animação de vôo do Miyazaki sem trazê-lo para a mesa.
As animações de Miyazaki destacam os corpos jovens além das energias das crianças. Geralmente, os personagens em quem Miyazaki dá a sua atenção tendem a serem crianças, velhos ou mulheres, com uma mulher adulta ocasionalmente, muitas vezes em um papel caracterizado como masculino. Miyazaki no documentário do Studio Ghibli enfatiza a importância das energias juvenis que os jovens animadores podem transmitir aos movimentos como animadores intermediários. Ele vê as energias dos jovens animadores se traduzirem diretamente em animações vigorosas e vitais. Aproveitar as energias jovens desempenha um papel importante na tentativa de Miyazaki de produzir uma relação livre com a tecnologia na animação. 

Em suma, o pensamento de Miyazaki de uma relação livre com a tecnologia na animação depende de reunir e concentrar a atenção nos corpos que voam – ao mesmo tempo, veículos e corpos humanos. É preciso existir uma reunião entre os dois, personagem e veículo. E ele faz isso em três níveis diferentes: 1- enfatizando o movimento entre as múltiplas camadas da imagem; 2- projetando veículos extravagantes e/ou minimizando as tecnologias de voo, evitando designs balísticos simplificados (como foguetes); e 3- aproveitando ou canalizando as energias dos corpos jovens dos personagens. Esses três impulsos já se encaixam lindamente nas cenas da jovem Nausicaa em seu planador em Nausicaa e aparecem novamente com Kiki subindo em sua vassoura. Você pode sentir o puxão das personagens para acalmar a velocidade de seus veículos, ou o impulso de seus corpos para ganhar velocidade. Mas é em Laputa: O Castelo no Céu, que desde o início até o final é um filme que sonha com um mundo de nuvens e ventos, que a animação de Miyazaki alcança sua expressão mais completa em sensações de voar, subir, planar ou se mover pelas nuvens ou ao longo da terra. 

O Castelo no Céu é imundado dessas sensações. Em contraste com as cenas que humoristicamente desvalorizam o design balístico ou ridicularizam os vieses simplificados no design do vôo, as cenas que abrem os cortes com deslizamento de camadas da imagem evocam sensações de assombro e admiração, sensações de um mundo cuja vastidão e profundidade são de alguma forma inatingíveis. A animação de Miyazaki é, até certo ponto, uma experiência do sublime, uma experiência estética do mundo em que o mundo excede nossa capacidade de apreendê-lo racionalmente ou de ordena-lo hierarquicamente. No entanto, na medida em que voar e animar não negam o recurso da tecnologia, por menor que seja, Miyazaki não abraça o ‘sublime romântico’ que tende a repudiar o tecnológico. Mas ele também não produz um frio e indiferente sublime tecnológico.

A sensação de deslizar camadas (que o Miyazaki oferece) é totalmente diferente de acelerar em profundidade. Pelo contrário, acelerar em profundidade é uma sensação de movimento induzido ou movimento relativo, como o que você sente quando está em um trem parado em uma estação, e o trem ao seu lado começa a se mover para a frente ou para trás – você sente que seu trem está se movendo. Ou quando seu carro se arrasta para frente em um semáforo, mas você não se lembra de ter levantado o pé do pedal, você sente que o carro à frente está recuando ou até mesmo que o mundo está se movendo. É assim que Miyazaki começa a imaginar uma relação mais livre com a tecnologia: quando o movimento é feito com camadas deslizantes, o mundo não é estático, inerte, aguardando passivamente para ser usado. O mundo não é “enquadrado” ou transformado em uma imagem. Pelo contrário, Miyazaki assegura que quando nos movemos, o mundo se move e vice versa. Essas engrenagens são plenamente sentidas nos vôos de seus shows. 

A abertura de uma relação através da tecnologia de animação para o dinamismo do mundo promete uma maneira de ganharmos uma relação mais livre com a nossa condição tecnológica moderna, para nos salvarmos dela. No entanto, apesar de parecer bastante simples de formular, tal experiência é difícil de ser apresentada. Afinal, Miyazaki não quer abraçar a arte do motor. Assim, ele pega os veículos “grandes” ou “high techs” de vôo e transporte (aviões, carros, trens) e os esvazia ou os deforma, ao mesmo tempo em que gravita em direção a veículos “pequenos” ou de “baixa tecnologia” (planadores, bicicletas, vassouras). O resultado são veículos que se encaixam perfeitamente em um mundo de camadas deslizantes. Os veículos associados à percepção do design balístico, como foguetes, são destroçados, enquanto outros veículos movidos pelo vento se sentem idealmente adequados para se moverem em um mundo multiplanar e cheio de movimento.  

Que os background da Ghibli/Miyazaki são maravilhosamente detalhados já é parte do conhecimento popular – eles, ainda, são combinados com design estilizados e boa animação, concedendo uma sensação que flutua em um território onírico; e assim seu mundo se sente vivo e cheio de maravilhas. A capacidade de alguns colaboradores como Kazuo Oga, Yoshitsu Hisamura, Nizo Yamamoto, Mitsuki NakamuraHiroshi Ohno  de construírem cenários evocativos com pinturas ásperas e seus usos poderosos de cores são um ajuste natural para o trabalho de Miyazaki. Em termos de layouts e enquadramento de planos, os trabalhos de Miyazaki, e Ghibli como um todo, geralmente priorizam a escala do exterior e a beleza da natureza. Ainda, a maior parte dos layouts são engolidos pelo céu. Toda a aventura dos programas se abrem com um segmento que enfatiza simultaneamente tanto o grande espaço que os personagens habitam quanto a distância que eles devem ter das preocupações mais comuns e relacionáveis conosco. O vento sopra em campos recheados de verde e a sensação de voo é evocada. 

Além disto, os cenários vivos de Miyazaki fornecem um referencial fixo de movimento ou ação. Grande parte da força da imagem em movimento é desviada para a composição aberta. Não é só a atenção aos detalhes e à composição, mas também a cor e a luminosidade que gradualmente caracterizam a profundidade dos filmes de Miyazaki. Isso dá uma sensação de profundidade pré-existente. Em outras palavras, o movimento de um vôo pode parecer relativo (via composição aberta), mas a profundidade não. Assim, Miyazaki produz uma experiência da natureza tão absoluta quanto qualquer coisa imaginada no 3d mais de ponta. 

Aliás, raramente no trabalho do diretor vemos do ponto de vista de um veículo em alta velocidade, e mesmo esse veículo ainda será uma motocicleta, um planador ou uma vassoura voadora. Normalmente, você não vai se concentra no destino nem no alvo, mas sim em desliza com o planador como se estivesse planando sozinho. Em Porco Rosso, há uma das mais notórias sensações de velocidade com base em quão longe as coisas estão de um observador, então quando na cidade, ou em qualquer outro lugar, a tela parece apenas ganhar vida sempre que voar for ameaçado. Dentro dessas cenas, com o céu e o mar, você tem uma noção de escala e pode ver as naves voando em seu próprio mundo 3D. Talvez caiba aqui que, embora os trabalhos Miyazaki sejam obviamente de conteúdo visualmente impressionantes, a trilha sonora de alguns colaboradores como Joe Hisashi, um colaborador de longa data de Miyazaki e da Ghibli, é excelente. Há uma qualidade leve e fresca nas cenas no ar que realmente acentuaram o conceito de liberdade ou liberação da norma ao voar. Quando no chão você tem uma sensação real de localização da música ao fundo.

A animação de Miyazaki se esforça para transformar nossa relação com a tecnologia em três registros: composições abertas, máquinas voadoras e animação de personagens. No nível da composição, a animação de Miyazaki trabalha com o jogo entre as camadas da imagem para evitar movimentos balísticos em profundidade. Ele tende a abrir a composição. No nível de máquinas voadoras, os projetos de veículos grandes de Miyazaki são frequentemente extravagantes e excêntricos, e são máquinas menores, movidas a energia humana ou eólica (planador, bicicleta, moinho de vento, vassoura) projetadas para capturar nosso senso de admiração e temor. Essas máquinas voadoras de escala humana não só combatem formas de medo da tecnologia, mas também se encaixam perfeitamente na visão lateral da velocidade e do movimento resultante da composição aberta. No nível da animação de personagem, Miyazaki constrói e transforma a linhagem Toei Animation de técnicas completas de animação. Ele usa técnicas de dobrar o eixo de movimento dos corpos humanos para transmitir um senso de dinamismo a eles. 

Com essa combinação de composição aberta, design de veículo e animação de personagem, a animação de Miyazaki produz não apenas um mundo aberto e cheio de movimento, mas também personagens que parecem dinamicamente inclinados em direção a esse mundo, de alguma forma responsivos a ele, mesmo em seu estado desatualizado.  Colocar personagens para se igualarem a um mundo tão amplamente vívido seria uma competição naturalmente injusta, desequilibrada, mas não em Miyazaki. Significativamente, essa abertura ou capacidade de resposta ao mundo do movimento total não implica uma eliminação da tecnologia. Em vez de rejeitar a tecnologia, a animação de Miyazaki se esforça para transformar nossa relação com a condição tecnológica moderna. 

Como vimos, a animação de Miyazaki se esforça para reunir e focar nossas práticas de percepção de maneira diferente, a fim de obter uma relação mais livre ou verdadeira com a tecnologia. Não de dependência e não de isolamento.  A tecnologia, então, não aparece como um problema com uma solução (melhor controle ou completa rejeição), mas como uma condição da qual podemos aprender a nos libertar, compreendendo a essência da tecnologia. Na animação de Miyazaki, são sobretudo as tecnologias de vôo que prometem uma relação mais livre com a tecnologia. Uma relação mais livre com nos mesmos. Podemos encaremos a tecnologia, tanto colocado aqui, de seus filmes, também como a parte fria humana, a parte distante do toque mais sensível humano. Muito literalmente, sua animação propõe que nos levemos aos céus de maneiras diferentes, para voar de maneiras diferentes. De fato, em seus ensaios e entrevistas, Miyazaki frequentemente desenvolve tal contraste: Hoje de um lado há aviões comerciais, jato jumbo, e do outro lado, há os primeiros dias de voo quando o vôo era maravilhoso, experiência que está associada às nuvens e à luz. Claramente, suas animações se esforçam para proporcionar tal experiência. 

O vôo tem sido um fator chave tanto na vida quanto no trabalho de Hayao Miyazaki. Em seus filmes, voar representa liberdade, esperança, magia e a pura maravilha da natureza, mas a família de Miyazaki se beneficiou financeiramente com a venda de peças de avião durante a Segunda Guerra Mundial, vivendo em relativo conforto como resultado direto do esforço de guerra japonês. Essa experiência parece ter dado a Miyazaki uma visão muito obscura da guerra, como visto em filmes como Nausicaä do Vale do Vento e O Castelo Animado, mas é especialmente pertinente para Vidas ao Vento, seu ultimo trabalho: O show conta um relato altamente ficcional da vida do engenheiro aeronáutico Jiro Horikoshi, abordando diretamente a vida de alguém que alcançou sucesso e renome por projetar armas de guerra. A quantidade de cuidado e detalhes que as sequências aéreas recebem evidenciam o amor pelo vôo de Miyazaki ao longo da vida; Porco Rosso e Vidas ao Vento talvez sejam suas mais abertas cartas de amor à voar em sua carreira, capturando toda a sua liberdade, aventura e emoção. A beleza das sequências de vôos nas obras de Hayao Miyazaki, cheias de paixão e intensidade, nascem, por um lado, de um profundo amor pelo vôo em si, e, por outro, de seu desgosto pela alta tecnologias de vôo que tanto remete a guerra. Filmes como Nausicaa, Laputa e Serviço de Entregas da Kiki vêem os personagens subirem aos céus com tanta alegria e beleza que só poderiam ter vindo da mente de um artista tão apaixonado pelo conceito.

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