Animes de Estilos Artísticos Únicos #1 Mononoke

 
“Coisas que existem e coisas que não deviam existir, chamam-se, se misturam e se tornam um Mononoke. Cortar… Apunhalar… Rasgar… Retalhar… Todas são funções da espada ao saber o nome do Mononoke, sua aparência, sua Forma… Ao saber o conjunto dos acontecimentos, sua Verdade… E o estado de seu coração, seu Arrependimento… A espada purificará os laços humanos e o carma.”

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Em 2006, a Toei Animation lançou um anime original chamado Ayakashi, que contava algumas histórias de horror baseadas em lendas clássicas do Japão, porém de uma forma mais original. Cada arco contava com diferentes estilos de animação e arte, tendo como ultimo o arco Bakaneko, que apresentou pela primeira vez o misterioso Vendedor de Remédios (Kusuriuri). O personagem fez sucesso e e acabou originando uma continuação indireta intitulada Mononoke.
Mononoke é uma série original de Mistério e Horror que segue a formula de seu antecessor em contar histórias, mas com o Vendedor de Remédios como personagem fixo desta vez. A série é dividida em 5 arcos e esses arcos divergem uns dos outros em temas, arte, paleta de cores e tons.

O anime é extremamente abstrato na sua arte, narrativa e as próprias histórias contadas. Todos os elementos para a construção audiovisual e do enredo são retiradas da própria cultura japonesa, especialmente da era Edo, como o uso do Ukiyo-e para compor os cenários.
Ukiyo-e, comumente conhecido como “estampa japonesa”, é um tipo de xilogravura e pintura que prosperou no Japão feudal. Destinava-se inicialmente ao consumo pela classe mercante do período Edo.

Essa arte possuía como seus temas principais: a paisagens, a fauna, a pornografia, os atores de kabuki (teatro japonês que se diferenciava por conta de seu drama estilizado e maquiagens bem elaboradas dos atores) e a beleza feminina. Usando de grande referência e estilização para sua ambientação, Mononoke transporta tudo relacionado ao Ukiyo-e para o anime. Um bom exemplo está no teor teatral dentro da série que extrai parte do que esse estilo artístico representava assim como a escolha por usá-lo, remetendo desta forma, tanto à época quanto ao grande valor cultural que é trazido. Por isto, a menção teatral é aplicada para a construção das cenas, em que, boa parte se passam entre 3 paredes (sendo a 4° o palco) e ainda temos transições de painéis (ou fusuma) se fechando igual cortinas. A aplicação também é visível nas atuações de voz que do mesmo modo remetem ao estilo teatral juntamente da dramaturgia dos personagens, suas expressões faciais e movimentos.

O anime vária nos estilos e temas do Ukiyo-e em cada arco igualmente como muda a paleta de cores e os tons que já mencionei no começo do texto. Ainda assim, não se enganem ao pensarem que as cores estão ali por acaso, conforme já comentado sobre esse recurso na review que fiz sobre Kaguya-hime, aqui as cores e os cenários são repletos de mensagens, seja pela variação de tons ou o que cada personagem veste, como também pelos objetos, tipos de flores e desenhos vistos pelos cenários. 

Por exemplo, a quarta história, diferente das demais é quase que completamente monocromática, pois o arco está voltado para a morte. Por outro lado, a primeiro e segunda história abusam completamente das cores, causando uma enorme confusão visual que faz com que tenhamos a sensação de estar em um labirinto.

Entretanto, apesar de todo o referencial cultural incluindo histórias baseadas em lendas também originadas da era Edo, Mononoke se desprende da fidelidade com esses contos ao dar um toque completamente original e surreal, trabalhando cada personagem apresentado, atribuindo conflitos, lições e bastante divertimento.

Não se engane ao pensar que é um anime assustador, de fato, pode até deixar alguém incomodado pois o clima de tensão e mistério é bem trabalhado e percorre durante toda a obra, mas não é uma série que dê medo. Por outro lado, ele contém vários momentos cômicos e seu humor é precisamente disfarçado em boa parte do anime, pois assim como já mencionado, este é um anime bastante teatral, então quando o assistimos levando em consideração este ponto, notamos algumas coisas engraçadas.

Contudo, há uma drástica mudança cultural em seu quinto arco, a animação ainda mantem o estilo dos traços e sua habitual textura que parece um papel de arroz amassado sobreposto nos quadros, porém a arte e vários elementos na história do 5° arco passam a ter influencia ocidental. Primeiramente, o enredo se passa dentro de um metrô; no Japão o metrô chegou no final da década de 1920 e com o passar das décadas foi ampliando as linhas; portanto é possível que está história se passe em meados dos anos 30. Ainda, a arte dos cenários, objetos e figurinos mudam para um estilo Déco que foi um movimento europeu também nascido na década de 1920 e que durou até boa parte da década de 1930.
Curiosidade: as multidões no arco são retratadas como manequins e alguns personagens passam a vestir ternos coloridos em contraste com os kimonos de outros personagens.

A entrada deste arco faz quase um salto temporal de meio século, se um faz alusão total a era Edo, este é voltado para a era Showa, deixando apenas implícito que o nosso misterioso Vendedor de Remédios é imortal e talvez até mesmo um mononoke. Também, não é descartado uma mudança experimental, Mononoke insinua muito isso, pois não é só todo seu abstratismo que é diferente, sua narrativa é igualmente peculiar, pois é confusa e com passagens não-lineares chegando à um ponto em que se torna difícil compreender o que está acontecendo pelo fato das histórias sempre mergulharem em aspectos psicológicos de seus personagens fazendo o mundo irreal e o real se misturarem.

Tudo isso anda de mãos dadas com a animação que também deixa sua marca registrada. Em boa parte das cenas não há muitos movimentos físicos, porém os personagens se expressão muito e há vários cortes rápidos para os olhos, bocas e outras partes do corpo que estejam tomando algum enfoque na ação. O anime inclusive faz muitos cortes rápidos para o cenário todo, com diferentes enquadramentos e ângulos dos personagens – as vezes girando o cenário como um cubo.

Ainda sobre a animação, é importante ressaltar que ela é diferente. Não se trata de uma animação dinâmica e muito orgânica, aqui ela é completamente funcional. Quando precisa ser mais fluída ela é mais fluída, no entanto como já citado, o anime contém muitas cenas “paradas”, estáticas, ou seja, que os objetos no cenário não estão se movendo exceto pela boca e olhos dos personagens – embora os cenários constantemente se deslocam. Há também uma técnica bem recorrente durante o anime que consiste em uma câmera lenta com poucos quadros causando um efeito de interpolação de cores.

Se há algo que a série deixou a desejar, talvez tenha sido em dar maior profundidade ao seu personagem principal: Kusuriuri. Ele é bastante unidimensional e carrega apenas um objetivo: exorcizar mononokes. Entretanto, há muitos mistérios e duvidas que o cercam, perguntas que são levantadas e não respondidas deixando apenas teorias sobre quem é, ou melhor, o quê ele é. Tudo o que sabemos é que ele segue fielmente á um único propósito e que isso é sua razão de existir, tanto que nem mesmo um nome ele possui, referindo a si mesmo como “vendedor de remédios”. Dentro das hipóteses, a mais viável é que ele mesmo seja um mononoke.

Mononoke não é um anime convencional, é uma obra artística visual onde cada quadros conta como uma arte surreal repleta de tradição e cultura dessa terrinha nipônica que tanto amamos. Há temas muito forte abordados e bastante excentricidade que o diretor deixa transparecer. Tem algumas diferenças de qualidade de um arco para o outro, mas mantém consistente em sua estrutura e se mostra ousado em sua forma de comunicação audiovisual.

Avaliação: ★ ★ ★  ★ (+)

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