Shoujo Kakumei Utena (1997) e os Papéis de Gênero – Review | N.A.N.I. #5

Este anime faz parte da nossa tag de reviews N.A.N.I. – Notáveis Animes na Indústria, contemplando as séries que foram importantes por várias questões. Esta resenha em questão, estará recheada de imagens, por isso, observe as frases/palavras sublinhadas e com cores diferentes – elas são imagens linkadas. Dito isso, espero de coração que gostem e que possa fornecer insights prazerosos a todos!


É sempre um pouco intimidante começar a escrever sobre uma série para o N.A.N.I.; afinal de contas, estamos falando sobre as maiores coisas da mídia geral – não apenas nipônica. E esse é o caso aqui. Utena é uma pérola escondida dentro de uma ostra escondida. Um anime bastante estranho na verdade, mas tudo sobre essa história apenas escorre grandeza. E é precisamente esse verniz de estranheza tão Utena que fez do espetáculo algo singular. Uma marca que é facilmente reconhecível as tentativas de decalque. É uma execução singularmente única, um ato de equilíbrio raramente visto em shojos melodramáticos, e quando as coisas realmente estranhas começarem a acontecer, você já estará pronto para o passeio e aceitará virtualmente qualquer coisa que Ikuhara jogue em você.

Vamos começar pela questão que há tanta coisa acontecendo nesse programa de uma só vez, que é quase como se houvesse 6-7 histórias diferentes acontecendo ao mesmo tempo, e então, a medida que o programa progride, cada história se entrelaça ao ponto de serem inseparáveis. Uma junção quase química. Não há dúvida de que esse anime foi altamente influenciado por algumas obras como Rose of Versailles, de Ikeda Riyoko; ambas tendo uma forte liderança feminina crescendo de forma “masculinizada” (foco em papéis de gênero), ocorrendo em um cenário inspirado na era vitoriana e sendo totalmente teatrais. Utena conta uma história de amadurecimento que explora algumas grandes questões, mas manterei minha lentes focadas em apenas duas (ao todo, existem várias possíveis): o quão é você que pinta a pessoa que você é, e o quanto os outros é que pintam a pessoa que você é? E pode uma mulher “pura e inocente”, com cabelos rosas, nos dias de hoje, escapar do seu dever/papel como mulher e em vez disso assumir o papel de um homem/príncipe?

Kakumei Utena gira em torno de Utena Tenjou, uma garota que se veste como um menino e sonha em se tornar um príncipe quando crescer. Qual a razão para ela objetivar ser um príncipe? Ela ficou tão “impressionada” por um príncipe que lhe dera um anel quando criança que ela decide se tornar um. Utena cresce frequentando a Academia Ohtori, uma escola muito estranha onde as pessoas lutam por seus ideais e para conseguir algo celestial. Ao longo do curso da história, Utena é forçada a entrar em batalhas com os Duelistas, a fim de reivindicar a Noiva da Rosa (Anthy), que é dito ser a chave para se tornar um príncipe e obter algo eterno.

Uma descrição em si parece ser sempre suficiente para dar a noção de uma história, correto? Nem tanto… pelo menos não aqui. A primeira coisa que você deve lembrar, antes de ver qualquer coisa de Utena, é que nada é o que parece. O que você está vendo e o que realmente existe são dois conceitos completamente diferentes. Talvez seja esse um dos fatores que tornam a “experiencia Utena” tão deliciosa quanto é.

Antes de continuarmos, assim como fiz com o texto de Cowboy Bebop, vamos destrinchar o contexto histórico de Utena:

O gênero de mangá shoujo é geralmente reconhecido como tendo sido iniciado pelo deus do mangá, Osamu Tezuka (mais conhecido no Ocidente por sua série Astro Boy). Os primeiros mangás de shoujo eram na verdade desenhados principalmente por homens. No entanto, na década de 1970, um grupo de mulheres conhecidas como 49ers (porque elas nasceram em torno de 1949) ganhou destaque, e o gênero de mangá shoujo tem sido dominado por mulheres autoras e artistas desde então. Ikeda (Rose of Versailles) era uma dessas 49ers, e é provavelmente a mais conhecida delas fora do Japão graças à tradução de Frederik Schodt de algumas das páginas de A Rosa de Versalhes em seu livro, Manga! Manga! The World of Japanese Comics“. 

O mangá Shoujo é conhecido por seu fascínio pelas relações humanas e notório por seu tratamento de gênero e sexualidade através do subgênero do mangá bishounen (quadrinhos sobre garotos bonitos, geralmente com histórias românticas homossexuais). O trabalho de Ikeda e, por extensão, Utena ,é uma reviravolta na história de garotos bonitos, em que o garoto bonito (Oscar, Utena) é na verdade uma menina, mas estilisticamente e tematicamente ambos os trabalhos são claramente influenciados por esse subgênero. Com base no trabalho de Ikeda, Utena remonta a um período na história do mangá quando mulheres artistas estavam revolucionando o gênero, criando um espaço para temas não tratados nos mangás mainstream de garotos e “adultos”.

Esse gênero relativamente novo de mangá recebeu muita atenção na academia. Quem também curte o campo acadêmico dessa robusta mídia já deve ter percebido isso. Muitos autores têm se preocupado em tentar entender por que as garotas japonesas favorecem histórias sobre temas completamente removidos de suas próprias experiências – histórias de amor entre garotos, mangás ambientados no Ocidente e histórias de fantasia e magia, são as mais frequentemente analisadas. De acordo com esses estudiosos, as meninas japonesas são tão subordinadas e reprimidas na sociedade japonesa que elas recorrem ao mangá shoujo para escapar das versões limitadas de sexualidade, gênero e desejo que são proscritas para elas. O diretor de Utena, Kunihiko Ikuhara, faz eco disso quando afirma que a razão pela qual as personagens femininas se voltam umas às outras, rejeitando seus príncipes falidos, é o reflexo da insatisfação das japonesas com sua posição na sociedade contemporânea – “as mulheres não querem mais ser subordinadas”. As mulheres estão afirmando sua posição na sociedade.

Utena é assim conscientemente produzida a partir de um discurso que se preocupa com os desejos e resistências das mulheres a seus posicionamentos sociais, e Shoujo Kakumei Utena é tanto sobre as revoltas feministas dos anos 70 quanto sobre a Revolução Francesa. Nesse sentido, a fuga de Utena e Anthy da Academia Ohtori é também uma fuga da dependência dos homens e, por associação, da sociedade que privilegia os homens. Não é uma simples fuga, no entanto. Ao recusar o mundo da Academia Ohtori, onde elas podem apenas “estar vivas enquanto mortas” (como seus príncipes, Akio e Touga), elas revolucionam esse mundo – sem elas para sustentar a fantasia da eternidade e milagres que a Academia Ohtori promete, ela, a Academia, desmancha por de trás delas (quase destruindo-as no processo).

Utena é um excelente programa. Um dos melhores, na verdade – eu escuto ela ser descrita constantemente como o “shoujo Evangelion”, que é um tipo de título estranho, mas eu consigo enxergar de onde isso está vindo. Como Sailor Moon, Utena é uma história de garotas mágicas. A história é recheada de simbolismo e é considerada um conto de fadas pós-moderno. Esses simbolismos são o que fazem com que muitas pessoas considerem Utena o Evangelion shoujo. Na visão mais redutora possível, ela de fato faz algo semelhante a Evangelion – catalogando as verdades da adolescência e da identidade (assim como gênero e percepção, sendo suas próprias prioridades adicionais) em termos de revolução e apocalipse. Mas enquadrá-la como uma simples metáfora nega uma das verdades centrais que o anime apresenta, isso por que sua escolha de veículo para contar essa historia é mais do que “apenas um grande palco para algumas revelações/plot twists básicos”. Essa é uma serie que se preocupa em frisar que a crença não é tão diferente da realidade. O seu julgamento pela capa de um livro, dita o conteúdo do livro. Vou me esforçar para tanger melhor isso ao decorrer da review.

Embora certamente seja um grande palco. Kakumei Utena não é nada se não teatral. E ser um espetáculo teatral tem muito a dizer, e talvez seja a parte mais importante dessa analise, mas nós vamos chegar lá. 

A série inteira é dividida em quatro arcos de história. O primeiro arco (episódios 1-13) se concentra principalmente no desenvolvimento de personagem, como Utena acabou tendo a tão importante Noiva da Rosa (Anthy Himemiya), e o lançar dos mistérios ocultos sob o esboço da história. No segundo arco (13 – 24), mais personagens são introduzidos, o mais importante deles é um psicólogo escolar de 18 anos que usa a Rosa Negra para manipulador estudantes. O terceiro arco (25-33) é o aspecto do trauma psicológico do espetáculo, onde traições e verdades são vagarosamente desvendadas. Promessas são quebradas, amizades são cortadas. E o arco final é onde o conflito e todo o ponto da história se eleva até ele – o clímax; e todos os segredos sombrios são revelados. 

Esta é uma história bastante complicada de se escrever uma resenha, basicamente porque ela foi apenas para todo os lugares, e é talvez difícil identificar o enredo principal em primeira instancia. Sinceramente, repetindo o que eu disse mais acima, esta série é mais uma peça teatral ao vivo do que um conto de anime; é um show nada se não teatral. Constantemente o programa está “contando” a história e “não sendo” uma. Mais a frente vou explorar isso como mais afinco. Na superfície da historia, parece que esta é apenas mais uma história de torneios de escola mágica com cenas de luta repetitivas, mas não. Isso é apenas incorreto até mesmo sem sentido mesmo para os que não apreciam. Embora possa não parecer a princípio, uma vez terminada, você perceberá quão profunda é a história e, talvez, quanto impacto terá em sua compreensão psicológica do(a) mundo/natureza humana. O começo de cada episódio constantemente não faz sentido. Eles pulam dessa cena para aquela cena, sem explicar instantaneamente o que acontece no “entre”. Mas a medida que a história avança, Ikuhara e sua equipe fizeram um trabalho fabuloso ligando cada detalhe menor entre si para formar um enredo de “imagem maior”.  A historia quase sobrenaturalmente se escorrega e se encaixa. É Ikuhara no seu melho

Arquiteturas com referências romantizadas à cultura européia vagamente histórica.

Vamos agora retomar ao aspecto teatral do show – sobre a maneira como os truques de teatro definem os objetivos de Utena, o mundo de Utena e as vidas daqueles presos dentro da casca do ovo. 

Revolutionary Girl Utena nunca se contenta em ser apenas uma história – ela está continuamente consciente (e até gosta de conscientizar o espectador) de que está contando uma “não apenas historia”, enquadrando verdades potenciais e incertas como uma narrativa a ser retransmitida para uma audiência. Ela faz isso de mil maneiras, com talvez o mais evidente sendo o seu lúdico e conscientemente autoritário uso do motivo. A imagem da rosa está em toda parte de Utena – das rosas cuidadas por Anthy, a Noiva da Rosa (um título que ganha importância à medida que sua própria relevância aumenta), as sigilosas rosas que marcam o anel de cada duelista (outro detalhe significativo que aponta para a verdadeira natureza dos duelistas), para, mais abertamente, a moldura ornamentada de rosa que aparece continuamente para enquadrar a ação na tela.

Geralmente, o objetivo do enquadramento do plano é remover a distância, investindo o espectador no drama como se ele estivesse lá – aqui, o uso desses símbolos de rosa de enquadramento realmente chama a atenção para a natureza encenada e inautêntica do drama televisivo. Isso é intencional – Kakumei Utena está sempre se esforçando para ter uma conversa com o espectador e as conversas exigem um vocabulário específico. No caso de Utena, este vocabulário inclui uma ladainha de motivos visuais (a rosa, o pássaro em vôo, o inseto sob o vidro, o carro, enquadramento subindo/descendo) que recebem significância direta e evidente para que o programa possa chamá-los à vontade.

É um exemplo brilhante do poder da narrativa visual – isso porque o programa trabalha duramente para definir seu próprio vocabulário visual (rosa branca significando o príncipe e o erro sob o vidro significando tanto a memória quanto o desejo de que alguma memória eterna se vincule) pode eventualmente alterar o significado de uma cena puramente através da inclusão de sugestões visuais específicas. Ao deixar de lado a expectativa de “transparência” e reconhecer abertamente a mão do criador no enquadramento de tomadas, o programa é capaz de cobrar suas próprias ferramentas de contar histórias com um significado implícito que o simbolismo normal não poderia alcançar. E esse reconhecimento da natureza encenada do drama, ao chamar a atenção para as ferramentas da dramaturgia, não é apenas um truque interessante de contar histórias – reflete diretamente nos temas centrais da série.

Como eu disse, em Utena, tudo é uma performance. Isso às vezes é novamente feito literalmente – os personagens secundários mais confiáveis ​​do programa são as “garotas da sombra” – um grupo de garotas que só vemos as reflexões (normalmente o programa adora brincar com suas próprias regras), que cada episódio encena uma versão simplificada, dramatizada e possivelmente fabricada do tema ou narrativa do episódio. Isso por si só é um dispositivo bastante brilhante – não só chama a atenção para o fato de que o drama sugere serem espectadores, como também age como uma primeira reinterpretação dos eventos do espetáculo, e em Utena a percepção é fundamentaal. Elas até mesmo chamam a atenção para as ideias tão distantes e relevantes quanto as cavernas referenciadas por Platão, onde “prisioneiros” presos em uma caverna observam sombras dançando na parede e os levam para a soma da realidade. Essa é uma metáfora muito elegante para uma grande quantidade de Utena, mas por enquanto, vamos tentar manter isso pelo menos um pouco embasado.

A ideia de performance é, como o uso do motivo, não apenas limitada a jogos de histórias engraçadas – ela informa todo o mundo de Utena . Como eu já mencionei no contexto histórico, o “mundo” de Utena (sim, essa palavra é importante – quase todas as escolhas de palavras são importantes aqui) é a Academia Ohtori, junto com o reino geral da adolescência. Nesse mundo, você não pode fugir da apresentação teatral simplesmente evitando o clube de drama – cada pessoa está continuamente em exibição, se apresentando para seus colegas, realizando seus “eus”. Aterrorizante para qualquer ser tímido.

O anime nunca irá simplesmente introduzir um novo personagem – ele cortará para eles de ângulos distantes, mostrando as multidões observando-o e julgando, alimentando os espectadores de sua reputação mais ampla. Para melhor ou para pior, todos os acontecimentos evidentes de Utena acontecem sob o olhar atento das intermináveis ​​fileiras de personagens centrais. E embora a própria Utena seja uma Garota Revolucionária, geralmente intocada pelos caprichos das multidões e capaz de se definir de acordo com uma convicção central mais forte do que os sentimentos de julgamento de seus colegas, os outros não têm tanta sorte. Em Shoujo Kakumei Utena, a identidade pode ser menos uma verdade pessoal do que uma construção social, e nenhum personagem demonstra isso mais do que uma das minhas personagem favoritas – Nanami Kiryuu.

Como uma socialite florescendo e a amada irmã do Presidente do Conselho Estudantil, Touga, Nanami ostensivamente tem tudo. Suas festas são as mais extravagantes, sua moda a mais glamourosa e seu bando obsequioso atende a todas as suas necessidades e opiniões. No entanto, mesmo desde o início, Nanami é consumida pelo desejo da única coisa que ela não pode ter – o amor e o carinho de seu irmão. O que não é realmente tão incestuoso quanto parece – embora Nanami enquadre seus sentimentos como amor romântico, no contexto de Utena, o amor que muitos personagens buscam é realmente uma coisa pura. E também não é um romance de contos de fadas (embora os próprios personagens discordem com frequência) – na maneira como as crianças se amam incondicionalmente.

No entanto, Touga não é uma criança e ele não ama. Ele é um playboy – para ele, o amor físico é em grande parte um jogo que ele sente que está superado (da maneira que apenas os jovens podem), e inicialmente seu único interesse está na Noiva da Rosa. E em suas tentativas de conquistar o afeto de Touga arrastando Anthy para baixo, Nanami de novo e de novo prova a transparência de sua imagem – apesar de sua postura e popularidade, ela é uma menininha infantil, vingativa, egoísta, insegura . Embora ela comece no papel de uma antagonista, a série nunca a trata como uma ameaça – seus planos são facilmente frustrados, seus desejos são ignorados e ridicularizados pela narrativa, toda a sua existência é transformada em um alívio cômico… E ao longo de seus episódios próprios, vemos que ela, mais do que qualquer outro personagem, demonstra o grau em que a identidade não pode ser apenas um manto que vestimos, mas um manto que não é costurado pelas nossas mãos – são percepções da própria sociedade.

O episódio que torna isso mais explícito é, ironicamente (e sem surpresa alguma, dado o senso de humor de Utena), talvez o episódio mais ridículo da série – o episódio do cowboy. Quando Nanami acidentalmente recebe um chocalho como presente, ela o considera um colar e o usa com orgulho . No entanto, ao longo do episódio, a insistência de Nanami na beleza de seu chocalho acaba transformando-a em uma vaca. A mensagem aqui é clara – a aparência que ela exibe acaba ditando sua natureza real. 

Kakumei Utena não se contenta em ilustrar uma mensagem simplista de “não deixe os outros ou sua aparência te definir” – ela sabe que o efeito do olhar externo é poderoso e sabe que nosso contexto e aparência social podem acabar ditando nossa própria natureza fundamental. Como a identidade de Nanami é tão completamente dependente das opiniões dos outros, ela realmente se torna a percepção que os outros ditam que ela deve ter – dada a aparência de uma vaca, sua autoconfiança não é forte o suficiente para convencê-la de que ela é realmente uma humana.

Mais tarde, os episódios de Nanami ainda revelam a fraqueza de sua própria identidade autogerada, uma fraqueza que acaba alinhando-a com as pessoas “normais” que ela tanto desdenha. Em um episódio, ela acorda numa manhã e descobre que aparentemente colocou um ovo, então passa o resto do episódio em pânico se perguntando se isso é normal. E em uma de suas últimas aparições, ela descobre que aparentemente não é irmã de sangue de Touga, uma revelação que ameaça todo o seu senso de identidade. Quando ela cai no desespero, Utena tenta consolá-la declarando seus sentimentos igualmente válidos agora quanto eram antes – mas para Nanami, seus sentimentos só são válidos desde que sejam apoiados pelas estruturas externas através das quais ela confirma sua identidade. “Meu irmão era parte de quem eu era” – diz ela, devastada que a fortuna roubou uma das únicas verdades que ela achava que o tribunal da opinião pública nunca poderia tirar dela. E o golpe final vem quando seu irmão a chama de “comum” – julgada e considerada mundana pela única pessoa cuja opinião ela admitiu valorizar, ela desesperadamente pede a Utena: “O que resta para mim? Eu sou apenas mais uma mosca no enxame? Tudo menos isso …”

Enquanto Utena assume que todo mundo em seu mundo é um agente ativo, Nanami não tem o luxo de tais ideais – ela é um produto das identidades criadas pela comunidade que definem as subclasses frequentemente vistas, raramente respeitadas. Ao contrário do que Utena aspira a ser, ela é descaradamente uma jovem humana e seu maior medo é se perder no brilho das estrelas que a cercam. Apropriadamente, no final, ela é a primeira a entregar a “crista” que a marca como uma duelista – como um buscador de milagres, como um crente em algo que é eterno. E é essa busca por algo eterno que nos leva finalmente a personagem central do espetáculo, Utena Tenjou.

Utena é uma personagem interessante por uma variedade de razões, mas tudo começa com o básico. Quando ela era uma garotinha, ela perdeu a fé no mundo. No entanto, um príncipe veio e deu-lhe a convicção, deixando-a com um anel especial e prometendo que eles se encontrariam novamente, contanto que ela nunca perdesse sua força e nobreza. Ela ficou tão impressionada com esse príncipe que decidiu se tornar um príncipe. Mas foi realmente uma boa ideia?

Assim segue o conto de fadas e o show frequentemente volta no tempo e mostra a primeira cena, do encontro, novamente. Embora as palavras permaneçam as mesmas, a mensagem nunca o faz – em um programa obcecado com desempenho e percepção, o significado das palavras pode mudar mesmo que a natureza básica permaneça consistente. Palavras como “príncipe”, o tradicional salvador de histórias masculino, uma palavra que acaba por significar tanto menos quanto mais do que sua definição. Desde o início, o desejo de Utena de ser um “príncipe” aponta para o osso sério que esta série tem, que é escolher com papéis de gênero tradicionais. Até mesmo o estilo ornamentado do anime contribui para esse efeito – o enquadramento floral que é tipicamente uma marca registrada de mangás e animes “femininos” é usado aqui para transmitir o poder tradicionalmente “masculino”, como o poder sedutor de um potencial príncipe masculino, ou a própria Utena, quando ela joga com os colegas masculinos de classe na quadra de basquete.

Utena é consistentemente moldada em termos “masculinos”, de sua forma escolhida de se vestir, a suas adoradas fãs femininas, a sua destreza atlética e habilidade como espadachim. No entanto, para Utena, todas essas escolhas são uma expressão perfeitamente legítima de si mesma. De fato, sempre que alguém expressa surpresa sobre Utena agindo como uma garota “tradicional” e uma garota “performista”, Utena responde com um desafio “mas eu sou uma garota” – para ela, seu comportamento padrão e representação é uma expressão completamente válida de “menina”. Tudo isso aponta para a obsessão da série com os espectadores e as performances – no contexto de um espetáculo que enfatiza o quanto todos “executamos” nossas personalidades, a natureza arbitrária (“executada”) dos papéis de gênero é muito mais aparente.

Mas é claro que “príncipe” não é uma palavra relevante apenas para os pensamentos de Utena sobre gênero – um “príncipe” é algo mais do que isso, algo que toda pessoa procura. A “força e nobreza” de Utena, sua certeza moral em preto e branco que muitas vezes aparece como ingenuidade teimosa, é um reflexo da vez que ela conheceu um príncipe – mostrando a ela algo “eterno.” Enquanto cada um dos personagens de Utena é caracterizado pela sua própria cor rosa, o príncipe é representado pelo branco rosa – uma ausência de cor, uma expressão de pureza absoluta. Essa pureza não pode existir no mundo real, mas que pode ser acreditado – que se liga à outra metáfora central de Utena, a busca de algo eterno e o limite da adolescência

“Se não conseguir quebrar a casca do ovo, uma garota morrerá sem nascer. Nós somos a garota. O mundo é o nosso ovo. Se não quebrarmos a casca do mundo, morreremos sem nascer. Esmagar a casca do mundo! Para a revolução do mundo!” Então, diz o Conselho Estudantil toda vez que eles ascendem a suas reuniões, e eles realmente querem dizer isso. 

Anthy está criando as rosas, que são usadas para representar os duelistas, em um jardim sob uma enorme gaiola – enquanto Anthy passa a maior parte do seu tempo dentro dessa gaiola, ela também pode ir e vir livremente, implicando que ela pode ser mais cúmplice do sistema de duelos do que os duelistas entendem. E essa imagem de um pássaro na gaiola também está presente nessas sequências do elevador. Embora pudéssemos ler isso como simplesmente um simbolismo pesado, parece um pouco demais para este show e para este diretor em particular. 

Embora abertamente uma referência ao Demian do escritor Hermann Hesse, esta passagem também lembra a canção infantil japonesa “Kagome Kagome”, cujo título se refere à forma de buracos em uma cesta tradicional (como as barras do(a) elevador/gaiola), enquanto a segunda linha do verso é traduzido como “o pássaro na gaiola”. Embora existam múltiplas interpretações dessa rima, muitas variações assumem um tom sinistro, e uma das interpretações popularmente aceitas é que a canção é sobre uma criança no útero. Indiscutivelmente todos os duelistas escolhidos estão lutando para nascer, com a escola como seu útero – a conclusão dos duelos lhes dará a chance de começar a vida novamente, quebrando seu mundo; é a devastação do crescimento. 

Os personagens de Revolutionary Girl Utena existem todos dentro de um mundo (útero) restrito e limitado – o mundo da adolescência, onde sua própria sexualidade é uma nova arma estranha e os sonhos juvenis de sua infância lutam com as realidades confusas de relacionamentos e perspectivas. Cada um dos membros do conselho procura o seu próprio “algo eterno” – algo puro, algo que pode sobreviver à devastação do crescimento e da experiência. 

Mas como com o “puro amor” de Nanami por seu irmão, os personagens não reconhecem inicialmente a natureza de seus próprios desejos. A júri, a capitã da esgrima, procura ostensivamente criar um relacionamento com uma antiga paixão e preza o medalhão que segura a foto de sua amiga – mas no curso de suas provações, vemos que o que ela realmente valoriza é o próprio medalhão, o objeto de uma memória que não pode ser manchada. Cada um dos membros do conselho procura um prêmio eterno e incompreensível – cada um tem seu próprio símbolo dos relacionamentos e ideais puros que definiram suas infâncias. E como suas tentativas de preservar esses objetos sob o vidro são frustradas por seus relacionamentos continuamente confusos e pela natureza verdadeira e imperfeita das pessoas que desejam idolatrar, a convicção e a adesão de Utena à nobreza inicialmente pura inspira respeito, inveja e até mesmo amor. E a medida que cada um deles cresce para aceitar a natureza imperfeita do mundo ao seu redor, eles confiam suas esperanças a algo eterno na própria Utena.

Os personagens em Utena são arquétipos e, para simplificar, a júri representa o orgulho. Os arquétipos de Ikuhara nunca são tão simples como “orgulho” ou “luxúria”, e o júri representa o orgulho e tudo o que o orgulho pode fazer para uma mente estável e inteligente.

Não que Utena seja na verdade algum ídolo austero e sem emoções. Longe disso – ela é contundente, teimosa, ingênua e muitas vezes não tem a percepção emocional para oferecer conselhos significativos para seus amigos. Durante grande parte do show, seu desejo de proteger Anthy não é diferente do egoísmo dos outros duelistas. Embora ela os castigue por buscarem o poder da eternidade sem ver Anthy como uma pessoa com seus próprios desejos e sentimentos, ela faz exatamente o mesmo – ela sempre faz “o que é melhor para Anthy” de acordo com o que ela acha que é o melhor. Com o que Anthy certamente está de acordo – como a Noiva da Rosa, ela é essencialmente forçada a representar a feminilidade como uma força passiva final – algo a ser desenhado e usado, aquela que sofre pelo bem do príncipe masculino. Demora muito tempo para Utena chegar a duas realizações – primeiro, que sua proteção a Anthy é mais um reflexo de sua vontade de pintar sua imagem de sucesso de “o que um príncipe faria” do que uma expressão real de seu entendimento e de sua preocupação com Anthy, e segundo, que jogar pelas regras de “o que um príncipe faria” é um jogo de idiotas desde o começo. Apenas reconhecendo o poder e a necessidade de Anthy como uma parceira igual, não uma ferramenta de um príncipe, pode-se obter uma revolução.

Durante os últimos doze episódios da serie, cada duelo é revisitado e recapitulado, mas ao invés de ser uma tarefa, esses episódios são editados por sua escolha, contando momentos. Cada duelo é dado uma cor, com base no duelista enfrentando Utena; motivos visuais de rosa e ampulheta estão em abundância. O que poderia ter sido um preenchimento rotineiro é dado vida fantástica. Este é o melhor tipo de narrativa para mim, é a narrativa escalada, o tipo que faz com que as Grandes Obras sejam Grandes – você não tem o conhecimento daquilo que estava perdendo, até o momento que é revelada a trilha. 

“Amizade”: o duelo contra Saionji, em defesa da honra de Wakaba. “Escolha”: Utena escolhe lutar contra Saionji novamente, e é a primeira vez que ela e o espírito do Príncipe se combinam, quebrando assim o poder de Dios no príncipe, o que sugere que ele está sendo mantido contra sua vontade. Depois, há o trio de batalhas mais pessoais, cujo Akio parece pesar menos que os outros. “Razão”: Miki fala para Anthy acreditar que ela pode ser sua alma gêmeo novamente, mas isso é destronado, por Utena e Anthy, pela falta de razão. “Amor”: Juri, que foi marcada pelo amor e desprezou a paixão de outros por milagres, entra de cabeça em uma luta contra Utena, que tem muita fôlego e crença. E temos o episódio 32, que eu podia sentir em meus ossos – “Adoração”: Nanami fez aquilo que achava que a faria ser adorada por seu irmão mais velho, que, na verdade, apenas a preparava para uma derrota. Está é uma das maiores lutas, além de consagrar as batidas dramáticas da melhor personagem, Nanami. Por último, “Convicção”: Touga testa seu plano contra Utena, e Utena tem que provar seu próprio compromisso de não desistir. 

No fim, Kakumei Utena tem um final um tanto ambíguo. Felizmente, a ambiguidade, no contexto de Utena, não é realmente uma desvantagem. Como todas as outras partes do programa continuamente implicam, a crença dita a realidade. Assim como os personagens se tornam literalmente o que os outros esperam deles, assim como a linguagem visual do programa oscila continuamente entre os eus mundanos dos personagens e os eus imaginários, em Utena, a realidade é tanto nossa crença coletiva quanto nossa geografia objetiva.

Embora o anime seja visto como algo clássico nos dias de hoje, especialmente por causa do seu manuseio incomumente sensível de personagens femininas e lésbicas, Shoujo Kakumei é na verdade um show muito bobo durante a maior parte de sua carreira. Embora possa ser examinado como um trabalho profundo de ambição artística – é frequentemente hilariante graças ao sempre presente senso de humor absurdo de Ikuhara;  que de alguma forma parece completamente orgânico misturado com toda a angústia e esgrima. O anime pode levar-se a sério quando o momento o exigir. Também é bastante episódico e reutiliza mais imagens do que as sequencias de transformação em Sailor Moon. Não é de surpreender que um dos diretores mais importantes de Sailor Moon, Kunihiko Ikuhara, seja responsável aqui. Sua personalidade está estampada em todo o anime, desde seu humor incomum até o abundante simbolismo visual. É sua obra-prima. Seu programa menos auto-indulgente. E não é só seu trabalho mais realizado, como também foi onde ele fez seu nome. Seja ou não um fã, não há nada como Utena. 

Kakumei Utena é uma fantasia brilhante, ricamente texturizada através de sua invocação do símbolo da revolução. Um anime indescritivelmente profundo, significativo, bem trabalhado e pensativo. É uma homenagem à história do mangá e aos desejos das mulheres japonesas, e sua narrativa complexa e altamente alegórica permite uma ampla gama de identificações e posições de visualizações. Enquanto a revolução de Utena em seu mundo, pode não estar totalmente disponível para todos nós no “mundo real”, essa fantasia utópica é prazer o suficiente em si mesma. Em espírito, Revolutionary Girl Utena era um produto de sua época, mas que conhecia o que cria uma obra de fantasia atemporal. É a razão pela qual os épicos de Homero ainda são discutidos hoje, porque a influência de Shakespeare ainda permeia em obras literárias centenas de anos depois, porque Tolkien ainda é citado como uma fonte de influência. Kakumei Utena era, e ainda é, um trabalho de legado. 

Em uma história obcecada por fumaças e espelhos, presos na lama das expectativas da juventude e sobrecarregados por uma compreensão cínica de como é difícil controlar sua própria identidade, a revolução é alcançada através da mais simples das ações. Utena admitiu um amor honesto e essa sinceridade mudou o mundo. Ela causou uma revolução.

Nota Final: 10 (Obra-prima)

Provavelmente, não há forma melhor de exemplificar o quanto esta obra é uma das series mais profundas já feitas, do que pelo fato de eu ter queimado 4k de palavras em uma análise, e ainda assim me sentir superficial. Utena é, sim, bastante áspera nas bordas – difícil de entrar e pesado de continuar. É vago, e tudo que posso oferecer é a minha experiência. Não obstante – poucas coisas são fadadas a carregar a alma mais pura, mais fulgurante, igual ela. Vá até Utena, e permita-se ser confundido.

Deixem nos comentários obras importantes da industria que merecem análises. Além disso, escrevi uma lista com uma fartura de recomendações para fãs de Utena: O que assistir depois de Given? 16 Recomendações


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