Fune wo Amu (2016) A grande passagem pelo mar de palavras | Review

OBS – Essa análise possui spoilers do anime.
Sobre
A história desenrola-se à volta de Mitsuya Majime e Masashi Nishioka. Mitsuya é um homem sério que é um pobre locutor e Masashi é um homem sociável. A trama segue a sua amizade, determinação e paixão à medida que eles trabalham juntos para publicar um novo dicionário intitulado “The Great Passage”.

Análise
Normalmente não se pensa em como algumas coisas triviais – ou pouco usadas – da sociedade são criadas, isso vale para um dicionário. Não é algo comum. Esse fato se torna curioso a partir do momento em que você para e se questiona sobre o assunto. Mas, afinal, quem pensa sobre isso? Há uma falta de interesse eminente nesses assuntos. Antigamente, tanto dicionários como enciclopédias eram muito utilizados para saber sobre as palavras e o que as coisas em si significam e são, mas, hoje, com fácil acesso à internet uma dúvida dessa pode ser facilmente sanada com uma rápida busca e digitação – o que novamente tira qualquer interesse de alguém tentar parar e pensar sobre como esses objetos são feitos. Dessa forma, é totalmente compreensível que a premissa de Fune wo Amu tenha passado despercebida pela grande parcela de quem assiste anime e acompanha as temporadas. A série é baseada no livro homônimo de Shiwon Miura, facilmente encontrado como The Great Passage, recebendo uma produção animada do estúdio Zexcs com a direção de Toshimasa Kunoyanagi e o roteiro de Takuya Satou (Fate Stay Night 2006, Wixoss).
 
O anime é basicamente sobre Majime Mitsuya, que tenta buscar o sentido das coisas, junto de uma pequena equipe em uma editora que deseja criar um dicionário atualizado intitulado The Great Passage. E apesar da sinopse ser basicamente isso, o anime não se prende e muito menos se resumo a somente esse objetivo. A série foi ao ar pela Fuji TV no bloco noitaminA, e apesar do bloco não ter ido tão bem nos anos anteriores a essa adaptação, já meio se desvirtuando de sua premissa de trazer animações que se desprendam dos genérico otaku no sentido de trazer algo maior, Fune wo Amu se encaixou perfeitamente bem ao bloco ao tratar claramente de uma história muito mais madura e focada convenientemente para o público adulto. O anime lida com drama, com situações comuns de trabalho, escritório e de interesses e dificuldades – sejam elas românticas, pessoais, etc. É literalmente um ótimo exemplo para mostrar a alguém que acha ainda acredita que anime é só para o público mais infantil, ou mesmo para quem acredita que as histórias sempre são fantasias mirabolantes. Histórias como essa conseguem carregar bem o significado amplo do que as animações japonesas podem representar: é quase que literalmente uma novela ou um seriado real pelo peso de seus tema; porém é uma animação 2D. Não se vê isso da mesma forma em desenhos ocidentais, por mais que existam também os “mais adultos” por aqui.
 
 
Fune wo Amu é sobre palavras e comunicação. Ou melhor dizendo, é sobre a falta delas. O protagonista Majime tem problemas em conseguir se comunicar apropriadamente; no teor adulto da série, é notório como vários espectadores da mesma faixa de idade, assalariados, poderiam se ver no protagonista pela dificuldade de socialização e de encarar uma conversa com terceiros. Durante o início da trama soam cochichos de que ele até mesmo poderia ter algum grau de autismo pela forma resguardada e introvertida de se comunicar, mostrando como a sociedade não está acostumada – preparada – com esse tipo de comportamento que, se pararmos para analisar, não é tão incomum assim. Em contraste a Majime, Nishioka – o seu colega de trabalho – é justamente o oposto: o personagem se mostra extrovertido e isso é trabalho em seus conflitos em relação ao pertencimento à equipe e com relação ao seu orgulho próprio.
 
 
Mais do que personagens interessantes e até carismáticos, para um anime que foca em mostrar pessoas fazendo aquilo que seria considerado chato, de modo que sua execução trabalha com exímio para conseguir que o espectador se virtue e se interesse pela trama, as relações trabalhadas em Fune wo Amu são exemplares. A própria amizade entre os dois já citados progride de forma espontânea conforme eles acabam se conhecendo melhor e se respeitando pelo caminho que a história toma. Toda a equipe também deixa uma nítida expressão de desenvolvimento na relação de carinho e respeito com o velho professor Matsumoto. Nishioka com sua namorada, Remi, consegue abordar uma temática de relacionamento nada comum, de forma a tornar a essência de como é um relacionamento muito mais evidente e real dentro da série; o próprio desenvolvimento de Kaguya com o protagonista, apesar de rápida, e isso é um ponto a se questionar – é muito bonita: Majime consegue se apaixonar tão rapidamente a primeira vista que suas inconsequências como um adulto com problemas de comunicação o afetam e acabam ironicamente o aproximando da amada Kaguya. Certamente há algum grau de estranhamento com o pacing do progresso desse desenvolvimento amoroso, eles se vêem em poucas vezes, em desencontros e cenas atrapalhadas, que foram suficientes ficarem mais próximos de uma maneira nada habitual. Ainda assim, fugindo dos padrões de um romance, não considero justo julgar como uma má construção em todas suas circunstâncias, ninguém poderia dizer que tal situação jamais aconteceria em um ambiente real. Apesar de Majime quase agir como um tapado nessa troca de sentimentos, há uma absorção madura o suficiente para eles conseguirem dar seu jeito pelo interesse comum e ficarem juntos com apenas um único encontro.
 
 
Através disso tudo, apesar de não podermos ver o recém casal de namorados saindo e aproveitando os novos momentos juntos, o time skip do anime acontece para trabalhar de maneira imensamente natural o processo de envelhecimento e relação dos personagens através de seus diálogos enquanto trabalham para a finalização do dicionário – o qual precisava de mais de 10 anos para ser feito, justificando o salto temporal. Ver os casais agora casados, e os notórios efeitos abruptos do tempo que passou, torna-se ponto gratificante devida à sensação de envolvimento que o anime causa entre quem assiste e os personagens. O trabalho todo é sútil, suave e natural. Apesar de ser uma ficção, como bem consta no gênero do seu livro original inclusive, Fune wo Amu consegue passar um aspecto real involuntário muito convidativo de apreciar – é uma mistura mais real que nunca. Esse fato pode ser visto de várias formas como já abordados durante o texto, mas a morte do professor Matsumo é um exemplo sublime: ao invés de tornar a situação toda mais dramática, como seria característica alguma obra desse gênero, que poderia mostrar os personagens tentando apressar o término do dicionário para que o professor visse os frutos do trabalho da equipe antes de partir; ou então fazê-los parar tudo que estão fazendo para ir ver o professor; em Fune wo Amu a recepção da morte do adorado mestre ocorre pelo telefone. Os personagens se abalam, sim, mas não param o trabalho do momento: a vida precisa continuar e eles seguram a melancolia para mais tarde.
 
Falando um pouco sobre a produção do anime, começando pela trilha sonora, ela é excelente para a execução da série, no sentido de que consegue manter presença para servir de reflexo às emoções dos personagens. Transmitir aos espectadores alguma mensagem no momento em questão para tornar alguns eventos mais grandiosos. A função da trilha sonora em um anime como esse, que mostra vários adultos trabalhando na criação de algo que você não acharia super divertido ou animador, é essencial para prender quem assiste e deixá-lo ligado à história. Se não fosse o caso, a obra poderia forçar uma falta de realismo ou de bom senso mostrando os personagens totalmente empolgados, felizes e fantasiosamente ativos no trabalho da complexa –  mesmo entediante – construção de um dicionário novo e atualizado. Isso seria muito artificial, não haveria porque impor que os personagens são tão bem-dispostos e joviais dessa forma. É por isso que a trilha sonora trabalha tão decentemente para empolgar os personagens em pequenas vitórias, para retratar as angustias nos momentos certos, as incertezas e todas as outras variáveis emocionais.
 
A produção brinca, majestosamente, ao relacionar Kaguya com a princesa da lua.
Em relação a animação, temos dois pontos muito relevantes: Como já mencionado, Fune wo Amu poderia muito ser história de um seriado ou filme (inclusive possui filme live action), mas sua adaptação animada abre às portas para uma livre iniciativa de ideias e representações visuais, as quais Toshimasa Kunoyanagi teve um êxito enorme em usar para tirar vantagem na utilização de suas metáforas visuais. Seu oceano de palavras, que transfigurou o dicionário, trouxe a mensagem do barco que flutua sobre o mar, permitindo às pessoas a navegarem por ali, é somente um dos seus magníficos exemplos de simbologias utilizadas. Ele retratou em plenitude como é possível que uma pessoa se afogue em meio as palavras, se perca entre elas e não consiga utilizar da clareza de seus significados para expressar uma ideia ou sentimento. Uma angústia assoladora daqueles que não conseguem expor com palavras aquilo que sentem. É por isso que a ideia da criação do dicionário se firma pela clareza da escolha, significação e utilização das palavras. Além desse simbolismo muito bem usado ao longo do anime, as expressões dos personagens foram uma das melhoras que já vistas em um anime animados como séries de televisão até então. Havia um empenho notória da direção em fazer a gesticulação bem animada dos personagens, dando muito mais vida e valor nas suas expressividades. Não podemos esquecer, também, dos ótimos cenários, os inúmeros enquadramentos muito simbólicos e dos layouts que se preocuparam em mostrar detalhadamente o “canto de trabalho” dos personagens com tanta profundidade.
 
 
Como foi possível notar ao longo do texto, o trabalho de Fune wo Amu é inteiramente dedicado para o tema da comunicação e ao processo de Majime em passar por aquele oceano de palavras sem cair e se afogar, buscando a clareza necessária para se expressar. As metáforas visuais que a mídia 2D proporciona permitem que ele faça essa literal Grande passagem (Fune wo Amu), e o anime insiste com seu senso de razão de que não é só porque nós conhecemos várias palavras que sabemos seus reais significados e valores. Não significa que sabemos usá-las mesmo em um mundo moderno em que conseguimos tudo tão fácil e vagamente. As palavras podem mudar de significado, cair em desuso, passar a receber expressões e assim por diante; dessa forma se faz mais necessário saber a forma de se expressar, e não somente o que expressar. Essa grande passagem, que narrou a vida de pessoas comuns, realizando seus esforços diários, chega ao fim com diversas mensagens.
 
 
Fune wo Amu é um ponto fora da curva no que vem de mais recente na demanda de animes. Sua história rodeia um público mais adulto e cumpre grandiosamente seu papel; executa uma trama madura, usa muito bem a animação fluída para expressividade, metáfora dos personagens e tema, e ainda consegue abstrair o melhor da trilha sonora para deixar uma história sobre convívios convencionais mais palpável de se acompanhar. Os personagens são bem construídos e caracterizados, suas relações em geral causam empatia e seu desenvolvimento tranquilo trabalha lado a lado com a realidade para um final fechado e muito significativo para com o todo que a obra oferece. É um excelente anime.